quinta-feira, 8 de março de 2012

vermelhos

Tenho para mim que a filha de um pastor evangélico, por mais ateia que se torne, nunca se sentirá confortável na profissão de stripper. Da mesma forma a filha de uma cozinheira, por mais apressada que esteja, nunca engolirá o slogan dos alimentos de caixinha: "Aqueça e Pronto". A filha de um pedreiro jamais dormirá segura dentro de uma barraca de camping.

É claro, quando adultos, vamos nos desprendendo dessas heranças fundamentais. Muitas vezes até nos insurgimos. Um caso é o do político Carlos Lacerda (1914-1977). Filho de um entusiasta do socialismo, seu nome é Carlos em homenagem ao Karl Marx e Frederico em homenagem ao Friedrich Engels. O Carlos Frederico Lacerda acabou entrando para a eternidade como um feroz anticomunista.

Cito o Lacerda por conta de uma lembrança anedótica da minha infância carioca. O ano era o fatídico 1964. Numa rádio, Lacerda fazia um discurso lambisgoio e laudatório ao golpe militar. Meu tio, sindicalista da cabeça aos pés, ouvia raivoso. Eu sempre gostei do nome Carlos e também para desafiar o tio Walter, gritei: "Viva o Carlos Lacerda!"

Então meu tio correu atrás de mim com um chinelão em punho. O alvo era o meu traseiro. Eu me safei daquela. Neta de tenentista, filha e sobrinha de comunistas, o que eu esperava? Ainda tem gente que pergunta se eu sou comunista. Respondo: só de família. Passadas tantas ideologias debaixo do meu nariz, o único ista de que não abro mão é o de flamenguista. Por enquanto.

Mas tal como a filha do pastor, a filha da cozinheira e a do pedreiro, sempre serei filha de um comunista. Sempre desconfiarei dos bancos e dos patrões. Agora se me perguntassem qual o sistema ideal, eu não titubearia: capitalismo para todos! Sonho que cada habitante da Terra, além de moradia, saúde, educação e de quatro refeições por dia, tenha direito a um iPad.

Ser filha de um comunista me trouxe muitas vantagens. Por exemplo, ter lido na adolescência os melhores escribas do século XIX. A brilhante literatura de Dostoiévski, Tolstói, Gogól, Tchecov. Tudo pela casualidade deles serem russos. Soviéticos, segundo meu pai. E desvantagens: só fui ler Borges e Nelson Rodrigues nos anos da faculdade. Meu pai e meu tio os vetavam por reacionários.

Na Escola de Comunicações e Artes da Usp, em 1977, me tornei ativista da Liberdade e Luta – tendência estudantil monitorada por uma organização trotskista. Entre as tendências, a Liberdade e Luta, Libelu, era a mais aguerrida e determinada no combate à camarilha militar. Porém, o mesmo ódio que dedicava à ditadura, dedicava aos militantes do Partidão – apelido histórico do Partido Comunista Brasileiro.

O PCB, através do meu pai e do meu tio, havia sido na minha casa tão reverenciado quanto é o Papa nas famílias católicas. Nunca me esqueço do dia que meu pai, com uma imensa mágoa, me mostrou um panfleto assinado pela Liberdade e Luta descendo o cassete nos velhos comunistas, acusando todos eles de stalinistas e traidores da classe operária.

Eu até que aguentei firme o embate entre a tradição familiar e a minha descoberta de juventude. Acho que o que eu queria, e ainda quero, era pensar livremente. Não demorei para perceber o sectarismo e autoritarismo dos dirigentes da Liberdade e Luta. Um belo dia, a direção decretou que marihuaneros e delirantes seriam expulsos da tendência estudantil.

Quem me salvou, naquela altura, foi o feminismo. Na época, deliciosamente libertário. Feminismo desprezado tanto pelo Partidão quanto pela Libelu, que insistiam que as reivindicações das mulheres eram blablablá burguês. A filósofa e ativista do movimento negro Sueli Carneiro uma vez me disse uma frase inesquecível: "Entre a esquerda e a direita, eu sou negra".

Daí parafraseei: Entre Josef Stalin e Leon Trotsky, eu sou mulher.
Hoje admiro as vidas de lutas do meu pai e do meu tio, ambos fiéis ao socialismo. Também trago boas lembranças da minha juventude libelu que, ao menos, me fez gostar de rock and roll e de certa irreverência.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

15 comentários:

  1. Anônimo10:09 AM

    Minha querida Fernanda,
    Eu gostei de suas reflexos; para mim também o feminismo foi o que me salvou, Parabéns!!!
    kelva

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  2. Que delícia de leitura, Fernanda!
    Como é importante o resgate das raízes e das memórias. Tem um ditado africano que escutei certa vez de um estudante da USP de origem moçambicana que diz assim: "quem não sabe de onde veio, não pode saber pra onde vai". beijo. Paulo Baroukh

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  3. Anônimo10:58 AM

    Então fui parar no segundo andar e não tem graça alguma, admiro meu pai por ser meu pai, não quero uma ideolgia para viver .

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  4. Anônimo11:06 AM

    Fernanda,
    Poderia assinar essa sua trajetória como minha, incluindo o nascimento carioca, a família pecezão, o universitário libelu e o pensar por minha cabeça.
    Minha paráfrase da Sueli Carneiro: Entre Stalin e Trotsky, sou gay.
    Pode crer que em 77 devemos ter saído pelas ruas de Sampa juntos, pedindo democracia. Beijos,
    Rogério

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  5. Anônimo11:45 AM

    ainda bem q vc citou em paragrafo abaixo q alem do seu sonho p/ todos e todas, vc quer pensar livremente... ainda bem!
    maria angelica (postei como anonimo pq é + facil/rapido)

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  6. Delicioso e perfeito post para este dia!
    Parabéns!
    Beijo.

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  7. Histórias...
    Histórias são coisas p/ se desfrutar (sempre! - e pro diabo as contemporaneidades!). A genealogia da construção do que entendemos por realidade; coisa tão complexa, mas tão bem escrita e descrita desse jeito é... + 1 Gol de Letras!
    Nas e-crônicas: sou FernandISTA. Valeu (de novo) Fê. Bj.

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  8. Anônimo2:22 PM

    É muito legal, Fernanda, você ter essa clareza sobre as coisas de tanto tempo atrás. Acho que minha cabeça de pós-adolescente ou adultescente era bem mais encaraminholada; os pensamentos saiam feito roupa quando sai de lavadora, enrolando-se uns nos outros, desde sempre amarrotados e sem o cheiro de amaciante. Parabéns prá você hoje e todos os dias. jsavio

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  9. Anônimo6:28 PM

    me fez lembrar o que cantávamos para a "turma" da libelu: "me bate....me chuta...sou liberdade e luta" heheh, saudades...apareça em Antonina. bjs. tania

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  10. Anônimo7:38 AM

    é isso ai, fernanda o que nos dá conforto e confiança é saber de que lado estamos, o que é legitimo nosso, é nosso o que construimos,pois isso ninguem nos rouba.Ser e estar mulher no mundo é revolucionario, contemporâneo,acho que o feminismo salvou e salva muitas mulheres, inclusive nós. dinalva tavares

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  11. Anônimo5:07 PM

    Oi, Fernanda.

    Humberto Werneck, num prefácio ao livro Farewell, conta que Carlos Drummond de Andrade carregou até a morte, na carteira, um papelzinho com a seguinte inscrição: "Recordações da Mamãe 1. Não guardes ódio de ninguém; 2. Compadece-te dos pobres;
    3. Cala os defeitos dos outros." Quer exemplo mais eloquente do que você diz nesta crônica?
    Abraço, Carlos Machado

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  12. Anônimo4:18 AM

    Eu nunca havia pensado em ser stripper... valhamedeus!
    Júnia

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  13. Anônimo7:27 AM

    AMEI Nanda !! SEMPRE PENSO NISSO TAMBEM .CRESCENDO DURANTE A DITADURA COM COMUNNISTAS SEMPRE DESCONFIO DE BANQUEIROS ,BURGUESES ,RELIGIOSOS E RAPIDISSIMO SENSO UM REACIONARIO !

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  14. Anônimo2:33 PM

    Brilhante texto! Você é ótima. Fredo Sidarta, SP

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