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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Roda mundo roda moinho


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

E ele fez setenta anos na semana passada, celebrado e paparicado. Na minha opinião, sempre menos do que merece, pela vertiginosa quantidade de maravilhas que já produziu, em palavras e notas, desde a mais delicada filigrana até os gritos de dor e impotência diante das inesgotáveis complicações da vida.

Deparei-me com uma daquelas comemorações contábeis, em que alguém fez uma lista das dez canções de Chico Buarque que considera mais bonitas. Já não gostei da proposta, pois eu aqui posso citar umas quarenta e cinco, de carreirinha, sem piscar. Mas fui ver a tal lista, para constatar que seu autor e eu nada temos em comum, exceto a tietagem do Chico. Espremeu tanto para tirar dez, deixando de fora “Beatriz”, “Todo o sentimento” e “Roda viva”, por exemplo. Deve ter sido escolha de computador. Mas é que são tantas, tantas, que posso entender a enorme dificuldade da tarefa.

Comecei a me interessar pela MPB lá pelos quinze anos. Antes disso, só curtia Jovem Guarda. Um belo dia, sem aviso prévio, aquelas canções ingênuas ou açucaradas sobre carros, namoradinhas e beijos no cinema perderam o sentido. Foi como amanhecer um dia com febre, uma enorme vontade de mergulhar na música que eu entreouvia aqui e ali, que era de outro jeito, falava de outras coisas. “Roda viva” já era um grande sucesso, fui ler a letra, aprender a cantar junto. Senti-me muito mais inteligente e adulta do que na véspera.

Tantas coisas cabem numa canção, bendito clichê, ainda mais quando saída de neurônios e sentimentos capazes de ler e traduzir a experiência humana. O tempo rodando as voltas do coração naqueles dias em que a gente se sente como quem partiu ou morreu. O mundo cresceu ou foi a gente que estancou? Remamos contra a corrente até não poder resistir, e quando o barco faz a volta sentimos o quanto faltou cumprir. A gente toma a iniciativa, sai cantando pela rua de viola em punho, mas é tudo ilusão passageira, levada pela primeira brisa. O concreto mesmo é a roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião. Parece que estamos sempre atrasados? É ilusão.

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 Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Não é todo dia que se vê um jogo de Copa do Mundo

por Pedro Mox*

O horário da partida era uma da tarde, mas às nove eu estava pronto. Não é todo dia que se vê – e porque não, sente – um jogo de Copa do Mundo. O estádio Governador Magalhães Pinto, popular Mineirão, receberia o último confronto do grupo D; o temido grupo formado por Itália, Uruguai, Inglaterra e Costa Rica. Àquela altura, entretanto, o “grupo da morte” mostrava-se letal apenas aos campeões mundiais: os caribenhos jogavam por um empate, que lhes asseguraria a primeira colocação. Itália e Uruguai digladiariam pela segunda vaga, aos ingleses restava tentar não realizar a pior campanha do país na história em mundiais.

O trajeto até o estádio mostrava-se descomplicado até a metade do caminho, quando filas intrínsecas a eventos de tal magnitude acabam aparecendo. Nas proximidades do estádio, diversas placas apontavam o caminho de estacionamentos e entradas para pedestres. Estaciono sem problemas e faltando pouco para o meio-dia avisto o imponente estádio de capacidade para 62 mil torcedores. Seu entorno tem chão acimentado, na cor do estádio, que por fora não me parece muito diferente do “velho” Minera. Uma gigantesca faixa com grafismos do evento exibe a frase “Bem vindos a/welcome to Belo Horizonte”. Todas as placas, bem como informações vindas pelos alto-falantes do estádio são em inglês e português.

Ao contrário do que imaginei, em nenhum momento foi-me solicitado o ingresso nos arrabaldes do Mineirão. Bem verdade que era um “amistoso”, mas o clima de alegria e descontração era geral – como imagino ser também nos outros. Fantasiados, caras pintadas, perucas, todos os tipos mais excêntricos que aparecem na TV estavam lá. Dezenas de camisas de clubes e seleções também conviviam harmonicamente: Brasil, México, Argentina; Cruzeiro e Galo; times de outros estados... Um mar de cores que, tal qual o vento em um deserto, formava e destruía belos mosaicos a cada instante.

A primeira entrada é um raio-x, para bolsas e pessoas – idêntico aos de aeroportos. A fila é organizada e não leva mais de 10 minutos. Não é permitido entrar com nenhum alimento, o que me fez pensar o desperdício de milhares de barrinhas de cereal ou biscoitos tipo social club. Acharia ótimo se, em vez de um lixeiro, houvesse um cesto de doação que pudesse aproveitá-los. Já mais próximo, mas ainda fora do estádio, está a entrada de fato, na qual uma voluntária passa meu ingresso num leitor óptico e deseja “boa partida” – sem catracas ou barreiras. Não sei se tal logística permanecerá nos jogos do brasileirão.

Dentro há mesinhas e lixeiras, com separação do que é reciclável. No momento que fui, os banheiros estavam limpos, mas metade das pias não tinha água. Os bares oferecem sanduíche natural, hambúrguer, salgadinhos. Fiquei feliz ao ver que o famoso tropeiro do Mineirão continua lá, ao preço de 15 reais, vendido numa quentinha de isopor. E continua saboroso. Para beber, Budweiser, cerveja oficial da copa, R$ 13; e Brahma, patrocinadora nacional do evento, R$ 10, ambas 473ml (equivalente a um pint estadunidense). Coca cola, num copo que traz também o jogo do dia. Aí está uma grande cretinice da FIFA, na minha opinião: o bar só aceita cartões Visa, patrocinadora do evento. Se o torcedor tem 10 em dinheiro e cartão Master, é obrigado a ir ao caixa eletrônico do estádio para sacar em espécie.

Compro minha cerveja – ou melhor, compro um copo e ganho a cerveja – e sigo para meu lugar: anel superior, cadeira em frente ao círculo central. O melhor lugar para se assistir a partida. Se por fora não mudou muito, internamente é um novo estádio, não lembra em nada o antigo Mineirão. O locutor pede aos presentes que se levantem para os hinos nacionais, e ambas torcidas os cantam alto. No anel inferior, à minha esquerda, a maioria inglesa; à direita costarriquenhos. A torcida brasileira torcia em massa para os latinos, e porventura eu fosse um dos poucos brasileiros torcendo pela terra da rainha – inclusive com a bela camisa vermelha de 66. Os telões alternam a exibição do jogo, com placar e tempo, com torcedores que vez ou outra produzem vaias ou aplausos.

Sem muitas pretensões por parte das equipes, futebolisticamente o jogo é fraco. Mas as torcidas dão show, com grito de “chicos” e “go england”. Fico lá sentado, literalmente apenas assistindo. Mas, esse modo “padrão fifa” é muito chato para mim. No intervalo, rumo ao setor britânico; já no acesso me sinto num território gringo, só ingleses falando alto e tomando Brahma como se fosse Carling. Na arquibancada, em meio a muitas bandeiras da Inglaterra, arrumo um lugar na reta da bandeira de escanteio, na verdade quase no corredor. Ali não tem assento marcado e todos vêem o jogo de pé. Muitos tem os três leões da FA (a CBF inglesa) tatuados; apesar de o jogo não valer nada eles cantam e incentivam o time como se a vitória valesse algo mais que uma despedida honrosa.

As entradas de Gerrard e Rooney dão novo ânimo, Sturridge e Sterling até executam boas jogadas. Braços erguidos, os “pais do futebol” cantam “shall we sing a song for you”, a melodia de “Hey Jude” dizendo “En-gland”. Não há como não acompanhar. Já nos acréscimos o fair play dá lugar às provocações naturais do futebol: torcida grita “olé”, “eliminados”, e vejo alguns copos voando da parte superior em nossa direção. Os ingleses mostram o dedo do meio e continuam cantando; foi o único momento no qual ponderei que algum incidente poderia acontecer – eu não vi, mas li que a tropa de choque cercou os eliminados mais exaltados para evitar qualquer confusão, que de fato não houve.

Apesar de um segundo tempo de muita garra, o placar permaneceu zerado. O que não mudou em nada o reconhecimento daqueles que cruzaram o oceano para acompanhar sua seleção. Após a partida jogadores e técnico se aproximam para agradecer, alguns jogaram camisas, e ali ficaram alguns minutos, admirando a enorme festa feita na arquibancada.

Na saída a fila é muito maior que na chegada, algo que não chega a surpreender dado o público de quase 58 mil pessoas. Todos vão-se com calma, tiram fotos. Uns agora iriam para casa, outros continuam na copa. Se o futebol não encantou, Inglaterra x Costa Rica proporcionou uma inesquecível partida.

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*Pedro Mox, jornalista e fotógrafo, especial para o NR

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Unidade latino-americana sem negros não serve


por Cidinha da Silva*

Por que você me chutou? Pergunta Evra, lateral do Manchester United. Porque você é negro! Responde Luís Suarez, jogador do time adversário, o Liverpool, em partida do campeonato inglês, logo depois da Copa de 2010. A conversa prossegue ríspida e Evra ameaça agredir Suárez, caso ele continue chamando-o de negro. Suárez conclui irônico: eu não falo com negros!

A atitude racista do jogador uruguaio está detalhadamente registrada em 115 páginas de processo da Federação Inglesa de Futebol, nas quais ele alegou que chamou Evra de negro de maneira amigável e conciliatória. Como não se tratava de contexto latino-americano onde o racismo é tolerado e relativizado, onde a palavra racismo é eliminada do discurso, ao tempo em que se fortalecem e reinventam as práticas racistas, não colou. Suárez foi banido do futebol por oito jogos, multado em 40 mil euros, proibido de pronunciar a palavra negro no futuro.

Perdoem-me Mujica, Beatriz Ramirez, Elizabeth Soares, Romero Rodrigues, Mizangas, Mundo Afro, mas não há ufanismo latino-americano que desvie meu olhar de um jogador racista, mesmo que a imprensa queira imputar-lhe contornos épicos como artilheiro da brava Seleção Uruguaia. Aliás, como sabemos todos, a decantada unidade latino-americana pouco ou nada inclui os negros, seja nas obras dos grandes pensadores de América Latina, seja na atuação de ativistas políticos sensíveis ao genocídio indígena nas Américas, mas blindados quanto ao genocídio negro, de ontem e de hoje.

Luís Suarez é um racista desprezível, não posso vê-lo de outra forma. Por isso, entre e a Itália racista e o Uruguai de Suárez, sou Barwuah, o filho de migrantes ganenses que se fez Balotelli na terra de Mussolini.

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 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Pra boi dormir ou dá muita preguiça 2


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna*

O pessoal que xingou a Presidente na abertura da Copa. Foi imperdoável etcétera, mas já deu, né? Esse vício maldito de falar mal do Brasil o tempo todo e esperar sempre o pior. Achar e dizer que "lá fora" tudo dá certo, funciona, é bem gerido, bem resolvido e entregue no prazo. Culpar a "corja do PT" e "a Dilma" por tudo de ruim que aconteceu por aqui nos últimos quinhentos e catorze anos. Atribuir ao PT e à Dilma tudo de bom que aconteceu por aqui nos últimos quinhentos e catorze anos. Achar que precisamos fabricar novos pobres pra suprir a escassez de gente subserviente e mão de obra quase grátis – é o ó.

FIFA. "Imagina na Copa", vuvuzela, Fuleco e Cristiano Ronaldo. Cláudia Leite, fantasiada de Galinha Pintadinha ou de si mesma. A rivalidade com os argentinos, que só vale pra gente rir. Ver jogo na Globo. Bom Dia Brasil do Neymar, Jornal Hoje do Neymar, Globo Esporte do Neymar e Jornal Nacional do Neymar. Declarações de Ronaldo, o fenômeno. A novela "Em família". Gringo que vem aqui só pra pegar mulher. Cerveja sem álcool. Jogo de Copa que termina zero a zero.

As maravilhas de pessoas que frequentam as redes sociais, todas inteligentes, éticas, interessadas no bem comum, educadas e ágeis em postar lindos exemplos de superação, respeito ao próximo e aos animais e práticas altruístas. E dispostas a opinar sobre como resolver o problema alheio, que é mesmo muito fácil. Prontas pra reclamar dos "outros", do governo, do país, da conspiração cósmica, da ONU, da política externa, da falta de incentivo ao que quer que seja, do consumismo, do capitalismo, do comunismo e o que mais aparecer pela frente.

Musiquinha, comidinha, amorzinho, benzinho e coitadinho, saidinha, cineminha, queridinha, barzinho e cervejinha, roupinha e sapatinho, comprinhas e empadinhas, caipirinha, filhinhos, criancinhas, mãezinhas e paizinhos, batatinhas, feijãozinho, bifinho, churrasquinho e essa nossa mania de falar em diminutivês.

O cenário eleitoral: é preciso estômago pra chegar até a eleição e votar. O governador de São Paulo afirmando que não há racionamento de água. Essas inaugurações de obras inacabadas, malfeitas e micadas; já era tempo de superarmos isto. Pedir a volta da ditadura.

Show de fim de ano do Roberto Carlos. Concurso de miss. Big Brother Brasil. Zzzzzzzzzzzzzzzzz.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Quem somos, afinal?


por Celso Vicenzi*

“Dilma, vai tomar no cu.” Assim, sem eufemismos ou asteriscos. É preciso que a gente leia, com todas as letras, o xingamento. Triste país que confunde protesto com falta de educação e grosseria. Democracia com intolerância e falta de civilidade. O mais alto xingamento público já feito a uma autoridade no exercício do cargo foi endereçado a uma mulher que sofreu torturas e suplícios na ditadura. De onde vem tanto ódio?  Dilma não estava na delegação de políticos que vibrou com o anúncio da Fifa ao escolher o Brasil para sediar a Copa 2014. Mas lá estavam, felizes, Lula, Aécio Neves, Eduardo Campos, José Serra, Sergio Cabral e tantos outros. Também estavam felizes e brigaram para sediar os jogos governadores, senadores, deputados e prefeitos de vários estados brasileiros. Marina Silva queria uma sede no Acre. Todos sumiram quando a mídia, com exageros e manipulações, insuflou o ódio contra a Copa. Um único jornal, às vésperas da abertura do evento, admitiu que os gastos com estádios – mesmo superfaturados – correspondiam a apenas uma semana do que se investe em um único setor: o da educação. Por tão pouco, comparado ao tamanho do orçamento do país, por que não poderíamos sediar uma Copa, sabendo que outros benefícios, na mobilidade urbana, aeroportos, segurança e turismo permanecerão? Isso sem falar em ganhos simbólicos, não menos importantes.

Oportunistas e covardes, nenhum dos políticos que estavam em Zurique, em 2007, assumiu, no Itaquerão, a paternidade da Copa. Deixaram, emblematicamente, com uma mulher, toda a responsabilidade. Critica-se o atraso nas obras e o superfaturamento, fatos que acontecem, infelizmente, desde sempre, por todo o país. Por que o espanto, se constatamos, no cotidiano de nossas cidades e estados, empreiteiros envolvidos em superfaturamento de obras? A elite brasileira, ao criticar a corrupção, disfarça, mas cospe no prato em que come. Afinal, quem são os destinatários finais de boa parte da corrupção do país, senão empresários, políticos, parlamentares, e a elite do serviço público nos três poderes?

“Dilma, vai tomar no cu”, diz muito sobre o povo que somos. Não deveríamos estranhar tanto. Apenas vivemos uma era de maior transparência, graças, também, às novas tecnologias. Quem frequenta o Facebook não estranha o nível.

Finalmente, o Brasil se vê no espelho. E não deve estar feliz com o que vê. Mas não dá mais para esconder que vivemos num país racista, machista, homofóbico, violento, desigual, mal-educado e preconceituoso. E não é somente o “outro”, como gostamos de nos defender, o responsável por séculos de sujeira varrida para debaixo do tapete. Poderíamos aproveitar que estamos “deitados eternamente em berço esplêndido”, como diz o hino, e convocar Freud e seus discípulos para uma grande terapia sobre o que se esconde no fundo da alma brasileira. Um povo alegre e hospitaleiro, mas também cruel e violento.

Somos racistas. Fomos a última nação do planeta a acabar com a escravidão. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos no mundo – entre três milhões e quatro milhões. Sem contar os mais de 600 mil que morreram nos navios negreiros, antes de pisar em solo brasileiro. Mão de obra que enriqueceu donos de latifúndios e até hoje ajuda a desenvolver o país. Mas que nunca foi indenizada. E ainda tem brasileiro que acha “injusto” assegurar políticas afirmativas (cotas) para que uns poucos consigam escapar do destino de miséria a que são submetidos desde o início da colonização do Brasil.

Segundo pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social, “70,8% das pessoas que se encontram na situação de extrema pobreza no Brasil são negras ou pardas, sendo que esse percentual atinge 77% na região Norte e 75,1% no Nordeste”.

Somos desiguais. O Brasil é o 12º país mais desigual do planeta (já fomos pior, antes dos governos Lula e Dilma). É justamente essa crônica e cruel desigualdade que também nos diferencia nas prisões, ocupadas basicamente por negros (53%) e pobres (41,5% não completaram o ensino fundamental e 69% estão presos por tráfico de entorpecentes e crimes contra o patrimônio). Já os ladrões do dinheiro público, os ladrões de colarinho branco, responsáveis em boa parte por se apropriar de recursos que poderiam melhorar a vida das camadas mais pobres, esses continuam livres, leves e soltos.

Somos homofóbicos. Pesquisa do Grupo Gay da Bahia registrou o assassinato de 312 gays, lésbicas e travestis brasileiros em 2013. Nos últimos quatro anos, o número cresceu 14,7%. Segundo o estudo, o Brasil é campeão mundial em homicídios de homossexuais. De cada cinco gays ou transgêneros assassinados no mundo, quatro são brasileiros.

Somos machistas. Na propaganda, nos estereótipos, na política, em todos os setores da atividade humana. Vale a regra, não as exceções. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) informa que 58,5% dos entrevistados concordam com a ideia de que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros. Num país que não fosse tão machista, certamente as mulheres teriam mais oportunidades na política. No entanto, apesar de termos uma presidenta, nos 5.570 municípios brasileiros, segundo o IBGE, apenas 12% elegeram prefeitas. Somente 13,3% são vereadoras. Estudo da União Interparlamentar (IPU), com sede na Suíça, entre 190 países, classificou o Brasil em 158º lugar, com 8,6% de mulheres no Parlamento.

Somos violentos. Na distribuição de renda, na segregação, na discriminação, no preconceito. E tudo isso se reflete nos índices de roubos e assassinatos. Foram cerca de 50 mil assassinatos em 2012, número superior a muitas guerras no planeta. Somos o 7º país mais violento. E tentar resolver somente pela repressão não resolve. Já somos o 4º país com a maior população carcerária.

Somos preconceituosos. O preconceito está presente na linguagem, no ideal de beleza para as mulheres, na ridicularização e desrespeito aos homossexuais, na maneira como lidamos com pobres, negros e nordestinos. Estudo com as classes A e B mostrou que metade desses jovens prefere frequentar locais com pessoas do mesmo nível social. Para 17% deles, pessoas mal vestidas deveriam ser barradas nos shoppings. Eles também gostariam de elevadores separados e produtos para “ricos e pobres”. São os mesmos que não querem que metrôs passem por bairros de classe alta. E, no entanto, 70% das mulheres das classes A e B admitem já ter comprado produto falsificado (pirata), contra 50% das mulheres da classe C.

Mas somos, também, um país alegre e solidário, que empreendeu nos últimos anos a maior ascensão social do planeta. De 2005 a 2011, mais de 40 milhões de brasileiros saíram da pobreza e ascenderam à classe C. Segundo o Banco Mundial, junto com o Chile, somos o país com maior mobilidade social na América Latina. O Brasil é apontado como um dos países mais empreendedores do mundo, ocupando a quarta posição entre 54 nações analisadas (Global Entrepreneurship Monitor 2011).

O país possui um dos melhores sistemas bancários do planeta, é a quarta maior democracia do mundo e está na vanguarda em matéria de sistemas eletrônicos de votação, com resultados de eleições nacionais saindo em menos de 24 horas. Apesar das deficiências, possui o maior sistema público de saúde do mundo, é líder na realização de transplantes gratuitos e tem o melhor programa de combate à Aids, reconhecido pela ONU. O SUS, mesmo sem os recursos necessários, realiza gratuitamente, por ano, mais de 1 bilhão de procedimentos de atenção básica e 85% de todos os procedimentos de alta complexidade, entre tomografias, sessões de hemodiálise, quimioterapia etc. A ONU cita o Bolsa Família como exemplo de política pública na área de assistência social. Não faltam, portanto, exemplos positivos.

Talvez não precisemos mesmo recorrer a Freud ou deitar em divã de psicanalista. A melhor explicação para quem somos é também de um brasileiro, apaixonado por seu país, o antropólogo, educador, escritor e político Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro: “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista.”

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 Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

As filhas

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 11)


por Fernanda Pompeu  ilustração Fernando Carvall*

se vão quase trinta anos que minha amiga, num gesto tresloucado e para sempre inexplicável, atirou contra a própria cabeça interrompendo uma mente brilhante. Pois, com 20 anos, ela era rápida, criativa, ousada e, supreendentemente para sua idade, muito culta. Por que se matou? Essa resposta só terei se um dia encontrá-la quando eu me mudar para as nuvens. Mas a história que vou contar começa numa festa. Já embriagadas, ela me sussurrou - em tom de confidência - que seu pai foi um dos caras que mataram Carlos Marighella (1911-1969). O assassinado, todos sabemos, foi tachado pela ditadura como seu inimigo número 1.

Fiquei surpresa com a revelação. Por delicadeza, não fiz nenhum comentário. Mas ela estava com vontade de desabafar. Contou que seu pai era da equipe de Sérgio Paranhos Fleury, uma espécie de delegado pit bull dos milicos (sem querer ofender os cachorros dessa raça). Ela era uma menininha de pré-primário quando da emboscada a Marighella. Ouviu a história em casa e se encheu de orgulho: Papai havia matado o monstro vermelho!

Toda orgulhosa - afinal toda criança reverencia um papai que mata monstros - espalhou para os coleguinhas o feito. Isso foi lá atrás. À medida que ela foi crescendo e sabendo das coisas, a admiração pelo pai virou constrangimento. Tanto que ela só me revelou a história depois de altos graus etílicos. A festa acabou, cada uma foi para sua casa, e nunca mais retomamos esse assunto.

Mas, por certo, pensei bastante sobre a situação. Minha amiga fazia letras na USP, em meados dos anos 1980, quando 95% dos alunos eram de esquerda, com a sociedade sedenta pelas liberdades democráticas e por novas possibilidades. Daí compreendi que o pai delegado, matador do Marighella, era uma mancha na alva toalha dos cafés da manhã dela.

Em novembro de 2013, perdi meu pai. Lá no velório, um amigo dele pediu licença para discursar. Ele exaltou o quanto o falecido foi um companheiro comprometido com as lutas da esquerda, um militante incansável. Senti um orgulho! Por momentos, estiou a chuva dentro de mim. No dia seguinte, recordei da minha amiga de quase trinta anos atrás. Pensei que nem sempre é vantajoso ter um papai matador de monstros.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Supermarket


por Carlos Conte  ilustração de Rafael Gentile*

O supermercado estava vazio, meu coração também. Esqueci completamente o que tinha ido fazer ali. Sabe quando você entra na cozinha e demora alguns segundos, às vezes minutos, para se lembrar o que o levou até lá, e aí, quando enfim cai a ficha que você foi pegar água, simplesmente água, você já abriu a geladeira, mastigou uns pepinos em conserva, tomou Coca, afanou uns bombons de licor e se certificou de que o estrogonofe embolorou?... Sim, a água! Apenas água. Fui ao supermercado provavelmente fazer alguma coisa bem simples, mas esqueci.

Debruçado no carrinho, abri um saco de amendoins fritos, uma lata de cerveja, e fui andando pelos vastos corredores vazios para ver se a memória refrescava. Que nada! O que me veio à mente, de imediato, foi aquele programa que passava na Band, apresentado pelo Ricardo Corte Real, chamado Supermarket, em que dois casais disputavam o prêmio – um ano de compras com tudo pago! – procurando pistas escondidas nas prateleiras de um supermercado, numa espécie de caça ao tesouro televisionada para promover algumas marcas. Andei à esmo, sem encontrar nenhum apresentador, nenhuma pista que me ajudasse a esclarecer aquele meu pequeno mistério cotidiano.

Tudo bem. Sempre há coisas para comprar. Ainda mais quando seu cartão-alimentação está carregado. Já notei que sinto um prazer especial em usar o cartão-alimentação, como se não fosse o “meu” dinheiro que estivesse sendo gasto, mas um “bônus” ofertado mensalmente pela empresa. Mais uma bobagem da minha cabeça, eu sei, mas essa é uma sensação inevitável. Quando eu era pequeno, ao ver meu pai pagando alguma conta usando cheque ou cartão, tinha a mesma sensação: não estávamos gastando “nosso” dinheiro, mas de algum trouxa qualquer, tipo o governo, ou sei lá o quê... Pagar com cartão, e não com dinheiro vivo, era o mesmo que comprar “de graça”. Tudo bem: tinha apenas 6 anos e não conseguia fazer abstrações. Hoje faço abstrações, mas a sensação permanece. Será que ainda tenho dificuldade para fazer abstrações? Quanta coisa tem num supermercado! Estamos tão acostumados que raramente nos surpreendemos. Certa vez, num free shop do Chuí uruguaio, assim que passamos pela porta automática e avistamos aquele mundo fantástico das mercadorias que se abriu diante de nossos olhos, meu amigo Pedro Gongom soltou uma de suas pérolas: “Carlão, me encontre daqui meia hora: vou ver do que estou precisando!”. Com 150 mangos no Sodexo, fui atrás do que eu estava precisando. Mas o que era mesmo?...

Bananas. É sempre um acerto comprar bananas, pois evitam câimbras no futebol e são muito gostosas com sucrilhos. Sim, sucrilhos, do tigre, mas sem açúcar porque açúcar, todos dizem, faz mal pra cacete a ponto de deixar o sujeito cego e outros males irreversíveis. Granola não é tão gostoso quanto sucrilhos mas dizem que não tem nada melhor pra ir ao banheiro, pois é rica em fibras. (Qualquer dia conto a história do Vavá, um cara fanático em Elvis, que dizia que o que matou o rei do rock foi uma veia de sua cabeça que estourou enquanto fazia força sentado no trono... “Falta de fibra!”, ele dizia). Para não ter o mesmo fim, pus um saco de granolas no carrinho. Melhor prevenir do que remediar. Depois não posso me esquecer do papel higiênico para acompanhar as granolas. Uma coisa puxa a outra. Destino curioso: será que o rei morreu mesmo sentado no trono? O finado Vavá sabia das coisas.

Entrei na fila dos frios. Deixei o carrinho guardando lugar e fui buscar outra cerveja. Só aposentados e pensionistas do INSS às 4 da tarde na fila dos frios. Que maravilha! Dou risada sozinho. Só tragédia: uma teve que tirar uma pedra dos rins do tamanho de uma azeitona – que exagero! Mas tem gente que adora exagerar doença, como se isso fosse motivo de orgulho, vê se pode! Eu me matando pra manter a saúde com meus coopers quase diários, comendo granola, e espalhando pra todo mundo que agora eu sou um cara 100% saúde, e a turma da fila contando vantagem pra ver quem é que vai pior. É rim, vesícula, intestino. Câncer de não sei o quê. Infecção no baço, nas tripas, no estômago. Fraqueza nos ossos, nas juntas, nas articulações, e sei lá mais qual doença foi mencionada em poucos minutos de fila, só sei que me deu nojo olhar aquelas carnes frias sendo fatiadas, presuntos rosados, mortadelas alaranjadas, peitos de peru esbranquiçados, salames vermelhos, presuntadas e rosbifes, tudo da mesma cor das tripas recém-relatadas com tanto realismo e tanto detalhamento pelos meus colegas de supermercado que acabei ficando com náuseas, e por isso na minha vez só pedi queijo. 200 de Minas. 200 de prato. 200 de mussarela. Vazei.

Fui tomar um ar nas geladeiras. Manteiga. Nunca faz falta. Iogurte, para acompanhar toda aquela granola. Requeijão. Chandeles e Danetes da vida. Leites longa vida e tudo mais que foi aparecendo. E o carrinho foi aos poucos se enchendo, e nada de me lembrar do motivo daquelas compras. Volumosas compras.

Que mais? Café. Sim, café nunca é demais. Sempre tem aos montes em casa, mas não pode faltar. É o óleo das engrenagens. Impossível trabalhar sem ele. Mas como café deixa a gente muito ligado, não poderia esquecer de pegar alguns maracujás antes de ir embora, pra ficar “calminho calminho...”, como diz o comercial do Maracugina. E pra entorpecer ainda mais os nervos, um fardinho de cerveja, uma garrafa de vinho, que sugere macarrão, tomates, alho, cebola. Dizem que fica bom acrescentar cenoura no molho vermelho. Portanto, cenoura, está decidido.

Quando dobrei mais uma esquina, vi uma menina bem bonitinha em frente à gôndola dos enlatados. Estava indecisa: ervilhas, milhos, aspargos? Antes que ela se virasse e me visse, ajeitei a gola da camisa, endireitei as costas para parecer mais alto e, durante essa checagem que todos fazemos para aparentarmos ser mais interessantes do que de fato somos, me lembrei do que me levou até o Mambo naquela tarde de segunda: Listerine. Isso! A menina foi a minha senha do programa Supermarket! Nunca usei Listerine nem Cepacol em toda minha vida. Mas andava meio noiado com essa história de mau hálito. Sei lá. Noias temos sempre, cada hora uma diferente, e naquela semana, eu me lembro, a noia da vez era o bafo. Ninguém tinha reclamado de nada, nenhum amigo tinha me dado “um toque” – “Amigo que é amigo avisa quando tem pele de feijão no meio dos dentes, e o mais importante: avisa quando você está com bafo!”. Pois é, não tinha acontecido isso comigo, mas encanei que precisava comprar enxaguante bucal. Precisava. Precisava! E aí, ao ver a menina parada no corredor dos enlatados, me lembrei do Listerine. Poderia ter ido a uma farmácia. Teria economizado uma boa grana... Mas como já estava lá, catei uma lata de pepino em conserva, dei uma secada tremenda na gata, e fui atrás do meu Listerine, que me salvaria dos germes por 12 horas além de eliminar o mau hálito e a minha paranoia.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Rafael Gentile, especial para o texto

terça-feira, 17 de junho de 2014

Dilma e Joaquim: uma mulher e um homem negro no poder


por Cidinha da Silva*

Dilma é mulher e por isso, mesmo na condição de chefe de estado, foi alvo de xingamentos de ordem sexual durante a abertura da Copa do Mundo no Brasil, oriundos da ala VIP, onde se empoleiram os endinheirados beneficiados por ingressos gratuitos, simplesmente porque sua presença enobrece os eventos.

Passados os xingamentos orquestrados pela elite econômica e cultural branca presente ao estádio, a Presidenta foi defendida por mulheres (nenhuma surpresa) e parcos homens que o fizeram mais por respeito a uma senhora (símbolo da mãe, da mulher de família), do que por compreenderem de maneira profunda o teor destrutivo das representações sexistas que estão na base da alastrada e duradoura violência contra a mulher e do feminicídio, recurso vil empregado por aqueles que não atribuem qualquer valor às mulheres e à sua vida, justamente por serem mulheres e por isso, matam-nas ao mínimo sopro contrário à vontade do macho soberano.

Joaquim é um homem negro, dirigente da mais alta corte de justiça do país, achincalhado por uma entidade de classe porque um advogadozinho, membro da entidade, em busca dos holofotes destinados aos factoides políticos, desrespeita o Presidente do STF, ameaça “pegá-lo” na rua, grita dentro do Tribunal, não aquiesce ao chamamento ao equilíbrio, ao respeito às pessoas, às regras de boa conduta e à casa. Joaquim é um homem negro íntegro que reage, faz valer sua autoridade como Presidente do STF, não capitula diante do status quo que tenta acuá-lo na camisa de força de um dito temperamento irascível.

Pedagógico é observar como até a masculinidade de Joaquim é subalternizada por seus detratores, pois, de que outro homem, senão de um homem negro, se esperaria a recepção passiva a um homem (branco) que lhe pusesse o dedo no nariz e o ameaçasse em seu próprio posto de comando? Ademais, soube-se mais tarde, pelo depoimento dos seguranças que interceptaram a ação midiática do advogado, que ele estava visivelmente alcoolizado e que, se estivesse armado, “atiraria na cara do Presidente”. Mas, ainda assim, a entidade de classe conseguiu igualar a reação correta, altiva e preventiva de Joaquim Barbosa a práticas da ditadura civil-militar, porque, aos olhos deles, o homem de masculinidade subalternizada é quem deveria aquiescer diante um sujeito qualquer.

Dilma e Joaquim têm em comum a ocupação de um lugar inusitado de poder e o desconserto generalizado causado pela presença de ambos nesse lugar. A escória elitista não os engole porque são exemplo positivo para a raia miúda, porque as meninas hoje brincam de ser Presidenta, vestem as bonecas como Dilma e as bonecas presidem. Porque Joaquim Barbosa inspira milhões de mulheres e homens negros. Porque ele representa a possibilidade real de que pessoas negras ocupem postos de comando e promovam transformações simbólicas e concretas na vida material e na expectativa de uma vida melhor para os seus.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Passadas de pano padrão FIFA


por Tomás Chiaverini*

As coisas nunca saem exatamente como o planejado. Fato. E às vezes a diferença entre sonho e realidade é brutal. Ou, como dizem os americanos, shit happens. Aparentemente foi esse o caso da abertura da copa do mundo. Uma grande cagada coletiva, com o perdão do termo.

Um fiasco. Felizmente, foi um fiasco parcial, não total. E é copa, é Brasil, é futebol, todo mundo já estava na terceira latinha de Itaipava, a seleção levou de virada então bola pra frente, literalmente, e vamos ver aonde vai dar essa maluquice toda.

Mas, antes de irmos adiante, seria muito interessante ver alguém assumido a bronca. Levantando a mão, admitindo o erro e simplesmente pedindo desculpas. Nenhum cristão foi capaz, por exemplo de dizer que a abertura não funcionou, sei lá, porque a cenógrafa teve um piriri em cima da hora. E pra completar o avião dos bailarinos e cantores atrasou e tiveram de improvisar com fita-crepe, tinta spray e três cantores que estavam por aqui só pra assistir o mundial. Por isso saiu aquele espetáculo mambembe, com cara de teatro de quinta série. Acontece, foi muita pressão, assumimos o erro, mas vamos tentar fazer melhor na próxima... Nada, não houve erro, foi tudo lindo, era pra ser aquela porcaria mesmo.

E nosso brilhante neurocientista Miguel Nicolelis, o santo milagreiro das sinapses rompidas? Em vez de dizer que tudo deu certo, não seria o caso de vir a público explicar que a coisa é infinitamente mais complexa do que até ele podia imaginar? Que foi um erro prometer que um paraplégico ia levantar da cadeira de rodas, andar vinte e cinco metros por conta própria e sapecar um pimba na gorduchinha biônico à lá Tony Stark? Infelizmente não conseguimos deixar tudo pronto, a coisa não funcionou, o pobre homem ficou ali pendurado num cabide humano... Nada de novo. Pra ele também não houve erro. Só da Fifa e da Globo, que não deram mais tempo pro fiasco.

E o pênalti? Fred, Felipão, vamos parar de lero-lero. Vamos sair a público, respirar fundo e admitir que foi isso mesmo. Desesperamos e apelamos pro jeitinho brasileiro. Enganar o juiz faz parte do jogo. Não é bonito, não é ético mas assim fomos forjados, e foi o jeito que encontramos pra nos mantermos ali, na luta, carregando duzentos milhões de brasileiros na ponta das chuteiras. Só nos resta, portanto, pedir as mais sinceras desculpas...

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Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Drama de raiz


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Tudo começou quando a perfessorinha Juliana desembarcou na vila de Santa Fé, contratada para abrir uma pequena escola rural. Sem saber, chegou desautorizando o “dono” da vila, o coroné oligarca, desafeto político do prefeito, pois foi este que decidiu criar a escola, atraindo automaticamente a ira daquele. A simples visão de Juliana desarmou o capanga preferido do coroné, o Zelão. Sujeito muito temido nas redondezas, sempre acompanhado de suas “meninas” em ponto de bala, prontas para uns tiros a mando do patrão. Malvadeza para consumo externo, pois, do lado de dentro do seu figurino de toureiro, Zelão é sensível e delicado. Foi tomado por um sentimento inesperado, que ocupa todo o espaço e lhe tira o ar, e o faz chorar à simples menção do nome da perfessora, numa atuação comovente em cada detalhe.

Zelão me fez lembrar daquele outro matuto consumido pela paixão, que pediu à amada que dissesse o que queria como prova de seu amor, disposto a matar e roubar, apesar das tristezas que ela lhe causava. Não hesitou quando ela pediu que partisse imediatamente e lhe trouxesse o coração de sua velha mãe (a dele). Apavorada com o que pudesse acontecer por seu pedido zombeteiro, a moça não teve tempo de evitar a sangria que se seguiu. Estória narrada por Vicente Celestino numa canção que é um primor de tragédia cabocla, e sempre me diverte cantar nas rodas de cantoria à toa.

Juliana também se assusta quando se dá conta do efeito que causa no pistoleiro analfabeto, e que só percebe quando ele próprio lhe diz como se sente. Tamanha reação à sua presença a desconcerta e comove. Impossível ficar indiferente. E o Zelão é, na verdade, um apaixonado ingênuo, que conta para deus e o mundo seu plano de roubar a perfessora e levá-la para viver com ele em seu rancho na roça. Mais romântico, impossível. É dissuadido por todo mundo, sob o simples argumento de que Juliana não está na mesma onda, e desiste do plano. Veremos como esse causo vai se desenrolar nos próximos capítulos de “Meu pedacinho de chão”, novela das seis da tarde (horário de gente desocupada). Seduziu-me (a novela) pelo enredo entre ingênuo e provocativo, os figurinos e cenários lisérgicos e o elenco afiadíssimo. Todos falando em legítimo caipirês paulista, uma delícia.

O moço da canção e o Zelão da novela estão tomados por um sentimento que conhecemos, não é? De repente, você se depara com argum arguém – como dizem na novela – que provoca um terremoto lá dentro. Essa pessoa nos transborda e desorienta. Nenhum outro tema tem sido tão explorado ao longo da história humana, pela literatura, cinema, teatro, telenovelas, incontáveis canções, psicanálise e afins. É responsável por agruras e alegrias infinitas, porque a paixão é a mãe e o pai dos extremos. Nada fica no meio do caminho, a menos que se transforme em outra coisa, outro sentimento, o que pode acontecer ou não. As paixões são únicas.

Mas eu desconfio que a do Zelão vai por um caminho virtuoso. Algo me diz que o que o arrebatou na perfessorinha Juliana foi a imensidão do conhecimento e do mundo exterior que ela representa, que antes não existiam para ele, confinado a um lugar e a uma vida de dimensões mínimas, agora já invadidos pelo fascínio da leitura e da escrita. Terá sido uma beleza de solução para um sentimento tão sofrido. Torço para que seja isto.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Nem toda fogueira é de São João

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

(Episódio 10)


por Fernanda Pompeu   ilustração Fernando Carvall

em casa, quando eu era criança, não havia exatamente uma biblioteca. Modestamente tínhamos uma estante de livros. Eram todos do meu pai, comunista e sindicalista. Logo que aprendi a ler, passei a prestar atenção nos títulos. Puxo de memória: Que fazer?; O 18 Brumário; Capitães da Areia; O Capital; Ganhando meu Pão; O que é o Materialismo Dialético; Assim Foi Temperado o Aço; A Comuna de Paris, Aladim e a Lâmpada Mágica - este último reservado para quando nós, os filhos, começássemos a ler de verdade.

Quinze dias depois do Golpe de 1964, meu pai foi preso. Minha mãe passou um tempo sem saber para aonde o levaram. Ficou compreensivelmente apavorada. Existia uma histeria civil pró-golpe, com mulheres e carolas fazendo marchas em nome de Deus, da Pátria, da Família. O demônio da hora era o comunismo. Da mesma forma que hoje dizem que tudo é culpa da Copa, cinquenta anos atrás era culpa de Cuba e de seus simpatizantes brasileiros.

Meu pai adorava o partido comunista e adorava Cuba. Minha mãe adorava meu pai. Eu adorava os dois. Nesse adora, adora, o fato é que vi mamãe - junto com uma amiga - pegar todos os livros da estante e levá-los para o quintal da casa. Um parêntesis para descrever o quintal (tinha um pé de jabuticaba, antúrios à vontade, uma pilha alta de tijolos - onde eu e meu irmão, Júlio, brincávamos jogos sem fim).

Fiquei observando as duas mulheres. Elas empilharam os livros na terra batida, umedeceram os volumes com álcool, ao mesmo tempo que minha mãe gritava: "Pra longe, pra longe! Não quero nenhuma criança aqui!" Mas eu fiquei paralisada. Em choque vendo os livros de papai arderem. Perguntei o porquê. Mamãe respondeu: "Os livros são perigosos. Seu pai já está preso, mas a polícia pode voltar aqui".

Não voltou. Passados dois meses, mamãe descobriu onde meu pai estava. Começou a fase das visitas dominicais à cadeia. Mas isso é assunto para outro episódio. O que também me lembro é que, na noite que sucedeu à cremação dos livros, peguei meu boneco de pano - o Zequinha - e cortei ele em pedacinhos. Nunca havia contado a morte do Zequinha para ninguém. A verdade é que a cena estava debaixo do tapete da memória. Não sei a razão da lembrança. Mas agora que recordei, decidi contar para vocês.

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Letra e forma


por Celso Vicenzi*

Ganhei de presente de aniversário, do Vinicius, meu filho, uma caneta com ponta de metal e pena de ave. “Para inspirar sua escrita e seus pensamentos, hoje e sempre”, escreveu-me num cartão com letra vacilante, igual à do pai. Sofri muito, quando criança, por causa da minha caligrafia. De tanto ouvir reclamações, passei a escrever em letra de forma. Não adiantou muito.

A arte de traçar belas letras se perdeu no tempo. Hoje está em extinção. Alguns poucos calígrafos ainda vivem do ofício de escrever convites, diplomas e outras peças com requintes de elegância e suavidade. A letra cursiva esteve presente na história da humanidade desde a invenção do alfabeto – que para ironia dos “especialistas”, como disse Millôr, foi inventado “por um analfabeto”.

A história da escrita é fascinante e merece ser conhecida nesses tempos em que tudo precisa ser executado às pressas e o diferente cede lugar à uniformidade. Da alimentação à música, das festas à arte, tudo aquilo que é mais peculiar a um povo vai cedendo lugar à massificação dos conteúdos e à difusão de práticas que atendem aos interesses da indústria cultural.

E já que os tempos são outros, procure na internet por “Livro de Horas”, um gênero medieval que continha orações e salmos para várias horas do dia e que eram obras realçadas por iluminuras (pinturas ornamentais). É de encher os olhos e a alma. Outros livros antigos eram elaborados com grande requinte. Impossível não admirar a habilidade de calígrafos que, com um simples movimento da mão, preenchiam pele, papiro ou papel com traços finos, médios e grossos numa única letra e iam compondo textos de admirável formosura. Arte de um treinado improviso, em que não era permitido errar. Livros inteiros eram copiados por monges em letra impecável, acrescidos às margens de deslumbrantes mosaicos de cores e desenhos.

E antes que você caro leitor, cara leitora, antenado(a) no que há de mais moderno, considerem esta prosa arcaica e sem valor, vale a pena prestar atenção em estudo publicado na revista Psychological Science. A pesquisa, realizada por duas universidades americanas constatou que tomar notas no papel é melhor para a memorização de conceitos do que digitar em notebook ou tablet, por exemplo. Uma possível explicação é que as pessoas que anotam à mão precisam selecionar melhor o que vai para o papel. Ou seja, se você quer uma mãozinha para passar no vestibular ou em outro concurso, a escrita à moda antiga, com boa ou má caligrafia, pode ser fundamental.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A mala de bordo

por Júnia Puglia      ilustração Fernando Vianna*

 Desembarquei preocupada com a minha mala de bordo, que havia sido despachada da porta do avião para o porão, devido à falta de espaço nos bagageiros, entupidos pelos passageiros folgados, que sabem muito bem porque têm pressa de embarcar. Nela estavam o computador e alguma tralha eletrônica, que tinha que chegar intacta, e que eu sempre carrego comigo. Demorou um pouco, mas ela voltou pra mim. Caminhei até os guichês da imigração, com suas filas de praxe. Ao me aproximar, uma funcionária me indicou uma fila separada da multidão. Perguntei por que e ela, muito espantada, explicou que aquela era a fila das prioridades, e que seria melhor pra mim ficar ali. Pra mim e para a moça dos pés visivelmente prejudicados, apoiada em duas muletas. Pensei em argumentar que nada fazia de mim uma prioridade, cheguei a iniciar uma frase, mas logo desisti. Ela estava muito decidida.

Desejosa de mastigar comida de verdade, entrei num restaurante de autosserviço, pensando no que acabara de acontecer. Enquanto eu empurrava a tal mala, que tem alça e quatro rodinhas, e ao mesmo tempo equilibrava uma bandeja, um rapaz se aproximou perguntando se eu precisava de ajuda. Antes que eu respondesse, apossou-se da minha bandeja, de maneira delicada mas firme, e me acompanhou pelos balcões de alimentos, passamos pelo caixa e ele a depositou sobre uma das mesas livres, acrescentando, todo sorrisos: “a senhora não se preocupe com nada, fique à vontade; depois eu recolho tudo”. Percebi que ele usava uniforme do local. Que eu tenha visto, não acudiu mais ninguém, nem as três mulheres ao meu lado, cada uma com um bebê de colo e respectiva bagagem.

Mais umas duas horas esperando o voo de conexão, numa sala de embarque abarrotada, como de hábito. Chamaram o meu voo, embarque remoto. Entrei no ônibus com a bendita mala, desci do ônibus junto à escada do avião. Um rapaz com cara de trinta anos se aproximou: a senhora quer ajuda para subir a mala? Caramba! Eu, tentando não morder o cara: não, obrigada, eu ainda sou fortinha. Ele, simpático: é, eu já havia percebido; minha mãe não faria o que a senhora está fazendo.

Tudo num dia só. Comecei a achar que uma febre de gentileza havia acometido nossa linda juventude durante os treze dias da minha viagem. Ou que talvez a proximidade da Copa do Mundo esteja mexendo demais com os nossos miolos já combalidos por um período de preparação pra lá de animado. Outras possibilidades surgiram e foram rapidamente descartadas, até que se fez a luz: foi a mala que, mesmo com alça, rodinhas e peso apropriado, tocou nos corações sensíveis e os fez me verem com tanta ternura. Não consigo pensar em outra hipótese.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Racismo às avessas

por Júlio Cruz Neto*

Miséria, carência, deslumbre, sentimento de inferioridade social e racial, deve ter um pouco disso tudo. Mas pedir cadeau (presente, em francês) é sem dúvida uma marca cultural. Não fosse assim, funcionários de hotéis chiques de Dakar não reivindicariam também suas lembrancinhas junto a hóspedes que tomam sol na piscina. Isso vale para hóspedes brancos, queridinhos e tratados a pão de ló. Porque se for negro, talvez nem possa ser hóspede.

Para o jornalista senegalês Khalifa Ndiaye, acompanhar o Rally Paris-Dakar é um teste de paciência mais duro do que para qualquer outro repórter. Mais do que perrengue, saudade de casa ou qualquer outro sintoma tradicional, ele convive com rejeição e preconceito. Basta descer a escada do avião de imprensa para ser abordado por militares (negros) com uma truculência que faz os PMs de São Paulo ou Rio parecerem lordes, e constrangido a explicar o que está fazendo ali e como conseguiu uma credencial.

Com o argumento de que ele a roubou ou encontrou no chão, querem sempre tirá-lo do meio dos brancos e levá-lo sabe-se lá para onde. Os colegas com mais anos de Saara e mais fluência no francês intimam os milicos. Khalifa, acostumado a essa situação corriqueira, pede calma. Está no meio do deserto, longe do Senegal, em lugares onde igualdade de direitos não existe sequer como conceito teórico, quanto mais na prática. Sem levantar o dedo para ninguém, acaba sempre se virando. Depois, dá o troco com o cérebro, escrevendo o artigo “Racismo às Avessas” para o jornal Le Soleil.

Dakar, 17 de janeiro de 1999. Quando a caravana do Granada-Dakar finalmente chega ao fim, Khalifa respira aliviado. Está em sua cidade-natal, protegido, longe dessas pessoas neuróticas e racistas que o tratam com desrespeito, desprezo e violência, negros que agem como os brancos que tomaram de assalto a África e a dignidade de sua gente. Pelo menos é o que pensamos.

Saio do quarto e, enquanto caminho pelo extenso corredor do oitavo andar do hotel até o elevador, encontro o amigo. Ambos com a sensação duplamente boa de missão cumprida e encerrada, de olhar para trás e ver uma cobertura inesquecível e impagável, de olhar para frente e ver uma cama para dormir, um restaurante para comer, o lar para voltar, pessoas queridas para rever.

Descemos de elevador, ele e eu, encontramos outros repórteres que também estão indo acompanhar a premiação e por pouco não damos uma surra bem dada no gerente do hotel, senhor branco e francês que, pensando ser um sinhozinho dos tempos do império colonial, começa a gritar com Khalifa, querendo que deixe o hotel. Mas desta vez ele está em casa e desconta todo o rancor acumulado durante dias de humilhação. Não perde a classe, não agride, mas responde à altura e deixa claro que aquilo não é nenhum navio negreiro. Bizarro!

* * * * * * * * *

(Este é um trecho inédito do livro Caranguejo do Saara, do jornalista Julio Cruz Neto, que cobriu duas vezes o Rally Dakar, quando ainda era disputado na África, e agora resolveu fazer uma crônica sobre os bastidores da competição. Para poder editar e publicar o livro, ele entrou num crowdfunding, uma espécie de “vaquinha” virtual em que as pessoas compram cotas para ajudar o projeto, mas com a vantagem de receber recompensas em troca, como exemplares do livro, itens originais do Dakar autografados por pilotos brasileiros e outras. Apoie você também clicando em http://www.ecodobem.com.br/caranguejodosaara.)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Discoteca de músico: Bruna Caram


por Marcos Grinspum Ferraz  Ilustração de Victor Zalma*

Foi ouvindo ela cantar em pequenas rodas de violão com amigos que tive os primeiros contatos com a musicalidade da Bruninha. Ou melhor, da Bruna Caram, como é mais conhecida. E eu ficava ali olhando impressionado, com a potência e, ao mesmo tempo, doçura daquela voz – quando ela cantava canções como “Maré Baixa” (Diego Casas/ Daniel Altman) e “Catavento e Girassol” (Guinga/ Aldir Blanc), entre outras, acompanhada pelo Diego no violão.

Isso faz quase dez anos, mas a gente já sabia, naquela altura, que a coisa ia longe. Hoje, com apenas 27 anos, a Bruna já tem três discos lançados – “Essa Menina” (2006), “Feriado Pessoal” (2009) e “Será Bem Vindo Qualquer Sorriso” (2012) – e uma carreira consolidada. E se faz tempo que não a vejo cantar em pequenas rodas de violão, sigo acompanhando sua voz pelas rádios ou em shows por aí.

Pois bem. Depois de Tim Bernardes (leia aqui) e Rashid (leia aqui), Bruna Caram é a terceira entrevistada da série “Discoteca de Músico”, que mensalmente traz um artista respondendo às mesmas cinco questões, sobre discos e videoclipes que marcaram seus caminhos na música e na vida. Discos e vídeos antigos ou atuais, já que parto aqui da constatação de que música boa não para nunca de ser produzida.

A ideia da série é ter, no fim do processo, uma espécie de discoteca/videoteca virtual feita pelos músicos – de variadas idades e adeptos de diferentes estilos –, voltada para o público que quer conhecer mais os artistas ou mesmo que busca sugestões do que ver e ouvir.

Um disco brasileiro que marcou sua formação musical
“Elis e Tom”. Conhecer o trabalho da Elis, quando eu ainda era adolescente, não mudou, mas confirmou meu destino. Já cantava desde menina mas não tinha consciência de que isso poderia ser um trabalho, um sacerdócio sério, uma profissão, já que aprendi a cantar em casa, e na minha família todo mundo faz música para se divertir e estar junto. Algo dentro de mim procurava o lado seríssimo de cantar. Esse lado eu reconheci no trabalho da Elis. E Tom, meu amor da minha vida, eu aprendi a ouvir com minha mãe. Minha tia Ana Caram gravou com Tom num dos discos dela e eu desde menina pensei nele como um grandioso maravilhoso parente distante. A união desses dois marcos da minha vida num só álbum é imbatível, é meu disco número 1.

Um disco gringo que marcou sua formação musical
Vocês me perdoem por citar uma coletânea. Pode soar mal educado! Rs! Mas acho que os álbuns originais da Piaf nem existem a não ser em vinil, total raridade, e a realidade é que eu sou dessa era internética do download. O disco gringo que me vem mais forte à memória e ao coração é “Non Je Ne Regrette Rien”, uma compilação de canções na voz da Edith Piaf, uma das minhas maiores referências na carreira. Pela maneira de cantar extremamente sincera e intensa. Com Piaf aprendi que o grande cantor precisa emocionar não só através da letra, mas para além dela. Nunca falei muito bem francês, mas sempre chorei e ri ouvindo Piaf. Isso sempre me inspirou. Esse é o tipo de cantora que eu gosto de ouvir e que eu vou passar a vida tentando ser.

Um disco lançado nos últimos anos que te marcou profundamente
“Back to Black”, da Amy Winehouse. Vigoroso, doloroso, quente, dançante e verdadeiríssimo. Amy talvez seja a cantora que mais amei nos últimos 10 anos.

Um videoclipe que marcou sua formação
Sinceramente? “Remember the Time”, do Michael Jackson! Um dos meus maiores amores também! E embora minha música não esteja muito claramente relacionada à dele, a minha marca registrada, de unir todas as artes no palco – música, dança, teatro – tem muito, muito, muito da influência de Michael Jackson. Meu pai era muito fã e eu e meu irmão quando crianças víamos esse clipe duzentas mil vezes, chocados com a cena em que ele se dissolve, dourado-mágico. Música é mágica.



Um videoclipe lançado nos últimos anos (nesta década) que te marcou profundamente
“It's Oh So Quiet”, da Bjork. Nasceu clássico! Tudo o que eu amo: dança, música, cor, humor, interpretação, intenção, dinâmica, tudo num clipe absolutamente fantástico. Aplaudo!




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Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins. llustração de Victor Zalma, especial para a série

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Arquétipos do busão

por Maria Shirts*

Quem anda de busão já deve ter notado que o transporte é cheio dos arquétipos.

Só de cobradores eu consigo tipificar uns 3. Por exemplo:

O cobrador que dorme

Quem usa o Bilhete Único não se relaciona com o cobrador que dorme . Mas quando a tarjeta eletrônica se esvai de créditos, é preciso passar por aquela situação do sorriso amarelo na cara, da delicada-cutucada na mão do sujeito que abre os olhos, assustado, enquanto pega o dinheiro estendido no ar.

O cobrador sociável

É o mais bacana dos cobradores. Faz piada, enche o saco do motorista e te conta milhões de casos que, provavelmente, não aconteceram de verdade. É o Forest Gump dos cobradores.

O cobrador xavequeiro

Tá sempre de óculos escuros e escutando música. E mesmo com os olhos escondidos é possível saber que ele mira a bunda de todas as meninas que passam pela catraca.

Falando em escutar música, quase todo ônibus tem o cara da música alta, que pode não ser o cobrador xavequeiro, mas sim um passageiro inconveniente que acha que todos merecem partilhar de seu gosto melódico. Quem não quer cantar junto que ponha os fones de ouvido, oras.

Do fone de ouvido

Sou eu, no caso. Fico balançando a cabeça junto do balancê do busão e paro de cantar, um pouco avexada, quando percebo que estou sendo observada por exceder os decibéis permitidos a uma cantante amadora no transporte público.

Do escandaloso do celular

Ele não fala, mas berra ao telefone móvel. Apesar da indiscrição, devo confessar que eu gosto um pouco do escandaloso do celular porque eu adoro ouvir conversa alheia. Quase sempre rende uma boa crônica.

Do babão

Aquele que dorme. Profundamente. (Eu não sei como essas pessoas não perdem o ponto. Ou perdem, né, vai saber.)

Do perdido

Para o busão pra perguntar pra onde ele vai, empata a fila da catraca pra perguntar onde para, não sabe se senta ou fica de pé e atrapalha toda dinâmica espaço-temporal do coletivo.

Do antisocial

É o que eu mais desgosto: senta na cadeira do corredor só para evitar que as pessoas sentem do seu lado. Constrangidos, os demais passageiros desistem de pedir licença para sentar na janela e escolhem outro assento.

E, por fim, há o motorista alucinado que simula cenas de Velocidade Máxima com gosto.

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Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana.
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