sexta-feira, 2 de maio de 2014

Flores de abril


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Em 1974, íamos em meio a uma longa noite no Brasil. Bisbilhoteira e com uma fome de mundo que não tinha tamanho, eu fuçava tudo o que podia para obter informação do que acontecia fora dos limites da nossa vidinha pequenininha. A escola, coitada, patinava em métodos e conteúdos pré-históricos, enquanto eu cada dia odiava mais a tabela periódica e as identidades trigonométricas.

Comecei a frequentar o diretório acadêmico da faculdade de filosofia estadual que, felizmente, havia na cidade. Meus pais eram alunos do curso de letras, o que de certa forma facilitava a minha entrada ali. Sempre tinha alguém jogando ping-pong, truco e conversa fora. A atividade política estudantil estava amordaçada, sob a constante vigilância dos milicos e seus muitos apaniguados. E ninguém ali me dava muito papo. Mesmo assim, era um lugar onde tocava MPB o tempo todo e eu podia respirar um ar de pequenas transgressões. Lembro de um aluno de literatura, gay assumido, naqueles tempos tenebrosos, com um bustiê vestido sobre a camiseta mais curta do que deveria, sentado num sofá, fazendo tricô e cantarolando Drama 3o Ato, junto com Bethânia.

As revistas Manchete e O Cruzeiro, cheias de fotos, me traziam um pouco do mundo lá fora. Numa delas, soldados trocavam cravos vermelhos com as pessoas na rua, entre tanques de guerra e muita gente. A matéria era sobre um levante militar em Portugal, que havia encerrado uma ditadura de várias décadas. Então as ditaduras acabavam? E não existiam só aqui? Havia outros lugares no mundo onde as pessoas sentiam o mesmo que eu?

Chegou à cidade um show de Vinícius de Moraes, Toquinho e Marília Medalha, seguindo um “circuito universitário”. Como não havia teatros – o nosso belo Municipal havia sido recentemente demolido pra abrigar o novo arranha-céu da prefeitura, numa onda obscurantista que assolou o interior paulista –, o show aconteceu num cinema. O bilheteiro, penalizado com a minha cara grudada no vidro, do lado de fora, porque não tinha um tostão furado, me abriu um vão, quando o espetáculo estava começando, e eu voei pra dentro, incrédula da generosidade do cara, mas sem hesitar um segundo. “As cores de abril, os ares de anil, o mundo se abriu em flor” e tantas outras. O cinema lotado, todo mundo de pé, cantando junto e dançando, inesquecível.

Meses depois, conheci “Grândola, vila morena”, cantada por Nara Leão, numa coletânea da série “A arte de”. A batida das botas dos soldados, a voz ao mesmo tempo firme e delicada, o coro que a acompanha em algumas estrofes da canção que fala do povo dando as ordens na cidade, fiquei arrepiada, emocionada. Ouvi muitas vezes o disco de vinil, na vitrola portátil que comprei, já em Brasília. Mas ainda demorou um bom tempo, até que eu juntasse a Revolução dos Cravos com a canção do Vinícius e a gravação da Nara.

Acabei de ouvir a mesma gravação, via YouTube. De olhos fechados, o mesmo arrepio me sobe do dedão do pé até a raiz dos cabelos, celebrando a liberdade numa canção ao mesmo tempo tímida e poderosa. Faltam-nos cravos vermelhos, música e a vontade do povo, senhoras e senhores ocupados em “pacificar” o Rio de Janeiro e salvar o Brasil do vexame global que nos aguarda ali na virada da esquina.


* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

6 comentários:

  1. Anônimo10:03 AM

    Alma e infinito - "grandezas imensuráveis". É nesse espaço que voeja a ânsia do saber, do conhecer, do viver da Júnia. Agora consigo compreender
    um pouquinho sua eterna busca.
    Com você, desejo que surjam senhores e senhoras em condições de levantar a bandeira brasileira e gritar ": Quem for brasileiro que me siga", num gesto de grandeza que extrapole as ninharias que rolam por aqui.
    Ser grande de alma, desprendido, pronto para a busca do melhor a cada dia me parece algo que não está na agenda dos "líderes" que surgem a cada momento.
    Deixe sua alma solta, livre, leve, voejante .Voar é preciso, não só navegar.
    Beijos da Mummy Dircim

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  2. Anônimo7:50 PM

    "Grândola, vila morena, terra da fraternidade..." Sim, essa música arrepia... A de Toquinho e Vinícius eu não conhecia... Obrigada pela dica, tia! Um filme que mostra bem as 24h do 25 de abril, para quem se interessar, é o "Capitães de abril", de Maria de Medeiros. Assisti por ocasião dos 40 anos da Revolução este ano, e juntando com o seu texto de hoje, faz realmente pensar quantos "abrils" ainda são necessários, seja em Lisboa ou no Rio...
    Um beijo da sobrinha, Martina.

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  3. Anônimo7:26 AM

    Querida Junia, gostei demais ...
    cotando, desde Kiev.
    ...ontem como voce, meninos e meninas olham o passo das botas e os tambores, Hoje na Ukraina, no leste, sem eles saber, a lacra do odio avança fomentando a guerra cresce a cada amanhecer. A morte ronda os caminhos é,a tolerancia é um muito...
    A situação neste lado do mundo é muito grave, o exército russo aguarda na fronteira a ordem do tirano pra avançar...Espero que não ocurra, caso contrario, a bestia do mal irrumpera com sua estela de sangue... "Deus nos acuda !"
    Saudações,
    Bernardo Carvajal

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  4. Obrigada, Bernardo! A Ucrânia é a triste "bola da vez", né? Espero que vocês fiquem bem.

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  5. UAU! FIQUEI SEM FÔLEGO! E MEUS OLHOS NADARAM... TÂ

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  6. Anônimo3:16 PM

    Arrepiada, emocionada,fiquei eu, também, ao ler o seu texto: contundente, visceral, verdadeiríssimo. Ju, vc se supera a cada novo trabalho.
    Minha admiração ao Fernando pela bela e sensível ilustração.
    Terê

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