Miséria, carência, deslumbre, sentimento de inferioridade social e racial, deve ter um pouco disso tudo. Mas pedir cadeau (presente, em francês) é sem dúvida uma marca cultural. Não fosse assim, funcionários de hotéis chiques de Dakar não reivindicariam também suas lembrancinhas junto a hóspedes que tomam sol na piscina. Isso vale para hóspedes brancos, queridinhos e tratados a pão de ló. Porque se for negro, talvez nem possa ser hóspede.
Para o jornalista senegalês Khalifa Ndiaye, acompanhar o Rally Paris-Dakar é um teste de paciência mais duro do que para qualquer outro repórter. Mais do que perrengue, saudade de casa ou qualquer outro sintoma tradicional, ele convive com rejeição e preconceito. Basta descer a escada do avião de imprensa para ser abordado por militares (negros) com uma truculência que faz os PMs de São Paulo ou Rio parecerem lordes, e constrangido a explicar o que está fazendo ali e como conseguiu uma credencial.
Com o argumento de que ele a roubou ou encontrou no chão, querem sempre tirá-lo do meio dos brancos e levá-lo sabe-se lá para onde. Os colegas com mais anos de Saara e mais fluência no francês intimam os milicos. Khalifa, acostumado a essa situação corriqueira, pede calma. Está no meio do deserto, longe do Senegal, em lugares onde igualdade de direitos não existe sequer como conceito teórico, quanto mais na prática. Sem levantar o dedo para ninguém, acaba sempre se virando. Depois, dá o troco com o cérebro, escrevendo o artigo “Racismo às Avessas” para o jornal Le Soleil.
Dakar, 17 de janeiro de 1999. Quando a caravana do Granada-Dakar finalmente chega ao fim, Khalifa respira aliviado. Está em sua cidade-natal, protegido, longe dessas pessoas neuróticas e racistas que o tratam com desrespeito, desprezo e violência, negros que agem como os brancos que tomaram de assalto a África e a dignidade de sua gente. Pelo menos é o que pensamos.
Saio do quarto e, enquanto caminho pelo extenso corredor do oitavo andar do hotel até o elevador, encontro o amigo. Ambos com a sensação duplamente boa de missão cumprida e encerrada, de olhar para trás e ver uma cobertura inesquecível e impagável, de olhar para frente e ver uma cama para dormir, um restaurante para comer, o lar para voltar, pessoas queridas para rever.
Descemos de elevador, ele e eu, encontramos outros repórteres que também estão indo acompanhar a premiação e por pouco não damos uma surra bem dada no gerente do hotel, senhor branco e francês que, pensando ser um sinhozinho dos tempos do império colonial, começa a gritar com Khalifa, querendo que deixe o hotel. Mas desta vez ele está em casa e desconta todo o rancor acumulado durante dias de humilhação. Não perde a classe, não agride, mas responde à altura e deixa claro que aquilo não é nenhum navio negreiro. Bizarro!
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(Este é um trecho inédito do livro Caranguejo do Saara, do jornalista Julio Cruz Neto, que cobriu duas vezes o Rally Dakar, quando ainda era disputado na África, e agora resolveu fazer uma crônica sobre os bastidores da competição. Para poder editar e publicar o livro, ele entrou num crowdfunding, uma espécie de “vaquinha” virtual em que as pessoas compram cotas para ajudar o projeto, mas com a vantagem de receber recompensas em troca, como exemplares do livro, itens originais do Dakar autografados por pilotos brasileiros e outras. Apoie você também clicando em http://www.ecodobem.com.br/caranguejodosaara.)
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