O Almoço de Natal
Naquele tempo em toda casa havia um galinheiro. Bendito galinheiro. E um porão escuro e úmido. Porão abençoado.
A iniciação amorosa de todo menino era feita onde e com quem você já sabe.
Éramos dois irmãos, cada um tinha a sua namorada. E cuidávamos de agradá-las com água fresquinha, folha de couve, punhado extra de milho.
Primeira vez só consegui atraí-la ao navio pirata & mina de ouro & nave espacial com migalhas de pão, nova Mariazinha perdida no caminho de casa. Já nas outras, bastava eu me curvar para adentrá-lo, ela me seguia a toda pressa em passo miudinho de gueixa.
Quando ela chegava fazia-se a luz na caverna. De suas tocas, aranhas e lagartixas espirravam as cabecinhas para vê-la.
Era sentimento mútuo, fonte de surpresas, delícias, arrepios de prazer. Ai, olhinho buliçoso que não piscava, sem pálpebra... para melhor te seduzir. De volta da escola, eu corria para o quintal e, ao me ver, ela abria as asas jubilosa ao meu encontro. Enquanto eu penava com as lições de gramática, para me consolar ciscava e arrulhava sob a janela.
A tragédia iminente era o famoso almoço de Natal. No dia fatídico seria a vez da tua bem-querida — a mais gordinha e apetitosa do terreiro. E, angústia maior, os carrascos alternados no altar do sacrifício você imagina quais eram.
Três, os métodos clássicos: golpe certeiro de machadinha no longo pescoço da mártir (sobre a bacia que aparava o sangue do molho).
Ou repuxá-lo sem dó finalizando no estalido seco — ao soltá-la, sem saber que estava morta, ensaiava uns tantos passos bêbados, antes de se esvair aos teus pés...
Ou, ainda, girá-lo com força até que ouvisse um crack!
Os sons fatídicos — o golpe, o estalo, o crack — eram as três pancadas da desgraça à tua porta.
Afinal me coube — ai de mim, maldito — abreviar os dias felizes da prometida do meu coraçãozinho de 7 anos. Nem pensar em desobedecer às ordens de Mamãe — atrás dela se levantava o poder maior desse Pai dos Pais, ditador trovejante de prêmios e castigos.
Cogitei de imolar não a eleita dos meus suspiros e, sim, a do meu irmão menor, tanto eram parecidas, gêmeas da mesma ninhada. Decerto, feroz na defesa do seu próprio amor, ele denunciaria aos berros a minha fraude. E eu sonhava, dormindo e desperto, com a bicicleta azul que, menino bem-comportado, ganharia no Ano-Novo.
Aqui a mão ponho na minha boca. Sou o túmulo do sofrimento humano.
E o crime foi consumado.
Para surpresa familiar (e minha, mais que de todos), não fui o único glutão a recusar com horror o pedaço predileto de coxa. Também ele, o caçula, se absteve de provar a noivinha inebriante ao molho pardo.
Foi a minha primeira desilusão amorosa. Ah, o coração feminino... Bem que era volúvel, ó ventoinha de penugem dourada vogando ao léu. O tempo todo me iludira, a ingrata — e com o meu próprio irmão!
Outras namoradas vieram. Da primeira você jamais esquece. O amor, essa coisa, sabe como é. Ainda hoje, dela me lembro: pequenina e trêmula nos meus braços, as macias penas arrepiadas, pipilante de prazer.
Tudo passa, ela passou.
Era aberta enfim a temporada de caça às primas. Viva a estação das priminhas!
Dalton Trevisan do Livro Rita Ritinha Ritona, Editora Record
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.