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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

História Universal do Desperdício

por Ricardo Sangiovanni*

Meu tio me acha um desperdício. Não é maledicência, é bem-querer: pois tenho, ele diz, inteligência como em rara gente se encontra (perdoem o pobre: ele me viu nascer), devia estar era figurando nos altos escalões, sendo um da família a ter virado alguém.

Já poderia ter ficado rico, ou estar ficando. Calma lá também, que dinheiro não é tudo; mas é que gente assim inteligente merece mais é ter tudo do bom e do melhor: morar numa coberturazona no Corredor da Vitória, e ter carrão sim; não é pra morar em predinho feio, com esse carrinho de pobre envelhecendo no sol da vaga descoberta.

Assim diz meu tio. Assim subo do porão onde me empreguei como arraia miúda certo de ser um desperdício. Sim, mas que homem nesse mundo não é um desperdício? Que homem não é menos do que poderia, nesta terra patrimonialista em que subir na vida é, se muito, coisa franqueada a umas cepas de "inteligentes" ou de "fortes", de "bonitos" ou "espertos" no lugar e hora certos para serem incorporados ao sistema, nosso magnífico sistema social de ascensão pela exceção?

Não quero ser exceção de nada, não desejo o que se promete às exceções: quero mais é ser desta classe dos desperdiçados mesmo. Somos uns desperdícios, eu e meus colegas de todos os porões onde se sonha com a transformação das gentes e do mundo pela inteligência e pela educação, pelo talento e pelo trabalho, por tudo enfim de diverso que nos faça mais iguais. Nós, mas também os que ganham a vida correndo atrás de nós e dos mais pobres que nós: é que no fundo somos todos, maltrapilhos e engravatados, os da Federação e os da Vitória, cabos e coronéis, parangolés e barões, uns subaproveitados no que de melhor nos vai na alma. Somos a História Universal do Desperdício.

Aí, em minha fantasia, resigno-me a sentir-me mais rico que o maior dos magnatas quando desfruto a fortuna que meu empreguinho proporciona, que é encerrar o expediente às catorze, e subir a tempo de alcançar o sol ainda alto, e comprar um cacho de bananas, e olhar o jeito do povo, e ficar secretamente à espreita, à espera de, num dia desses, avistar dobrando a esquina uma multidão fazendo a revolução, e ir atrás dela, e não voltar nunca mais.

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Ricardo Sangiovanni, jornalista, mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Corrida maluca

por Carlos Conte*

Antes das 7 da manhã ainda é possível pegar 90 km/h na Marginal Pinheiros. Não há outra razão numa via expressa senão correr. E os caras metem o pé mesmo, inclusive eu. Acordo mais cedo só pra desfrutar desse prazer cada vez mais raro numa cidade congestionada.

André Gorz já havia anunciado o “apocalipse motorizado” (isso em 1973!): “o carro, como uma mansão à beira-mar, é somente desejável e vantajoso a partir do momento em que a massa não dispõe de um”, já que, segundo o filósofo, é impossível democratizar um bem de luxo sem diminuir o gozo de quem faz uso dele. Mas o problema é que o carro no Ocidente tornou-se “vaca sagrada”, em vez de ser tratado como deveria: um “luxo antissocial”. Diante do caos, o que fazem as pessoas motorizadas? Saem de casa cada vez mais cedo, pois continuam querendo gozar do privilégio de ter um carro. Inclusive eu. Sei que depois de um determinando horário a coisa engrossa. 7 da manhã. 7 milhões de automóveis nas ruas da cidade. Uma imagem que a mídia adora: uma fila de 7 milhões de carros é o suficiente para dar a volta ao mundo. Preciso chegar no Jabaquara às 7h15. O sinal da escola toca às 7h20. Professor não pode atrasar. Talvez seja uma das profissões em que o atraso é menos tolerado. Por isso, tenho tudo devidamente cronometrado. Nem pensar em me dar ao luxo, um luxo matinal do qual todos deveriam ter direito, de cagar, tomar café e ler o jornal, ou tomar café e ler o jornal cagando, ou ler o jornal e cagar tomando café... Não importa a ordem. Só sei que nos finais de semana faço tudo isso simultaneamente, só pra esbanjar.

24 de março, 15 minutos para as 7, cruzo a ponte da Cidade Universitária e aos poucos vou entrando na Marginal, sem dar seta (porque há tempos a seta da esquerda não funciona), primeiro pela via local, depois a expressa, onde automóveis, motos e caminhões, em alta velocidade, disputam furiosamente cada metro de pista, cada segundo do relógio. E pensar que estávamos todos dormindo alguns minutos atrás...

Às vezes acelerar torna-se um fim em si mesmo: estou adiantado, mas se posso correr, por que não fazê-lo? Piso no acelerador pelo prazer de correr, de ver os outros carros ficando para trás, como se ultrapassar veículos somasse pontos numa corrida maluca sem fim. E sem sentido. Meio sonolento, chego mesmo a esquecer pra onde estou indo, ouvindo no rádio o repórter Luiz Carlos Gertel falando que o sol vai aparecendo aos poucos entre nuvens e que o trânsito já vai mal nos principais corredores da cidade... A mesma coisa de sempre.

Quando chego à pista 3 (são 7 ao todo), um Palio cola perigosamente na minha traseira, mas finjo não dar importância. Que me passe pela esquerda, se quiser: hoje estou zen. Mudo de estação. Sei que mexer no rádio ao volante é um ato repreensível, mas faço isso com frequência. Está falando agora o professor Mário Sérgio Cortella: “Pensar bem nos faz bem, então vamos pensar juntos...”. Quando me dou conta, o Palio já me passou, agora está na pista 1, à minha esquerda, colado na traseira de um Corsa, que por sua vez está colado em outra traseira, isso a mais de 70km/h, até que a fila deles breca abruptamente: não há tempo, o Corsa freia, arrancando fumaça do asfalto, e entra com tudo na traseira do carro da frente, que é jogado imediatamente contra o carro seguinte... o Palio, por sua vez, se enfia na traseira do Corsa – strike! –, outro dá de cara na bunda do Palio, o seguinte tenta em vão manobrar para a direita, e fica praticamente sobre duas rodas, mas acaba destruindo a lateral dos outros carros, levando consigo retrovisores, lascas da lataria, estilhaços de vidro, até se chocar contra outro carro que vinha pela pista 2 a toda velocidade... E quando parece que as coisas enfim se acalmam, um carro semidestruído, vindo de não sei onde, cruza a pista à minha frente e, cambaleando, para na pista 4.

Apesar de tudo, continuo avançando mais alguns metros e só paro quando percebo que estou arrastando alguma coisa. Ligo o pisca alerta. Vejo que outros carros estão fazendo o mesmo. Há um retrovisor enorme de camionete preso entre o chão e o protetor de carter do meu Peugeot.

Por trás de uma neblina de pneu queimado, vejo atrás de mim carros destruídos, air bags inflados, vidros estilhaçados. Motoristas descem dos veículos falando no celular; outros, perplexos, continuam segurando o volante... A princípio, ninguém preso nas ferragens ou seriamente ferido. Carros desviam do engavetamento pelas pistas da direita. Não sou médico. O resgate certamente está a caminho. Vejo que o melhor a fazer é dar o fora dali.

Numa metrópole como São Paulo, ficamos tão habituados às tragédias da civilização que acabamos desenvolvendo um mecanismo de defesa muito peculiar: a indiferença. Sabe quando a gente se esquece de um sonho e só vai se lembrar dele mais tarde, horas depois, às vezes dias depois? Pois foi isso que aconteceu nesse dia. Trabalhei a manhã inteira como se nada tivesse acontecido. Até que no almoço, entre uma garfada e outra, a imagem do acidente voltou, e junto dela pensamentos sombrios sobre o futuro desta cidade. Pensei nas pessoas acidentadas e, claro, me senti culpado. Sentindo raiva de tudo, e sobretudo de mim mesmo, terminei o almoço, paguei a conta, e fui buscar meu carro.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Do baú


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna

Das pequenas surpresas que aprecio muito: acabo de ver um vídeo de um famoso grupo de samba cantando e tocando "Mercedes-Benz", clássico da contracultura (ironia à parte), que debocha dos valores e símbolos de riqueza e status, composto e gravado por Janis Joplin em 1970. Tão, mas tão definitivamente Janis, que não esperava ouvi-lo em outra voz, muito menos em ritmo de samba. É óbvio que se trata de uma brincadeira, mas muito competente e divertida. (Se tivesse sobrevivido a toda aquela loucura, e depois de ajudar a virar a cultura judaico-cristã ocidental de pernas pro ar, talvez Janis estivesse hoje "em casa, guardada por Deus, contando o vil metal". Nunca saberemos.)

Daí, sabe como é, a memória abre o baú e eu me lembro de, por volta dos doze anos, sentir a mesma surpresa com o inusitado ao ver Jair Rodrigues, no auge da fama e popularidade, cantando lindamente a valsa "Eu sonhei que tu estavas tão linda", ao vivo, num programa de televisão. Achei muito estranho, não sei se por vê-lo cantando uma canção derramada, ou por ele não estar se sacudindo todo no palco enquanto cantava. Talvez pelas duas coisas. Ficamos todos em casa muito impressionados com a beleza daquela interpretação, rendeu vários dias de comentários.

E um rápido presencial: em Nova York, durante uma conferência mundial, uma jovem militar brasileira, que integrava a comitiva de alguma autoridade, buscava alguém que a fotografasse no plenário da ONU, enquanto rolava um pronunciamento da delegação brasileira (faltava muito para a era selfie). Estava ansiosa por registrar o momento e estrear a câmera digital recém-comprada, uma grande novidade. De forma aleatória, aproximou-se de Nair Benedicto (vai no Google!) e perguntou se poderia lhe fazer o favor. Ato contínuo, passou a explicar como se operava a máquina, insistindo no detalhe do foco e da visualização na tela de dois centímetros, que substituía os visores mínimos das máquinas analógicas. Nair, muito compenetrada, ouviu as explicações e orientações e partiu para a tarefa, deixando sob nossos cuidados seu precioso e completíssimo equipamento e os quilos de filmes que havíamos comprado na véspera. Ficamos de longe saboreando a cena e anotando a dedicação da fotógrafa "ocasional". Aposto que a moça nunca se deu conta de quem estreou sua câmera.

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 Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Dor sobre dor


Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall

Flávio Carvalho Molina
Nascimento: 8 de novembro de 1947
Cidade natal: Rio de Janeiro - RJ
Prisão: 6 de novembro de 1971
Cidade final: São Paulo - SP
Causa da morte: tortura

Procurar pelo corpo de Flávio - ex-militante estudantil, ex-integrante do Molipo, Movimento de Libertação Popular - exigiu lágrimas, determinação, lágrimas de seus familiares e amigos. Até que surgiu uma pista no Cemitério Dom Bosco, em Perus, São Paulo. Finalmente seria possível prantear o morto? Não. Começou o triller de terror para a identificação da ossada, em 200 temporadas. Descaso, empurra-empurra, indiferença, ineficácia do Estado. Depois de quinze anos de lengalenga, os restos mortais de Flávio Carvalho Molina foram entregues à família.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto Fernando Carvall é o homem da arte

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Here, There and Everywhere – os dilemas de uma “esquerda pragmática”

por Nina Madsen, de Washington, DC

E finalmente chega a vez de Hillary. A pré-candidatura esperada, tentada, adiada e cozinhada por tantos anos, apresentou-se alguns dias atrás. Sem muito alarde, com um vídeo na rede seguido por uma agenda de viagens para encontros e diálogos com a sociedade americana.

Logo que cheguei por aqui, os noticiários exploravam, à exaustão, a história da conta de e-mail – em algum momento, no início da gestão Obama, Hillary tomou a estranha decisão de usar apenas uma conta de e-mail, a sua pessoal, para administrar mensagens oficiais e mundanas. Seria um ato de ingenuidade atroz, não tivesse vindo dela, de dentro da Casa Branca.

Mas o fato é que a história veio a público e virou um pequeno escândalo, com alto potencial desestabilizador. Para meus olhos, tinha pinta de sangria de pré-candidata. Mas não colou e ela seguiu, como se, agora, nada nem ninguém pudesse detê-la. E a pré-candidatura se anuncia quase que definitiva pelo Partido Democrata. Nenhuma outra se emparelha, não há real disputa no horizonte.

Fato praticamente consumado, começa assim o primeiro ato.

À esquerda de Hillary, as pedras vem com força. “O menos pior de dois males” [uma referência a ela e ao Republicano Rand Paul] e “cínica oportunista” foram duas que catei dia desses ouvindo o rádio. As comparações com Margaret Thatcher abundam e, francamente, só fazem denunciar a absurda escassez de referências femininas nos altos postos de liderança política mundo afora. Todas se parecem com Thatcher, uma incrível coincidência...

Acusam Hillary de estar à direita de Obama, e de representar uma ala do Partido Democrata mais aberta ao livre mercado (como se houvesse alguma força política realmente opositora a ele por essas bandas...) e até algumas bandeiras republicanas, como a revisão do “ObamaCare”, por exemplo. As defesas são mais tímidas e contidas que os ataques. Não negam esse posicionamento da candidata, mas o definem como o necessário pragmatismo que os tempos atuais exigem. Soa familiar?

Os mais esperançosos afirmam que surpresas podem aparecer pelo caminho. Um artigo da revista The New Yorker (veja aqui), por exemplo, menciona a possibilidade de um programa político desenvolvido a partir dos insumos de um amplo e denso relatório do Center for American Progress (CAP) sobre a situação geral das desigualdades do país. Trata-se de um documento que apresenta propostas como o aumento do salário mínimo e o fortalecimento de sindicatos como caminhos a serem adotados.

E há as que defendem sua candidatura pela oportunidade da conquista histórica de se ter uma mulher à frente da Casa Branca. Sabemos bem que, em se tratando do avanço de uma agenda política feminista e progressista, não basta com mais mulheres no poder se essas mulheres não se comprometem com essa agenda. Mas a promessa de Hillary é a de fazer da “igualdade de gênero” uma bandeira central de sua campanha. A ver.

Hillary não desperta paixões, não se destaca, como Obama, pela carismática e irresistível eloqüência discursiva. Sim, Obama é o cara e Hillary parece saber bem que não cabe a ela disputar esse lugar. O que não significa a ausência, entre os dois, de disputas de outras naturezas. Hillary não esconde discordâncias em relação a algumas das escolhas feitas por Obama, ainda que não tenha começado a explicitá-las publicamente.

E esse é um dado interessante. Ela é a continuidade, mas é também mudança (se para melhor, não sei...). Ela tem um projeto político coerente com o projeto mais amplo de seu partido, mas tem uma abordagem própria, com prioridades e escolhas particulares.

Difícil não comparar a dobradinha Obama-Hillary com a nossa, Lula-Dilma.

A trajetória dessas duas experiências tem um desenho político bastante parecido. Lula e Obama tiveram primeiros mandatos inicialmente comprometidos com mudanças à esquerda, com uma grande aproximação de cada governo de setores historicamente discriminados da sociedade. Seguidos por segundos mandatos marcados, na ala da esquerda, por muita desilusão da parte de alguns, e um crescente pragmatismo da parte de outros. Na ala à direita, um rancor crescente, que perdeu freios e limites. Se no Brasil, Lula despertou a fúria do elitismo rançoso, nos EUA, Obama desperta um esdrúxulo racismo xenófobo.

E eis que a esses homens, seguem-se duas mulheres “fortes”, pouco carismáticas e reconhecidamente pragmáticas. Com uma importante diferença. No Brasil, o caminho rumo à Presidência de Dilma Roussef parece ter sido bem menos traçado por ela ou por sua trajetória política, do que pelo partido e pelo próprio Lula. Hillary Clinton, ao contrário, tornou público e notório esse desejo antigo em sua disputa com o próprio Obama pela candidatura do Partido Democrata em 2008.

Enquanto Dilma se elegeu, lá em 2010, com o discurso da continuidade direta do projeto de Lula; Hillary não esconde que seu projeto tem diferenças com o de Obama.

O que será a campanha de Hillary, ainda estamos por descobrir. Os Republicanos parecem ter aprendido algumas coisas com as derrotas para Obama em 2008 e 2012. As pré-candidaturas anunciadas até aqui parecem representar desafios importantes aos planos da democrata, ainda que sua vitória já ande sendo cantada por alguns. Rand Paul, de um lado, e os meninos da Florida – Marco Rubio e Jeb Bush – de outro, são, sem dúvida, adversários relevantes.

E ficamos à espera dos próximos atos – como construirá e apresentará seu programa e sua campanha, a democrata? Até onde prevalecerá o pragmatismo de uma esquerda cada vez mais recuada em seus projetos de mudança, e em que medida será capaz de responder a uma agenda realmente capaz de promover justiça social em um país encurralado por suas desigualdades?

E se fica alguma lição do pragmatismo à brasileira, é que sem limites explicitamente demarcados, sem princípios e compromissos dos quais não abrir mão, ele inevitavelmente desemboca no isolamento e na perda de direção política. Uma combinação perigosa, como bem podemos atestar.

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Nina Madsen. Escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Desde janeiro de 2015, vive em Washington, DC – novo cenário de aventuras e leituras pelo avesso do mundo.

terça-feira, 21 de abril de 2015

José Adolfo de Granville Ponce

por Izaías Almada

Faleceu em São Paulo, com 81 anos de idade, na manhã do último dia 19 de abril, o companheiro Jose Adolfo de Granville Ponce, editor e jornalista profissional, preso no exercício de sua profissão durante a ditadura como militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) em janeiro de 1969. Como a maioria de seus companheiros na altura sofreu inúmeras torturas passando dois anos e meio na prisão, deixando o Presídio Tiradentes em junho de 1971.

Organizou com o também jornalista Alípio Freire e o escritor Izaías Almada uma coletânea de depoimentos sobre o período: TIRADENTES, UM PRESÍDIO DA DITADURA, editado pela Scipione Cultural.

Como jornalista trabalhou nos jornais Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa e Asa Press, no Rio de Janeiro, e Diários Associados, revista Realidade em São Paulo.

Alegre, comunicativo, após a sua aposentadoria costumava receber em sua casa no Jardim Previdência antigos companheiros de militância, promovendo alguns memoráveis churrascos e acaloradas discussões sobre o processo político brasileiro após a redemocratização do país.

Granva, como era chamado carinhosamente pela família e pelos companheiros, nasceu na cidade de Pirajuí, São Paulo em 16 de maio de 1933, tendo sido militante do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB), de onde saiu para ingressar na ALN, liderada por Carlos Marighela.

Deixou a companheira Maria Aparecida Baccega, professora aposentada da USP e os filhos Walter e Fabiano.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Roupa nova


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna

Acontecia uma ou duas vezes por ano e era um assunto muito sério, restrito a formaturas, casamentos ou grandes eventos religiosos. Em qualquer caso, "roupas feitas" (aquelas compradas prontas nas lojas) ainda eram raras e caríssimas, muito além das nossas possibilidades. Tudo o que nos cobria era produzido pelas costureiras da vizinhança ou por nossas mães e avós, até mesmo pijamas, calcinhas e cuecas. Ninguém perguntava às crianças o que queriam ou gostariam de vestir. O que saísse das máquinas movidas a pedaladas era vestido, geralmente nos maiores, e depois repassado a irmãs e irmãos menores, primas, vizinhos e uma enorme cadeia de aproveitamento, pois tudo era usado até acabar.

Com os sapatos era a mesma coisa, com a diferença de que, não podendo ser feitos em casa, eram recebidos e repassados entre a mesma cadeia ou, com muito menor frequência, comprados. Os novos eram reservados para as principais ocasiões e calçados com reverência. Pequenos acidentes resultavam de caminhar com os olhos fixos neles. Os da formatura da quarta série, de verniz em duas cores, branco e cinza, ocupam um lugar de destaque na memória afetiva.

Num certo verão, nossa tia nos levou, minha irmã e eu, a uma loja que acabara de receber uma grande novidade: sandálias de dedo feitas de borracha colorida azul, amarela ou verde, com solado branco na face em contato com os pés. Cada uma de nós ganhou um par, e até pudemos escolher a cor. Recebemos nossas primeiras havaianas dentro de sacos plásticos amarrados com barbante colorido, fascinadas, de longe o acontecimento mais importante daquelas férias.

Também ficou gravado na minha biografia o episódio do vestido pesado, de veludo vermelho, herdado de uma prima, que maravilhou mãe e tias, mas que eu detestei completamente. Além de a textura do veludo me ser insuportável, dentro dele eu ficava parecendo a gata borralheira numa roupa das meio-irmãs ricas. Recusei-me terminantemente a usá-lo, para enorme decepção das adultas.

Elas ainda nem desconfiavam, mas eu começava a odiar as roupas que me eram destinadas. Queria poder escolher e, entre as minhas preferências, não havia lugar para os invariáveis modelos desmilinguidos, lambidos, cheios de flores, rendas, fitas e laçarotes. Eu olhava comprido para algumas roupas nas vitrines das lojas, nas telenovelas e nas revistas, pois me pareciam cheias de personalidade e capazes de refletir algo ainda indefinível, que se tornaria para mim uma obsessão: liberdade, ou aquilo que para mim mais se parecesse com ela. Era eu começando a pensar em agir como eu mesma. Terremotos se seguiram.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Num piscar de olhos

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu ilustrações Fernando Carvall

Aurora Maria Nascimento Furtado
Nascimento: 17 de junho de 1946
Cidade natal: São Paulo - SP
Morte: 10 de novembro de 1972
Cidade final: Rio de Janeiro - RJ
Causa da morte: tortura

O que você faz com 26 anos? No mínimo, imagina ter o mundo nas mãos. Acrescente ao cenário uma ditadura militar na fase mais feroz. Acrescente ser militante de uma organização que acreditava que só balas poderiam deter outras balas. Aurora Maria, a Lola, foi parada por uma Patrulha da Invernada de Olaria. Ela estava embaixo de uma ponte do subúrbio carioca. Houve um tiroteiro e a moça matou um policial, dando cobertura para a fuga de seu companheiro. Saiu correndo, mas acabou pega. Foi torturada até a morte. Seu crânio foi lentamente esmagado por uma fita de aço que se aperta gradativamente. O torniquete é conhecido como Coroa de Cristo.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

O Galeano morreu e isso é uma merda enorme


por Ricardo Viel, de Lisboa

Era começo de 2004. Entre vinho e churrasco planejávamos uma improvável viagem a Argentina, até que Fernando disse: “E antes passamos pelo Uruguai para entrevistar o Galeano”. Todos achamos graça, menos ele. Falava sério. “O povo da Caros [Amigos] tem o contato dele, vou tentar”. Uns meses depois estávamos sentados no Café Brasilero, em Montevidéu, diante de Eduardo Galeano.

Pode soar exagerado, mas aquela conversa e aquela viagem mudaram a minha vida. Foi ali, e também por insistência do Fernando, que comecei a pensar que talvez eu poderia me dedicar ao jornalismo. Provavelmente, eu seria um péssimo advogado mesmo, mas ser jornalista se tornou um horizonte real.

As lembranças daqueles dias são confusas, embaralhadas. São, provavelmente, um acumulado das versões que fui contando, ao longo do tempo, sobre essa nossa viagem e essa nossa entrevista. Não tem importância nenhuma. O que importa é que guardo a recordação de um Galeano amável e gentil, que nos encheu de boas histórias e de afeto. Era uma entrevista, mas era sobre tudo um grupo (éramos quatro) a fazer perguntas a um escritor que admirávamos – e não há mal nenhum nisso porque nunca acreditamos que o jornalista pode ou deve ser imparcial.

“Como dicen los mexicanos, nos estamos viendo", foi o que ele, nessa primeira vez, disse ao se despedir da gente. E nos vimos, meses depois, em Curitiba. Mais abraços e palavras bonitas. E ainda o vimos uma vez mais, em Porto Alegre, naquele janeiro de 2005 que nos fez acreditar que o outro mundo estava mesmo muito próximo.

Eduardo Galeano continuou conosco. Nas muitas vezes que falamos sobre aquela entrevista; nos seus livros, que lemos e relemos; nos textos que mandamos aos nossos amigos e amadas. Nas lembranças, nas muitas lembranças.

Galeano foi uma espécie de embaixador dessa sonhada república da América Latina livre de fronteiras e preconceitos, esse espaço que alguns de nós – que muitos de nós – acreditamos ser possível de construir. Ensinou-nos a amar esse continente tão maravilhoso e desgraçado; mostrou-nos que a indignação não é incompatível com a poesia, o sonho e a beleza. Fez-nos enxergar o encanto das pequenas coisas e ver que as histórias banais, dos esquecidos (os ninguéns, os que custam menos que a bala que os mata), podem ser mais interessantes e grandiosas que a história oficial. Escreveu sobre futebol de maneira única, e disse o que todos nós tentamos dizer e não conseguimos.

A minha geração, a dos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre, teve Galeano como um de seus grandes porta-vozes. Com beleza e ternura – e com aquela capacidade de síntese invejável – ele expressou o que sentíamos, as nossas dores e amores.

Quando Saramago morreu – outro dos nossos mentores intelectuais –, Galeano disse que suas palavras continuariam vivas por meio dos seus livros, e isso era uma maneira de existir. Agora, chegou a vez do uruguaio partir. Os livros respiram, ele dizia. Seus livros continuarão respirando enquanto nós estivermos por aqui, enquanto tivermos a curiosidade de aproxima-los aos ouvidos, para escuta-los, e senti-los.

Tudo isso é verdade, mas também é verdade que a presença física, esse abraço que possivelmente nunca aconteceria (ou se repetiria), mas que poderia um dia acontecer, já nunca mais virá. Já não será possível dizer obrigado, pedir-lhe um autógrafo, ou escutá-lo falar as belezas que o caracterizam. Seus livros ainda respiram, e é esse o único conforto que resta num momento tão triste. Benedetti, Saramago, Gelman, Gabo e Galeano. São muitas mortes em pouco tempo. Muitas perdas para administrar. Certa vez perguntaram ao Luis Fernando Verissimo o que ele pensava sobre a morte. “É uma sacanagem, sou contra”, rebateu certeiro. Somos todos contra, Verissimo, ainda mais quando se trata da morte de uma figura como Galeano.

“Foi-se o Eduardo Galeano, que bosta”, escrevi ao Fernando assim que soube. Depois, já à flor da pele com a notícia, o agradeci por ter me empurrado para o jornalismo. Mas é isso, o resumo da história é este: o Galeano morreu e isso é uma merda enorme, uma sacanagem gigantesca.

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Ricardo Viel, jornalista, atualmente mora e trabalha em Lisboa, Portugal. Especial para o Nota de Rodapé

terça-feira, 14 de abril de 2015

Sete dias entre a vida e a morte

por Fernando Evangelista*

Quando acordei no hospital, depois de sete dias em coma, não conseguia me lembrar do que havia acontecido.
Não recordava do chute, nem do impacto da bola contra a minha cabeça, nem da cabeça batendo no chão de cimento. Era maio de 1987.

Eu cursava o sexto ano do ensino fundamental e, como boa parte dos adolescentes, achava o colégio uma perda de tempo e de imaginação. Suportáveis mesmo só as duas aulas de educação física em sequência, porque o professor era boa gente e ensinava esportes ao ar livre. Com três diplomas universitários – educação física, teologia e filosofia – ele unia essas formações na aula de futebol, exclusiva para meninos. As meninas faziam atividades na quadra ao lado.

“Vamos treinar cobrança de pênalti”, orientou o professor. “Antes de chutar, cada um dos senhores pegará um papel dentro deste copo plástico e vai ler bem alto, o mais alto possível, a palavra sorteada. Dentro do pote, vocês vão encontrar os sete pecados capitais, entre outras coisas. Ficou claro?”

Pecados capitais? Não, a molecada estava confusa, mas deixou por isso mesmo e eu fui para o meu lugar cativo, o gol. Eis uma lei futebolística imutável: Todo perna de pau que se preze, a não ser que seja o dono da pelota, será escalado para o gol. Ou fica na zaga dando bico pra frente.

 “Você” – continuou o professor, apontando o dedo pra mim, “deve defender cada uma destas bolas-palavras com gana e seriedade”.

Alguns anos depois, quando assisti ao filme Sociedade dos Poetas Mortos, tive certeza de que o meu professor inspirou a criação do sensível e sábio John Keating, interpretado por Robin Williams. Como no filme, os garotos tiravam os papeizinhos, gritavam o que estava escrito e chutavam as bolas em direção ao gol. Entre um chute e outro, o mestre declamava trechos de um livro do Ferreira Gullar, seu poeta favorito.

 Papel, palavra, chute, defesa, poesia. Modéstia à parte, defendi tudo. “Avareza”, gritava alguém antes de chutar. E eu defendia a avareza. Defendi também a inveja, a gula, a preguiça, a luxúria e a inveja. Os pecados estavam misturados entre os capitais e os outros, que os meninos supunham menos graves. Uma por uma das cobranças – no canto direito, no esquerdo, no alto, no ângulo – eu pegava. O vento desviava para longe os chutes indefensáveis.

O último tiro coube ao Rômulo, o brutamonte. Seu apelido era Escadinha, em referência a um famoso bandido daquele tempo. Como já tinha repetido dezenas de vezes cada um dos sete pecados capitais, o professor deu a ordem, sem sortear a palavra. “Vai, Rômulo, chuta a vida”.

Rômulo Escadinha era um sujeito revoltado com a vida. Ele tomou uma distância exagerada, pegou de bico na bola e ela voou como uma pitomba no meio do gol, diretamente contra a minha cabeça. Meu reflexo falhou e os braços permaneceram imóveis ao lado da cintura.

A bola bateu um pouco acima da testa e voltou na direção do meio-campo. Ela, a bola, não entrou – fato que considero importante registrar. Desabei para trás, provavelmente já desmaiado. Minha cabeça chocou-se contra o chão de cimento. Fiquei sete dias em coma e nunca mais me recuperei. Desisti do futebol e me apaixonei por Ferreira Gullar.

Com força, a bola da vida bateu em mim e continua batendo, insistentemente. Por mais que tente, não consigo segurá-la ou compreendê-la. Ela me confunde e escapa e então volta, sem aviso, sem cerimônia e sem manual de instruções.

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Fernando Evangelista é jornalista. Escreve às terças-feiras no Nota de Rodapé. Esta crônica, publicada aqui ano passado, foi reescrita e fará parte do livro o Piano de Casablanca (editora Insular), a ser lançado em maio.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Caras


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna

 Quem nunca folheou uma Caras atire a primeira pedra! Revista feita de fotos e comentários ligeiros, mostra celebridades – em toda a amplitude da palavra – lindas, sorridentes, ryyykhas e felizes. A bíblia das salas de espera e dos salões de beleza, onipresente, oferecendo distração para os olhos naqueles momentos em que conteúdo é o que menos importa. É só abrir e se atualizar sobre festas, casamentos, descasamentos, passeios de iate, estações de esqui, casas de praia, bebês, roupas, modelos, decoração, almoços e jantares frequentados por pessoas portadoras de cabelos lisos e louros, olhos azuis e muita maquiagem.

À parte a nossa curiosidade intrínseca sobre a vida alheia, sabemos que os felizardos retratados estão dando tudo de si para nos confirmar, naquelas expressões e frases soltas, como são satisfeitos e perfeitos. Sim, porque ninguém fala ali do quanto deseja mandar pras cucuias o marido que sai tão bem na foto, e se jogar de vez nos braços do bombeiro do condomínio. Ou do medo de ficar pobre ou cair da fama, que impede o galã de novelas de dormir e até mesmo de usufruir da sua tão prezada virilidade. Mas para nós, espectadores/leitores mortais, o que importa é a foto, sempre produzida com muita luz, cor e sorrisos, de modo a sequer sugerir interpretações.

Talvez o que realmente nos atraia nessas fotos é a sensação de que aquelas pessoas estão mesmo felizes e realizadas, por muito que saibamos o quanto tudo aquilo é falso e fabricado. Você me pergunta o que é ser feliz? Desconfio que seja, em escassas palavras, viver um grande amor e realizar com ele o seu projeto de vida, mesmo que seja um projetinho de dois meses, ou mesmo de um fim de semana. E, principalmente, nunca, jamais envelhecer. Tem Caras nova nas bancas.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Indiana, aborto e a heterocronia.

por Nina Madsen*

Nunca deixa de me surpreender a insistente e, muitas vezes, dramática convivência de avessos no campo da cultura e das mentalidades e de tudo que a partir delas se produz para regular nossa vida em sociedade. É quase como se os universos paralelos de fato se materializassem e coexistissem, permitindo que diferentes tempos históricos passassem a avizinhar-se no espaço-tempo presente.

Aplicando essa reflexão ao campo dos direitos das mulheres especificamente, a feminista Emily Hicks propôs, na década de 1960, o conceito de heterocronia, em oposição ao de sincronia, para dar conta desse fenômeno: a incoerência dos avanços, ou o descompasso entre avanços, permanências e retrocessos no campo dos direitos humanos e todas as suas derivações.

Pois a heterocronia me espanta sempre, como eu dizia. No Brasil, parece-me chocante termos gente como Erika Kokay, Luiza Erundina e Jean Wyllys de um lado, e gente como Bolsonaro, Eduardo Cunha e Feliciano de outro. No mesmo Parlamento. Ao mesmo tempo. Representando cada qual milhares de criaturas que convivem (serão vizinhos, familiares, amigos, colegas) e que votaram no mesmo dia, quiçá na mesma hora, cada qual em um candidato, mas também em um tempo histórico particular, em uma mentalidade diferente.

Aqui no estrangeiro, duas notícias me chamaram a atenção esses dias. Primeiro, uma lei estadual pendente de sanção do governador do estado de Indiana que, ao reconhecer o direito à livre manifestação religiosa, na verdade, camufla a permissão para a prática deliberada da discriminação contra LGBTs (leia mais aqui). Soa familiar? No rádio, transmitem o governador desconversando ao ser questionado: “Com essa lei, passa a ser legal em seu estado que um restaurante se recuse a atender um casal homoafetivo, governador?”.

A discussão está quentíssima e a pressão para que a lei não seja sancionada é enorme. Diversos estados, como Washington e Connecticut, já anunciaram boicotes caso a lei entre em vigor (leia mais aqui). Grandes empresas, como a Apple, também se manifestaram contra a proposta (aqui).

Já a outra notícia anuncia a abertura de uma nova clínica de aborto no estado de Maryland, aqui do lado, com direito a outdoor e tudo. “Aborto. Sim, a gente faz”, diz a campanha pra lá de corajosa. 
“Nós não queremos sussurrar sobre o assunto, nós não tememos chamar as coisas pelo nome”[tradução livre], afirmou o presidente da clínica (leia a matéria completa aqui). O lugar, segundo a matéria do Washington Post, assemelha-se a um spa – procura ser um espaço acolhedor, que recebe as mulheres com chá e muita informação sobre o método adotado ali.

A iniciativa é uma aposta de inovação na abordagem pró-escolha frente a uma onda pesada de retrocessos em todo o país em termos de legislação (no estado de Ohio, por exemplo, tentaram recentemente modificar a legislação sobre o aborto para proibi-lo a partir do momento em que batimentos cardíacos são identificados no embrião).  

Um pouco como o projeto para a legalização do aborto recém-apresentado por Jean Wyllys e elaborado (em sincronia, dessa vez) com um grupo de grandes feministas brasileiras. Uma aposta, um movimento, um atrevimento.

Resistências. Persistências.

Em um mundo onde heterocronia e sincronia operam o tempo todo sem cessar, as resistências e as persistências parecem ser o que detém ou amparam a queda frente a subidas quase impossíveis. Ganchos e fendas que mantém os corpos alçados, tesos e prontos para subir mais um pouco, sempre mais um pouco.  


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Nina Madsen. Escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Desde janeiro de 2015, vive em Washington, DC – novo cenário de aventuras e leituras pelo avesso do mundo.

Strange Fruit, a biografia de uma canção

Nas comemorações dos 100 anos de Billie Holiday, obra que conta a história da canção “Strange Fruit” vai além: trata do poema, de seus significados e de sua intérprete, sem deixar de lado o contexto racista e agressivo dos EUA dos anos 1930.


por Pergentino Mendes de Almeida

Strange fruit – Billie Holiday e a biografia de uma canção
Autor David Margolick
Tradução José Rubens Siqueira
Editora Cosac Naify
Páginas 142
Ano 2012

Em 1939, o Café Society na Greenwich Village era uma boate frequentada por esquerdistas e comunistas, o único lugar em Nova York onde negros e brancos conviviam em paz. A conversa está animada, com o movimento dos garçons entre as mesas embalado por música. Inesperadamente, apagam-se as luzes. Escuridão total. Cessa o movimento. Param as conversas. Onde estão os garçons? Que diabos está acontecendo? Silêncio.

Um facho de luz rompe a escuridão e destaca a figura de Billie Holiday, uma negra de 23 anos, luminosa, sobre fundo negro. Ela começa a cantar: “As árvores sulistas dão uma fruta estranha.

Sangue nas folhas, sangue nas raízes. Corpos negros balançam à brisa sulista, frutas esquisitas penduradas nos álamos. Uma cena pastoril do sul galante: olhos esbugalhados, boca torta,um suave aroma de magnólia, fresco e doce; e, de repente, o cheiro de carne queimada.

Eis uma fruta para os urubus beliscarem, para a chuva enrugar, para o vento secar, para apodrecer ao sol, para a árvore deixar cair, eis uma estranha, amarga colheita.”

A música para. Um silêncio pesado reina sobre a plateia chocada. Como Billie mais tarde descreveu, foram aqueles momentos, silenciosos e tensos, os de maior ansiedade que experimentara. “Então, uma pessoa começou a aplaudir nervosamente...” E, a seguir, todos se juntam num aplauso geral, ainda meio hesitante.

A partir daquele primeiro dia em que Billie Holiday se arriscou a cantar em público “Strange fruit”, os frequentadores do Café Society pediam-lhe sempre que a cantasse. Depois de “Strange fruit”, a orquestra atacava sem pausa um fox-trot dançável, para desfazer o ambiente pesado que a música deixava. Mas Billie não cantava mais nada depois de “Strange fruit”. Não cedia um bis, nem ficava no palco para receber aplausos. Era sempre um encerramento brusco, absoluto, de uma asserção firme que não admitia respostas e dispensava comentários.

Reconhecida como um clássico, considerada uma das dez músicas que realmente mudaram o mundo, “Strange fruit” marcou a imagem de Billie – mas sempre foi pouco divulgada nas rádios. Continua, até hoje, mais ou menos desconhecida das massas. Transformou-se num sucesso estranho, que as emissoras tinham medo de divulgar e que os empresários pediam que ela não cantasse nos seus shows. Mas o público pedia. Levou anos até que uma gravadora tivesse peito de prensar um disco. Venderam tudo em pouco tempo.

A tal ponto a música associou-se a Billie que ela mesma haveria de alimentar o mito de que era de sua autoria. Num certo sentido, isso é verdadeiro: ela introjetou-a como sua. Identificou-se com a canção aos olhos do público. Transformou-a no hino da luta pelos direitos humanos e pelas igualdades social e racial. Causava reações extremas. Havia os que se comoviam até chorar. Outros se levantavam indignados. E havia aqueles que Billie chamava de crackers, truculentos que protestavam, às vezes com violência, e ameaçavam-na de agressão. Mas Billie sabia se defender. Certa vez, atacou um cracker com uma cadeira e continuou a agredi-lo depois que ele ficou prostrado no chão. Os seguranças da boate tiveram de arrancá-la de cima do freguês, que foi sumariamente arrastado até a rua, sem pedidos de desculpas.

Afinal, a vida havia lhe ensinado a defender-se de homens agressivos. Criada sem pais e internada num orfanato para crianças pobres, foi estuprada aos dez anos e aos 13 tornou-se prostituta. Morreu aos 44 anos, em 1959, viciada em álcool e heroína. Não foi um fim excepcional para cantores e músicos dessa época.

O livro Strange fruit, com o subtítulo “Billie Holiday e a biografia de uma canção” (Cosac Naify, 2012), “é exatamente o que o nome diz”, destaca André Midani na apresentação da obra. “É a biografia de uma canção que ninguém pode ignorar. Racismo, crueldade, perversões podem participar da natureza de seres humanos normais, cristãos devotos e de boa família. Podem contaminar americanos, arianos, negros, judeus, palestinos e até brasileiros. O livro fala pouco e diz muito sobre isso, versando apenas sobre uma poesia, uma canção e uma intérprete. E é uma obra-prima de David Margolick, indispensável para os apreciadores de blues, de jazz, da História, da cultura americana e da nossa.” A tradução brasileira do livro de Margolick, escrito há 12 anos nos EUA, trata, sobretudo, de um tema tabu na época, o racismo e relata minuciosamente os linchamentos de negros por brancos americanos, nos Estados do sul do país.

O autor da letra e música de “Strange fruit”, Abel Meeropol, foi um comunista judeu e branco, um professor universitário poeta, que compunha músicas. Como compositor, tornou-se mais conhecido sob o pseudônimo Lewis Allan. Publicou a letra de “Strange fruit” num periódico marxista, The New Masses, e depois a musicou. Levou-a ao Café Society e pediu que Billie Holiday a cantasse. Billie topou o desafio. Mas Meeropol não esperava o sucesso que obteve. Nem sequer se deu ao trabalho de registrar a autoria da canção. “Strange fruit” era uma excentricidade, fora da estética musical da época e completamente contraditória com a imagem romântica de Billie Holiday.

Meeropol e sua esposa, Anne, foram os pais adotivos dos filhos de Julius e Ethel Rosenberg, acusados de espionagem a favor da União Soviética, depois que estes foram executados. O casal Rosenberg foi condenado e eletrocutado ao fim de um processo que é até hoje discutido. Ninguém põe em dúvida, porém, a sua sinceridade e idealismo, assim com as de Abel e Anne Meeropol. Quando o casal Rosenberg foi executado, seus filhos, Michael e Robert, ainda eram pequenos. Criados com desvelo, adotaram seu novo nome de família sem deixar de lado o afeto filial pelos pais biológicos.

De acordo com Robert (Rosenberg) Meeropol, a subsistência da família era garantida principalmente pelos direitos autorais de Lewis Allan (ou Abel Meeropol) sobre os sucessos “Strange fruit”, “The house I live in” (sucesso de Frank Sinatra e Josh White, o pianista do Café Society) e “Apples, peach and cherries” (sucesso de Peggy Lee). Meeropol nasceu em 1903 e morreu em 1986, na Casa de Repouso Judia em Longmeadow, Massachusetts. Muitos fãs negros de “Strange fruit” não imaginavam que ela tivesse sido composta por um branco judeu nova-iorquino.

Como se vê, “Strange fruit” sempre foi um enigma: como pode uma poesia transformar-se numa canção de sucesso, deprimente e triste, que fala de morte e crueldade? O contexto político -social dos EUA no período em que a canção foi escrita dá uma pista. Num cartão-postal, reproduzido no livro, “dois corpos de negros pendem de uma ponte sobre um rio. Do alto da ponte, um grupo de brancos contempla-os e comemora. Este cartão já é datado dos anos 30. Da mesma década em que Billie Holiday cantou 'Strange fruit' pela primeira vez, em Greenwich Village [...] A fotografia era uma novidade e a troca de cartões-postais, uma prática moderna, própria de gente refinada. Os linchamentos eram anunciados com antecedência e convidavam-se fotógrafos para documentá-los. Não havia o que esconder nem do que se arrepender. Pelo contrário, ainda que ilegal, essa prática era tolerada e mesmo estimulada pelas autoridades locais. O objetivo era justamente a sua divulgação. Não que houvesse malevolência nisso, afinal os brancos não queriam exterminar os negros. A intenção era apenas assustá-los, para que eles ficassem no seu lugar”.


* Resenha publicada na edição 65 de Retrato do Brasil, dezembro de 2012

terça-feira, 7 de abril de 2015

A rendição de Leopoldo


por Fernando Evangelista*

Venho por meio desta, com tristeza e pesar, alma condoída e inconformada, comunicar que o nosso querido Leopoldo, filósofo do Rio Tavares, sábio dos balcões, bebum incurável, romântico à moda antiga, foi internado neste domingo de Páscoa numa clínica psiquiátrica. E pior: foi por livre e espontânea vontade.

Aqui termina o comunicado e começa uma carta de espanto:

Como fizeste uma coisa dessas, Leopoldo? Logo tu, exemplo para os atormentados do submundo e adjacências, pastor sem sermão ou moralismo, sem ismo nenhum, vivendo a anarquia puríssima do inferninho mais próximo. Como assim? Me explica se puderes e se ainda tiveres alguma rebelião no espírito.

Sou testemunha, Leopoldo, de que nunca enganaste ninguém. Foste sempre o porra-louca mais autêntico que já conheci. E porra-louca com remédio tarja preta é como cerveja sem álcool, religião sem pecado, pecado sem gozo, poeta sem noite, noite sem sereno, Caim sem Abel e, finalmente, porque senão ficaremos nesta lista até o fim dos tempos, um livro sem leitor e um pé de milho sem Rubem Braga. (Obrigado, Gay Talese).

Leopoldo, não tenta te curar porque – como diria nosso parceiro João Antônio – não há cura para a tua “alma de cristal”. Quem são eles para te trancafiar nestas paredes brancas, cheias de boas intenções e péssimas fórmulas, que apaziguam o ânimo e enganam o desejo? Quem foi que te convenceu, irmãozinho, que a tua emoção é uma loucura e a tua liberdade uma ameaça?

Esses órfãos de Simão Bacamarte não sabem de nada. Não sabem que sem a tua alegria bêbada e teu humor descarrilado a vida fica com cara de paulistano no trânsito, sem esperança de praia, na primeira e segunda marcha da impaciência.

Com meu copo de cerveja meio vazio, meio de saco cheio, olhando teu banquinho desocupado, debruçado neste nosso balcão e pensando na vida cara e na tua filosofia barata, imploro para que voltes para a boemia nossa de cada dia. Se quiseres, escuta com atenção, te resgato daí na marra, mesmo que na maca ou em camisa de força.

Leopoldo, meu sábio, não desiste, não te rende.

Mesmo sozinho, brindo à tua loucura para que ela, como a casa bíblica, resista fincada sobre a rocha e que os ventos da lucidez e os jalecos da ciência não te façam cair nas tentações do equilíbrio, da vida zen e da alimentação macrobiótica. Amém!

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Fernando Evangelista é jornalista e documentarista. Escreve às terças-feiras no Nota de Rodapé.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Pelas praças


por Júnia Puglia    ilustração Fernando Vianna

Minha encarnação candanga já dura muito mais que a anterior. Considerando uma expectativa de vida realista, será a mais longa, mesmo que eu me mude daqui amanhã. Viver num lugar insólito como Brasília tem suas consequências, e para mim uma das mais fortes é o fascínio por cidades "normais", aquelas onde tudo se mistura. São as áreas mistas das cidades que me seduzem, lugares onde é só por os pés na rua e se acha de tudo, gente, loja, cinema, cachorro, padaria, pastelaria, banco, café e praça. Se tiver uma feira livre no caminho, me perco de vez na felicidade. Quando viajo, quase não consigo fazer outra coisa que não seja andar sem destino certo, sentindo a energia urbana sem filtros e sem intermediários.

Ah as praças! Nelas a gente capta o espírito do lugar, quase o apalpa. E como eu saio sem plano e sem programa, pedindo para ser surpreendida, elas me atendem, generosamente. Assim aconteceu em Lisboa, quando cruzei o arco da Praça do Comércio pela primeira vez, num dia de céu azul profundo, o Tejo logo ali na frente, o espaço aberto vibrando sob o sol. E no Largo do Chiado, com sua delicada iluminação noturna, convidando a gente a se sentar e desfrutar a suave melancolia portuguesa matizada pela Babel em que se transformou essa magnífica cidade coalhada de lugares de encontro.

Também em Madri, num fim de tarde, ao entrar na Plaza Mayor por uma lateral singela, e dar com o retângulo enorme todo ladeado de edifícios centenários da mesma altura, nos quais se vê uma infinidade de arcos e varandas. O impacto foi tremendo, como se ali, onde pairam a memória e o eco de um mercado aberto, eu pudesse sentir toda a verve espanhola em plena pulsação.

Outras são tímidas, como a Plazoleta Carlos Pellegrini, que descobri num canto da Recoleta, em Buenos Aires. Numa cidade com arquitetura e gente dramática e monumental, a pracinha tem um toque introvertido, quase singelo. Linda.

Entre as mais belas, está a Praça Tiradentes, em Ouro Preto, que visitei há muitos anos, mas não me sai da memória. Tem um quê de tragédia no ar, mas parece dizer, sutilmente, mineiramente, que é preciso superar a dor e tocar em frente.

Como em tantas cidades brasileiras, lá na minha querida Araraquara também tem uma Praça Independência, tão bonita, mas tão bonita, que dá vontade de armar uma barraca na grama e ficar por lá, curtindo as árvores poderosas e pensando na vida num banco compartilhado com gatos vagabundos. E lá nos cafundós do interminável interior de São Paulo fica Jurupema, um povoado de duas mil almas com uma pequena igreja redonda em formato de farol, rodeada por uma praça aonde me senti dentro de uma pintura de Portinari e engasguei, quase chorei.

Levanto os olhos da tela, e é Brasília que eu vejo lá fora, com este céu escancarado ameaçando despejar um baita de um temporal e as maritacas fugindo dele, apressadas e tagarelas.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

Líder dos bancários

Passados os 50 anos do golpe militar a coluna 1964+50 segue firme em 2015, mas agora com novo título: VIVOS. Afinal, mortos e desaparecidos estão vivos na nossa memória e na nossa história.


por Fernanda Pompeu ilustrações Fernando Carvall

Aluísio Palhano
Nascimento: 5 de setembro de 1922
Cidade natal: Pirajuí - SP
Data do desaparecimento: maio de 1971

Funcionário do Banco do Brasil, Aluísio tinha sangue de sindicalista. Foi um dos principais líderes da greve geral dos bancários em 1961. O que eles reivindicavam? Aumento salarial e garantia do décimo-terceiro. Veio o Golpe de 1964. Aluísio e outros companheiros (entre eles, meu pai Marcus Flávio Pompeu) foram cassados nos direitos políticos e demitidos do emprego por meio o Ato Institucional número 1. A partir daí, penúria para as famílias e perseguição política para eles. Aluísio se exilou no México e depois em Cuba. Voltou clandestinamente ao Brasil em 1970. Militou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) até ser sequestrado em maio de 1971. Depois, a recorrente história: foi torturado, morto e desaparecido.

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Fernanda Pompeu é a mulher do texto. Fernando Carvall é o homem da arte.
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