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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Apanhado da semana Pública-Wikileaks

A Pública, agência de jornalismo investigativo, está publicando uma série de matérias com conteúdo de documentos diplomáticos adquiridos pelo Wikileaks. Há uns dias, publicamos no Nota de Rodapé o vídeo que anunciava a Semana Wikileaks, no caso, a semana corrente. Aqui, um compilado de tudo que foi publicado, basta clicar no link da matéria que te interessa e ler. Acreditem, tem coisa muito boa. Vale a leitura. E vale ainda que se espalhe a informação. É jornalismo investigativo e independente sem rabo preso.

- Secretário de assuntos penitenciários de SP: nossos presídios “parecem campos e concentração”
- EUA ajudaram PF a desmantelar quadrilha de Fernandinho Beira-Mar
- As conversas da Vale com os EUA sobre a China
- Estados Unidos doam com regularidade material para a polícia brasileira
- Em 2004, Brasil deu US$1,7 milhão para treinamento forças de paz paraguaias
- Americanos observam crescimento da classe média brasileira
- General Félix lamentou que ditadura tenha levado sociedade a se preocupar com prisioneiros
- Wikileaks revela suspeita de lavagem de dinheiro na sede da Unesco em Brasília
- Após invasão, EUA pediram anistia de dívida iraquiana com Brasil
- Serra, governador, pediu ajuda aos EUA contra ataques de PCC
- Para EUA, assembleia de Brasília é “refúgio de canalhas”
- Hélio Costa garantiu adoção de padrão dos EUA de rádio digital como “consolação“
- Brasileiros reclamam da atuação do Paraguai no combate ao crime internacional
- Vaticano: poucos padres e pouco celibato na América Latina
- Diretor da Vale reclamou de ingerência do governo na companhia
- Lula, o “melhor presidente” para o setor imobiliário
- EUA se preocuparam com modelo anti-Aids brasileiro em Moçambique
- Proibição ao aborto é “lei que não pega”, diz embaixada
- Hidrelétrica brasileira na Guiana serviria de apoio em disputa com a Venezuela
- Nos bastidores, empresários buscaram EUA para evitar retaliação do Brasil ao algodão
- China pensa que Brasil não tem “capacidade” para ser líder
- Cônsul e FHC ironizam movimento “Cansei”
- As conversas da embaixada com a ministra Dilma
- Ao embaixador, Lampreia disse que Celso Amorim “odeia americanos”
- Além de Chávez, americanos pediram que Lula “moderasse” Evo Morales
- Aécio Neves comentou sobre disputa com Serra a cônsul
- EUA apontaram Lobão como defensor da privatização do setor elétrico

Liberdade para mentir

Naquilo que foi considerada a primeira crise política do governo Dilma Roussef, com o defenestramento de um ministro, muito se discutiu sobre moral e ética. Opiniões, as mais diversas e desencontradas, pipocaram por quase três semanas em jornais, revistas, televisões e boa parte da blogosfera.

Para uma sociedade que, pelo menos na aparência, se mostra paradoxalmente mais preocupada com a corrupção e ao mesmo tempo mais corrupta a cada dia que passa, ativa ou passivamente, não importa, a proporção do debate quase atingiu as raias do paroxismo.

Contudo, e não estamos apontando nenhuma novidade, no quesito corrupção, a volúpia acusatória tem pendido sempre mais para um lado da balança do que para outro, sendo o Partido dos Trabalhadores o alvo preferencial da mídia. Entende-se: é a luta pelo poder político, dirão muitos.

Não só, ouso dizer, é também a luta de classes. E é também o entendimento atual daquilo que muitos brasileiros conhecem ou mesmo aprenderam sobre o pensar e o fazer político. É provável que muitos até já se esqueceram, é verdade, seja pelo vazio de ideias e pela repressão causada pelo golpe de 64, seja pelo canto do cisne das políticas neoliberais dos anos 80/90 ou mesmo do emblemático desaparecimento da União Soviética, onde muitos acreditaram que uma ideologia e um modelo de organização econômico social haviam chegado ao fim.

Lembrei-me, em meio a essas calorosas discussões sobre ética e moral, da leitura que fiz já há alguns bons anos de um livro intitulado “Marxismo e Moral”, de autoria do professor William Ash, norte americano que se mudou para a Inglaterra, cujo original foi publicado na Monthly Review Press em 1964 e editado no Brasil em 1965.

O livro, de linguagem fluente e fácil, procura discutir os conceitos morais dentro das condições materiais em que vivemos em sociedade ou, em outras palavras, o que nos leva a emitir juízos de valores morais numa sociedade capitalista, por exemplo, como essa que nos é dado viver.

Nos quatro longos capítulos em que procura sistematizar o seu pensamento, o autor faz referências a algumas obras e pensamentos de Marx, alguns dos quais nunca é demais lembrar. Por exemplo: “As ideias da classe dominante são, em qualquer época, as ideias predominantes”. Simples e cristalino. Só não entende quem não quer ou não se dá ao trabalho de pensar.

Na atual situação política brasileira, a ética tem sido usada como arma de combate entre adversários políticos de quase todos os partidos, sem exceção, sendo que os representantes desses partidos, seja no âmbito federal, estadual ou mesmo municipal, em sua grande maioria, representam interesses em sua maior parte, da classe dominante, mesmo que seus programas partidários e sua militância, quando ela existe, apontem noutra direção.

Contudo, nessa troca de acusações, muitas delas sem provas, o que tem vergonhosamente caracterizado uma quebra do princípio jurídico da inocência presumida, a quase totalidade da imprensa tem – sempre que pode – tentado fazer a balança pender para um dos lados.

Diz William Ash em sua obra acima citada: “Os moralistas que se identificam com uma classe que tenha desfrutado o poder e é ameaçada pelas bases têm uma compreensível tendência para ressaltar a obediência ou o dever como de primordial significação ética.”

Como já surgem indícios aqui e ali de que se torna cada vez mais tênue a linha que divide situação e a oposição no Brasil atual, pelo menos essa que coloca de um lado partidos como o PT e o PMDB, e de outro legendas como o DEM, o PSDB e o PPS, começa haver um vácuo de representatividade no país. Pergunta-se: obediência a quem? Dever para com quem?

A reforma política adquire cada vez mais importância e urgência, pois o poder político não admite o vácuo. Em momentos de indecisões, recuos ou mesmo de reflexões para novos avanços, há sempre alguém (grupos eu diria) que se aproveita para reconquistar ou manter posições conservadoras ou mesmo inibidoras de políticas econômicas menos ortodoxas. E nisso, contam com o apoio de uma imprensa que defende a sua liberdade ou a liberdade de opinião (a sua) sempre em proveito próprio ou de grupos a quem tradicionalmente se alia.

E nesse jogo de interesses, as ideias predominantes continuam sendo as ideias da classe dominante, dos que detêm o poder econômico, porque a liberdade por esses defendida é a liberdade de continuarem no poder a qualquer custo, mesmo que para isso usem da chantagem, da mentira, dos fatos sem comprovação, da intriga.

Diz William Ash, lembrando Marx mais uma vez: “A ‘livre empresa’, não é senão a liberdade de explorar o trabalho dos outros. Tal como a ‘liberdade de imprensa’ é a liberdade que os capitalistas têm de comprar jornais e jornalistas no interesse de criar uma opinião pública favorável à burguesia”.

Palavras que ainda encontram ressonância nos dias em que vivemos. A burguesia brasileira, que se formou logo ao receber da Coroa portuguesa as capitanias hereditárias, até hoje não as devolveu. E continua a agir como se estivéssemos no século XIX.

Basta acompanhar o que acontece no setor agropecuário, onde a violência tem mão única. Quantos trabalhadores rurais foram assassinados no Brasil nos últimos anos? E quantos donos de terras? Ou acompanhar a vergonhosa defesa do crime de colarinho branco pelo poder judiciário. A justiça brasileira é uma justiça de classe. E quanto à mídia? O que dizer das inúmeras denúncias irresponsáveis ou matérias fabricadas, manipuladas, para servirem a interesses particulares e não aos interesses do país?

A liberdade de opinião e a liberdade de imprensa que se defende no Brasil, essas que continuam a favorecer umas tantas “famiglias”, trazem hipócrita e cinicamente escondidas em sua defesa um único e insofismável propósito: a liberdade para mentir.

Izaías Almada é dramaturgo, escritor e colunista do NR.

sábado, 25 de junho de 2011

A Pública traz material inédito do WikiLeaks sobre o Brasil

A partir de segunda-feira, dia 27, a Pública trará novas informações sobre os documentos obtidos pelo WikiLeaks relativos ao Brasil. A parceria entre a agência de jornalismo e a organização comandada por Julian Assange tornará possível a divulgação de material inédito que diz respeito à política norte-americana em relação ao nosso país.

Saiba mais:
Entrevista: Guantánamo é monstruosidade, diz Assange

Para ter acesso às reportagens da Pública visite o site da agência. O Nota de Rodapé também irá reproduzir o material publicado.


Assista ao vídeo em que Assange fala da parceria entre o WikiLeaks e a Pública.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Woody Allen pirou (ainda bem) em 'Meia Noite em Paris'

“Meia noite em Paris” de Woody Allen que está nos cinemas é tão bom quanto o excelente “Tudo pode dar Certo” (2010). A história de Gil (o protagonista, interpretado por Owen Wilson) é daqueles realismos fantásticos que todo mundo gostaria de viver. Você já pensou em qual época você gostaria de estar que não a sua?

Gil é roteirista de Hollywood em férias em Paris com a família da noiva, Inez (interpretada por Rachel McAdams). Ele é fã de Paris, deslumbrado com a cidade que deixa sua criatividade e inspiração mais aguçadas. E está imerso em um livro que não dá conta de acabar. Seu sonho é viver na década de 1920, quando F. Scott Fiztgerald, Ernest Hemingway e Pablo Picasso circulavam por lá. E, no filme, isso acontece.

A viagem ao passado é cheia de graça, irônia e romantismo. E que nos faz rir – e muito – durante os papos, encontros e diálogos. Imagine encontrar com Dalí pirando na figura de um Rinoceronte? Ou então dar a cópia original do seu livro para Gertrute Stein avaliar? Ou mesmo se apaixonar pela amante de Pablo Picasso? O filme tem dessas. E muito mais. E conta com um elenco dos melhores. Vale a pena.



Thiago Domenici, jornalista

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Brasília também abraça as "vadias" em marcha

Imagens e texto de Manaíra Lacerda e Rodrigo Mendes de Almeida
(De Brasília, para o Nota de Rodapé)

Foi o que se pode chamar de uma grata surpresa. Contamos facilmente algo mais que 800 pessoas para a versão brasiliense da Marcha das Vadias. Ao chegarmos ao local, nem sabíamos se seria fácil achar a manifestação, já que, nas nossas cabeças, ela estaria diminuta. Mas que nada. De longe começamos a ouvir os apitos, carregados pelo vento, já que na topografia plana do Planalto Central, o som alcança bem longe.

Uma marcha de deixar feliz quem foi participar. Tocando na ferida, como tem sido a recente onda de mobilização de “vadias”. O grande questionamento é contra o machismo que responsabiliza a vítima por um crime cometido contra ela – no caso, bota na mulher que é estuprada a culpa pelo crime.

Saiba mais:

A discussão é avançada, e a grande penetração que teve mostra que pelo menos uma parte da sociedade está avançando nesse debate. E vai impor o tema como pauta. Uma das boas surpresas foi ver homens abraçando o manifesto que aconteceu da forma mais pacífica possível, ou seja, sem nenhuma violência. Tanta tranquilidade que pôde até ser chamada do que muitos conhecem como "programa de família". Crianças e até cachorros estavam no meio da multidão, divertidos com o sábado diferente.

Uma tropa da polícia militar acompanhou todo o percurso, que começou perto da rodoviária de Brasília e foi até a Torre de TV debaixo de um sol escaldante. Para quem não conhece a capital brasileira, a distância é algo em torno de 3 km. Lembrando: sob o sol e a seca desta terra vermelha.

Mesmo com as intempéries, a manifestação fez surgir muitos sorrisos de gente satisfeita por estar fazendo algo que, talvez, possa mudar os rumos de uma sociedade machista.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Araguaia: o massacre que as Forças Armadas querem apagar

A agência de jornalismo investigativo Pública tem feito um importante trabalho sobre a guerrilha do Araguaia. Nesta semana, as repórteres Marina Amaral e Tatiana Merlino trazem novas informações sobre a participação forçada de camponeses no combate aos guerrilheiros.

Leia trecho da reportagem no Nota de Rodapé e confira no site da Pública o material completo sobre a repressão no Araguaia.

"Em meio ao debate sobre a emenda que propõe o sigilo eterno de documentos do governo, a Pública revisita uma das histórias mais obscuras do período militar: a repressão à guerrilha do Araguaia (1972-1975).

Em três dias de pesquisa nos 149 volumes do processo judicial que investiga o desaparecimento dos guerrilheiros do Araguaia, a Pública coletou relatos de dezenas de moradores que foram obrigados a prender, enterrar, matar e decapitar guerrilheiros – e sofrem até hoje as consequências do que viveram nesse tempo.

Em entrevista exclusiva, a juíza titular da 1a Vara da Justiça Federal, Solange Salgado, diz que, passados quase 40 anos, reina o medo de se falar sobre o assunto entre os que participaram do conflito. Mateiros e ex-militares que colaboraram com o Grupo de Trabalho Araguaia - que investiga o caso desde 2009 em cumprimento à sentença judicial promulgada por Solange Salgado em 2003, que obriga a União a entregar os corpos dos desaparecidos às famílias – estão recebendo ameaças.

Por isso, quando esteve na região no ano passado, para recolher e checar informações sobre o paradeiro dos corpos, a juíza optou por preservar o sigilo dos autores dos depoimentos. “Foi uma garantia que o Poder Judiciário deu a essas pessoas. Elas ainda estão muito apavoradas, se sentindo muito acuadas”, disse ela à Pública.

Nossa reportagem esteve em Marabá, no Pará, e conversou com ex-mateiros e ex-soldados que confirmaram a realização das chamadas “Operações Limpeza”, por meio das quais os restos mortais dos guerrilheiros foram desenterrados e transportados a outros locais. Além disso, cinco entrevistados afirmaram ter visto atuando na repressão o ex-diretor do Dops de São Paulo Romeu Tuma, falecido em outubro do ano passado."

Por Marina Amaral e Tatiana Merlino. Matéria publicada pela agência Pública - livre reprodução desde que citada a fonte (cc)

Assista ao vídeo com depoimento de colaboradores do Exército

Novidade no NR

Caros leitores, amigos e apreciadores do Nota de Rodapé. Cuidar do blog não é tarefa das mais fáceis. Exige tempo, dedicação e pique, algo que venho fazendo solo faz um bom tempo. No entanto, temos reforço nessa ajuda do dia a dia.

Ricardo Viel, jornalista, advogado de formação e jornalista por opção (ou teimosia) diz que já foi "vendedor, professor de espanhol, tradutor, advogado, pesquisador", mas o que queria mesmo era ter sido jogador de futebol.

Tem 31 anos, vividos em seis cidades diferentes, e já leva seis em São Paulo. Trabalhou no portal Última Instância, na Folha de S. Paulo e atualmente está no R7. Já escreveu para a Caros Amigos, Fórum, Cult e Arcadia e Portafólio (ambos da Colômbia).

Ricardo já é colunista do blog há mais de um ano, mantinha a coluna Conexsom Latina. Será um editor assistente pro que der e vier. Eis uma boa notícia que vai trazer ao blog mais postagens e, quem sabe, uma dinâmica maior.

Vamos em frente! Obrigado.

Thiago Domenici

domingo, 19 de junho de 2011

Encontro de gerações

Caco Bressane, arquiteto, ilustrador e colaborador do NR.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Um ano sem Saramago

Neste sábado, dia 18 de junho, completa-se um ano da morte de José Saramago. O escritor português morreu em casa, na ilha de Lanzarote (Espanha), às 12h30 (hora local), mas o relógio de parede de sua residência marcava as mesmas 16h de sempre. Os ponteiros estavam congelados por e para Pilar fazia mais de 20 anos.

Saramago pelo ótimo lápis de Cássio Loredano
Foi no ano de 1986, às quatro horas das tarde, que José Saramago viu, pela primeira vez, a mulher que o acompanharia pelo restante da vida e que, segundo ele próprio, a prorrogou – em A Viagem do Elefante, a dedicatória diz: A Pilar, que não deixou que eu morresse. E ela quem hoje toca a fundação que cuida da obra e da memória do escritor.

“Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 63 anos, a minha segunda vida começou”, contou certa vez o escritor que costumava dizer que as melhores coisas de sua vida haviam acontecido tardiamente. Não era uma queixa, mas uma constatação que fazia muito sentido. Saramago decidiu tornar-se escritor depois do 50 anos, conheceu Pilar depois dos 60 e recebeu o Nobel aos 74 anos.

Quem assistiu ao documentário José e Pilar viu a luta do escritor português contra a morte. O corpo começou a dar sinais de fadiga, mas Saramago ainda queria escrever e amar. Em 2007 ele havia se recuperado de uma grave doença. Naquela época Saramago disse: “Nossa única defesa contra a morte é o amor”. Em junho de 2010, numa sexta-feira, a morte chegou para ele.

É uma ausência presente, como escreveu Pilar recentemente. “Um ano já sem Saramago. Como é possível, perguntar-se-ão alguns, se continua a publicar livros, se está nas conversas dos analistas políticos, se os jovens saem à rua com as suas frases escritas em cartazes ou em t-shirts, se há concertos de rock onde o aplaudem ou se organizam outros de música erudita em seu nome? Que estranha ausência é essa?”.

Já faz um ano, mas o relógio da casa de Lanzarote não se moveu sequer um segundo. Continua marcando as mesmas 16 horas de sempre. As 16 horas do início da segunda vida de Saramago.

Nesta dia 18 as cinzas de José Saramago serão levadas a Lisboa e depositadas em frente à sede da fundação que leva seu nome. Ele descansará à sombra de uma oliveira trazida de Azinhaga, sua terra natal. Os visitantes terão o gosto de sentar-se no banco de jardim e admirar, ao lado do escritor, o rio Tejo.

Ricardo Viel é jornalista e colunista do NR

Valets: mais um motivo para usar menos o carro

O JN de ontem deu uma matéria que não é novidade nas cidades brasileiras. Câmeras escondidas - que eu, particularmente, tenho grandes ressalvas no jornalismo -, flagaram irregularidades e crimes de manobristas em SP e MG. "As imagens mostram os profissionais encarregados de estacionar os carros furtando moedas e até bombons. Alguns dizem que vão levar os veículos para locais seguros, mas os deixam em fila dupla ou em frente a garagens."

Eis mais um motivo para usar menos o carro. Se existem valets é porque existe demanda, certo? É uma discussão que, para mim, serve para voltar a falar do transporte público. Algo que vai além do habitual "classe média sofre". O que fazem os flanelinhas, no entanto, é outra questão. Convido-os a leitura da reportagem publicada na Retrato do Brasil, de abril, no texto de Tomás Chiaverini, que aborda a questão dos flanelinhas, que trabalham à margem da lei, atuando nas grandes cidades sob o olhar desconfiado dos motoristas e sem o respaldo do poder público. Para baixar em PDF ou ler abaixo, na íntegra.

Trabalho

SE ESSA RUA FOSSE MINHA

À margem da lei, os flanelinhas atuam nas grandes cidades sob o olhar desconfiado dos motoristas e sem o respaldo do poder público


É noite no bairro boêmio da Vila Madalena, em São Paulo. Um “x” de fita reflexiva laranja sobre a camiseta pólo veste Alemão, 21 anos, que se posta ao lado de uma vaga vazia e espera. Quando percebe algum motorista à procura de vaga, assobia e depois gesticula, ajudando na baliza. Assim que o motorista sai, informa que zelará pelo automóvel até às 2h. Mais tarde, quando o “cliente” volta, corre até perto do carro e espera pelos trocados que lhe garantem o sustento.

À primeira vista, o trabalho de Alemão parece bastante simples. Tão simples que, muitas vezes, nem sequer é visto como uma profissão. Foi esse argumento, por exemplo, que fez com que a prefeitura de Porto Alegre (RS) interrompesse, no início de 2010, um projeto de regulamentação da função de guardadores de carro, iniciado em 2009.

A baixa adesão dos flanelinhas – apenas 70 se cadastraram – foi um dos motivos para a interrupção do projeto. Mas o fator determinante, de acordo com o governo municipal, foi o fato de que os guardadores não colaboram para o aumento da segurança e não há demanda real pelo trabalho que oferecem. Para a Prefeitura de Porto Alegre, portanto, não faz sentido legalizar e fiscalizar um serviço que não deveria existir.
Essa aparente simplicidade esconde, contudo, um sistema complexo e intrincado de um fenômeno presente na maioria das metrópoles do país. Grande parte dos flanelinhas atua sempre na mesma área. Ao longo do tempo, eles descobrem os hábitos dos moradores e do comércio local, tornam-se conhecidos e ganham confiança. Apoiam e recebem apoio dos demais trabalhadores. Inserem-se no ecossistema urbano e frequentemente acabam dominando regiões inteiras da cidade.

Alemão, por exemplo, é praticamente dono da quadra onde trabalha, na rua Mourato Coelho, entre a Inácio Pereira da Rocha e a Aspicuelta, em São Paulo. Seu domínio sobre aquela área específica foi construído ao longo de onze anos. Hoje, ele sabe de cor a rotina de cada morador e conhece bem todos os outros guardadores de carro da região, o que lhe permite atuar com calma e segurança. Numa sexta-feira de fevereiro, a Retrato do Brasil acompanhou o flanelinha durante as cerca de 8 horas que sua noite de trabalho durou.

A jornada começou pouco depois das seis da tarde. Antes disso, ele havia levado cerca de 50 minutos para viajar de ônibus do Taboão da Serra (região metropolitana de São Paulo) a Pinheiros. Veio acompanhado da mãe, Simone, 34 anos, e de dois irmãos – H., de nove anos, e T., um bebê de um ano e meio. Simone faz questão de acompanhar o trabalho do filho mais velho.

“Se eu não vier junto, ele passa a noite bebendo na banca de batida e não trabalha”, diz sorrindo, enquanto chacoalha a criança enrolada numa manta. Atualmente ela não aborda os motoristas, receosa de que a acusem de usar o bebê para sensibilizar os clientes. Apesar do incômodo de trazer o caçula consigo, diz que essa é a única saída. “Melhor na rua, comigo, do que em casa, com uma babá que não conheço, que pode judiar dele”, afirma.

Foi Simone, junto com o ex-marido, que começou a guardar carros por ali, depois de uma temporada como ajudante de cozinha, seguida de alguns meses vendendo cachorro-quente. Alemão aderiu logo à função, aos nove anos de idade. Hoje é o mais antigo e respeitado do grupo, tanto que a reportagem só conseguiu entrevistar os demais flanelinhas após sua autorização.

Assim que chega ao ponto de sempre, Alemão vai até a pizzaria da esquina e pega a faixa refletora e um banquinho de madeira, guardados para ele pelo garçom. Na base da camaradagem, o banheiro do estabelecimento também pode ser usado, mas só quando o dono não está presente. Devidamente equipado, Alemão se posta ao lado do meio-fio, enquanto sua mãe se acomoda no banquinho diante de um estúdio de tatuagens fechado e amamenta o bebê.

Há quatro vagas na guia rebaixada diante do Gelly’s Tattoo. Alemão “aluga” três e a quarta fica reservada para o dono do estabelecimento. Diferentemente da rua, onde os motoristas pagam o que querem, ali o preço é fixo: dez reais. De acordo com a Polícia Militar, estipular valor por vagas em local público ou cobrar antecipadamente é crime de extorsão. Mas, como aquelas estão em propriedade particular, não há problema. 

O acordo para usar a garagem, segundo Alemão, foi amigável. Em troca, ele garante que nenhum carro estacione bloqueando a saída, e inibi pichadores e boêmios alcoolizados que queiram aliviar a bexiga no canteiro do estabelecimento.
Já o dono do estúdio, Geleia, conta uma história ligeiramente diferente. “Temos uma relação simbiótica sem muita saída”, explica. Segundo ele, Alemão e a família realmente ajudam a manter a ordem na rua, mas a convivência foi difícil no começo. Havia muita gritaria, as vagas eram usadas sem sua autorização, e traficantes de droga se misturavam aos guardadores. “Tive que dar uma de maluco, sair gritando no meio da madrugada, daí as coisas se ajeitaram. Hoje está tudo bem, mas controlo a situação com mão de ferro”, afirma.

Lobo em pele de flanelinha
Tráfico de drogas, pequenos furtos e contravenções são atividades frequentes nas ruas das grandes cidades brasileiras. A fim de permanecer por longos períodos nos mesmos locais sem chamar atenção, é comum que traficantes e ladrões pés de chinelo busquem algum disfarce, geralmente como moradores de rua e, vez ou outra, como guardadores de carro.

Segundo o secretário-adjunto da Sedest (Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda do Distrito Federal), Daniel Seidel, foi isso que motivou o GDF (Governo do Distrito Federal) a cadastrar os guardadores e lavadores de carro de Brasília.

Segundo ele, havia um grande número de traficantes e ladrões que se disfarçavam de flanelinhas para cometer delitos na cidade. Agora, quem quiser exercer a função no DF precisa, antes de tudo, provar que não possui antecedentes criminais. Depois disso, tem que passar por um curso de capacitação onde recebe noções básicas de cidadania, leis de trânsito e capacitação para realizar o serviço de lavagem a seco. Desde 2009, o programa cadastrou 1.396 guardadores e lavadores, mas, ainda de acordo com Seidel, há muito a ser feito no setor.

Para o secretário, é preciso estipular áreas de atuação, tabelar valores a serem cobrados e impedir que guardadores não credenciados continuem a atuar. Além disso, o GDF pretende capacitar flanelinhas para trabalharem como guias turísticos, principalmente durante a Copa do Mundo de 2014. Por fim, para Seidel, é necessário elaborar um estudo socioeconômico para acompanhar os resultados das iniciativas. Segundo o secretário, as providências para que essas medidas sejam postas em prática já estão em andamento, mas as mudanças efetivas só devem sair do papel em 2012.

Jornada flexível
Em geral, Alemão trabalha de quarta a domingo. Ganha uma média de 40 reais por dia, mas há noites em que chega a faturar até cem. Por mês, recebe cerca de mil reais – dinheiro que nunca conseguiu receber em outros bicos e empregos.

Um pouco depois das 21h, o movimento aumenta nos bares, restaurantes e casas noturnas da Vila Madalena. O trânsito flui lento na quadra de Alemão. Com a cabeça erguida, atento o tempo inteiro, ele corre para ajudar um carro a estacionar, abre a porta para uma moça descer, depois já se adianta para sinalizar outra baliza. “Se a gente não mostrar que está aqui, o pessoal não deixa o nosso na volta”, explica. Diz que em geral recebe dois reais, que tem gente que não dá nada, e outros que dão muito. “Um dia parou um cara com um Porsche Cayenne, me deixou 30 reais e ficou menos de duas horas na vaga”.

Uma mulher estaciona um Citroën C3 na garagem da guia rebaixada e, quando Alemão informa o preço de dez reais, pergunta se pode pagar com cheque. Ele sorri, coça os cabelos oxigenados espetados de gel e diz que só trabalha com dinheiro. Ela ajeita a saia, fala que vai dar um jeito e caminha com o salto alto até o restaurante japonês, na outra quadra. “Sushi”, exclama Alemão. “Esse pessoal adora sushi. Come sushi até não poder mais.”

Por volta das 22h30, o trânsito para. Parece não haver mais vagas, mas Alemão continua encaixando carro atrás de carro, boa parte diante de garagens. Diz que sabe diferenciar os locais onde ainda vão entrar ou sair veículos daqueles que pode usar livremente. Também garante que a CET (Companhia de Engenharia de Tráfico) não multa quem estaciona em guia rebaixada, a não ser que o dono do imóvel ligue para a prefeitura para reclamar. Já a CET afirma que a orientação é para que os fiscais multem todos os carros parados em guia rebaixada, sem distinção. 

Às vezes, quando Alemão se distrai, o irmão do meio, H., ajuda no serviço. Mas o garoto passa a maior parte do tempo brincando com um joguinho eletrônico ao lado da mãe. H. continua na escola e não quer seguir a profissão do irmão, que não completou nem o ensino fundamental. Espera ganhar a vida como jogador de futebol.

Enquanto sinaliza assobiando para os motoristas que o ignoram, Alemão diz que, se pudesse, também escolheria outro trabalho. O que faz em si não o incomoda. Mas a função de flanelinha, para ele, é humilhante. “Acham que a gente é tudo noia, maloqueiro, ladrão”, explica.

De olho na lei
A revista sãopaulo, do jornal Folha de S.Paulo, publicou recentemente uma reportagem sobre flanelinhas onde havia um levantamento da Polícia Militar com 134 “pontos críticos” de atuação dos guardadores em São Paulo. A região central é apontada como a mais problemática, com 55 pontos críticos, seguida pela oeste, com 41. Estádios, universidades, shows, bares e restaurantes estão entre os locais onde essa atuação é mais intensa. Na semana seguinte, o jornal fez uma pesquisa pela internet entre seus leitores. Foram mais de 21 mil respostas à pergunta: “Você é a favor dos flanelinhas?”. Ao menos na pesquisa, os números não deixam dúvida quanto ao baixo prestígio destes profissionais: 81% responderam que não, e apenas 2% que sim. Do restante, 2% disseram que depende: “só se eles não exigirem pagamento antecipado”; e outros 14% disseram que também depende, “se eles forem cadastrados pelo sindicato da categoria”. 

Aos 51 anos, Marinaldo Oliveira da Silva conhece de perto as agruras da profissão. Filho e neto de flanelinhas, ele começou a cuidar de carros aos 16. Hoje é presidente do Sindiglaasp (Sindicato dos Guardadores e Lavadores Autônomos de Veículos Automotores do Estado de São Paulo). A entidade tem sede no centro da cidade e mantém um site na internet, mas possui pouca capacidade de atuação. Não há como sindicalizar trabalhadores de uma profissão que não é reconhecida pelo poder público.

Em 1977, o então presidente Ernesto Geisel publicou um decreto regulamentando a função de “guardador e lavador de veículos automotores” em todo o país. Segundo o texto, supostamente ainda em vigor, podem ser registrados flanelinhas que não tenham antecedentes criminais e que estejam em dia com as obrigações eleitorais e com o serviço militar. Na prática, contudo, essa lei nunca saiu do papel, e a função continua marginalizada.

Hoje, as esperanças de Marinaldo recaem sobre uma ação do Ministério Público de São Paulo, que, motivado por queixas de cidadãos quanto ao abuso de flanelinhas, abriu um inquérito para investigar o assunto. O objetivo é avaliar a atuação da prefeitura paulista e da Polícia Militar, e cobrar uma solução para o problema. “Do jeito que está não pode continuar”, afirma o promotor Raul de Godoy Filho. “Ou regulamenta a profissão, ou acaba com a atuação ilegal”. Diante da iniciativa do MP, a Prefeitura afirma que montou um grupo de trabalho para investigar a questão, mas que não irá se pronunciar até ter dados concretos.

A Polícia Militar não soube designar alguém para falar sobre o assunto e respondeu por nota. Sem mencionar o inquérito, afirmou que, na atuação dos guardadores, “além da extorsão, dependendo da conduta podem ser caracterizados os crimes de dano, furto, roubo, constrangimento ilegal ou ameaça”. Ainda segundo a PM, “a ação dos flanelinhas representa um sério problema à sociedade”. A corporação informou também que faz operações específicas para prevenir tais crimes, mas que é raro as pessoas darem queixa contra guardadores, o que dificulta o trabalho da polícia.

Já segundo Marinaldo, a polícia muitas vezes atrapalha o trabalho dos cerca de 15 mil flanelinhas que, de acordo com ele, atuam na cidade. Para o presidente do Sindiglaasp, os maiores problemas com a polícia ocorrem no entorno de estádios, onde os guardadores frequentemente acabam detidos para averiguação. “Quando o cliente volta, acha que o flanelinha pegou o dinheiro adiantado e se mandou, mas na verdade ele pode estar preso”, afirma.

Para quem se arrisca a estacionar diante do estádio em dia de jogo, as ações da PM certamente não parecem descabidas. Talvez não haja local da cidade onde a atuação dos guardadores de carro seja tão acintosa, às vezes até violenta. Eles são muitos, chegam a centenas, de acordo com a polícia, e disputam os motoristas numa batalha ferrenha.

Nas ruas ao redor do estádio Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, mesmo quem não pretende estacionar tem que estar sempre atento, a fim de não abalroar os vários guardadores que se jogam diante do carro, gritando e agitando os braços – intervenções que contribuem para agravar os congestionamentos antes dos jogos. “Se não for assim, não tem jeito de ganhar freguês”, afirma um flanelinha que, como todos os outros abordados na região, preferiu não se identificar.

Tranquilo, mas nem tanto
“Guardar carro em estádio é coisa de louco, eu, hein!”, exclama Alemão, que uma vez se arriscou a trabalhar durante um jogo junto com um amigo, mas foi expulso aos sopapos por flanelinhas locais. Na sua vizinhança, tudo parece mais calmo. Se bem que ali, vez ou outra, também espocam algumas desavenças.

Pouco depois das 23h, Alemão é chamado às pressas até a quadra de cima. Quando chega por lá, dois dos seus colegas se atracam no meio da rua, um acusando o outro de ficar com mais dinheiro. Alemão separa a briga e depois de alguns instantes de conversa tensa o entrevero se desfaz, com o prejuízo de uma camiseta rasgada, apenas. Para acalmar os nervos e manter o ânimo da noite, o guardador descola uma batida de limão com uma garota, também do Taboão, que vende bebidas numa mesa improvisada sobre o porta-malas de um Gol branco, caindo aos pedaços de velho.

Quando volta para a frente do estúdio de tatuagem, o trânsito está parado e todas as trinta vagas de que dispõe estão ocupadas. Combate o tédio ouvindo axé no alto-falante estridente do celular.
Por volta das 23h30, o manobrista de um estacionamento particular, o chamado valet, estaciona um Astra preto na vaga do dono do estúdio de tatuagem e entrega as chaves a Alemão. É um acordo entre eles: o flanelinha reserva um lugar para o manobrista que, em troca, sempre deixa um carro bem bacana destrancado. Assim, Simone pode colocar o bebê para dormir no banco de couro e descansar um pouco os braços. H. também aproveita a mordomia, e se aboleta com seu joguinho eletrônico no assento do passageiro. 

Pouco depois da meia-noite, H. ganha dois pedaços de pizza muçarela do garçom da pizzaria. Enquanto o garoto devora o jantar tardio, no trânsito, cinco garotas gritam e pulam dentro de um carro ao som de Lady Gaga. Dois rapazes num Golf vermelho de rodas customizadas emparelham ao lado delas. Com o tráfego parado, conversam por alguns instantes. Quando o semáforo abre, ambos os automóveis estacionam na guia rebaixada de Alemão, que assiste à distância.

Todos desembarcam, menos uma das meninas, que permanece no banco traseiro. As outras conversam com os dois rapazes até que um deles mergulha no carro das garotas e abraça a moça que havia permanecido lá dentro. Enquanto os dois se beijam, as amigas explicam que aquela é a noite de despedida de solteira da garota do banco de trás. Após algum tempo, uma das moças coloca a cabeça para dentro e diz: “Agora chega, Rê, vamos embora”. O rapaz sai do carro cambaleante. “Se contar, ninguém acredita”, comenta com Alemão antes de entrar novamente no Golf e seguir para a noitada.

Já é madrugada e o trânsito flui, as vagas seguem ocupadas e não há muito a fazer a não ser esperar. De tempos em tempos, quando algum motorista volta, Alemão corre para receber os trocados e gesticula ajudando na manobra. Mas, na maior parte do tempo, não há nada a fazer. O tédio é parte da profissão. Vez ou outra há, claro, momentos de emoção, que Alemão relembra empolgado.

Diz ter percebido uma vez que duas pessoas haviam arrombado um carro do qual estava tomando conta. Não havia tempo de chamar a polícia e, com os joelhos tremendo de medo, o guardador, à época com 15 anos, se aproximou devagar, enquanto os sujeitos reviravam o porta-luvas. “Estava morrendo de medo, mas dei uma ideia nos caras, disse que estava cuidado do carro e que se eles roubassem a coisa ia ficar ruim pra mim”. Os sujeitos ainda continuaram vasculhando o veículo por um tempo, mas depois saíram sem levar nada, nem o tocador de CD. “Ó, a gente só vai deixar isso aí porque você não chamou a polícia”, teriam dito, antes de irem embora.

Mas, ainda segundo Alemão, nem sempre é possível impedir furtos e pequenos acidentes. Já houve casos de carros cuidados por ele que acabaram com retrovisor quebrado ou aparelhos de som furtados. “Daí é esperar o cliente e ouvir a dura, fazer o que, né?”.

Profissão de risco
Assim como Alemão, Adriano trabalha sempre na mesma quadra, mas no bairro das Perdizes, em frente à PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica). Hoje com 43 anos, passou mais de três décadas na função, o que lhe tornou conhecido e permite até que receba mensalmente para reservar vagas da rua para os moradores do entorno. O “aluguel” custa cerca de cem reais, e Adriano garante que seus serviços valem a pena. Cadastrado como vigia pela Polícia Civil, diz que cansou de impedir assaltos na região e conta que chegou a ser baleado para defender o carro de um cliente. “Levei três tiros no peito e ainda tenho uma bala dentro do pulmão”, diz. 

Maria Stela Graciani, pedagoga da PUC, diz que os flanelinhas contribuem para a diminuição dos roubos de veículos no entorno da faculdade. Ela trabalhou durante 30 anos num projeto de convívio, atividades lúdicas e alfabetização com os guardadores da região.

Quando o programa teve início, a maioria dos flanelinhas era composta por crianças de 7 a 12 anos. Hoje, muitos deles conseguiram outros empregos, principalmente como taxistas ou manobristas. Dos cerca de 40 guardadores que passaram pelo programa, apenas três permanecem na mesma função. Adriano é um deles. Tem outro emprego, como porteiro, durante a noite. Mas só com o salário não dá conta de sustentar a esposa e os quatro filhos.

Para Graciani, que possui mestrado em Ciências Sociais, a regulamentação da profissão de guardador seria bem-vinda, pois, ainda que conhecidos da vizinhança e atuando na mesma região, eles sofrem preconceito. “Todo começo de ano há algum problema com calouros que não querem pagar ou acham que seus carros vão ser vandalizados”, explica. Mas, com o tempo, eles acabam se acostumando. “Atualmente a rua não é mais pública, pelo menos não no entorno de locais como universidades, teatros e estádios – regiões que foram mapeadas, não só por flanelinhas, mas por pedintes, ambulantes e toda a sorte de trabalhadores informais”, argumenta.

A regulamentação, ainda segundo a professora, também poderia ajudar a levar benefícios sociais para os guardadores, como fundo de garantia, férias, décimo terceiro e assim por diante.
Além disso, afirma que uma proibição legal dificilmente resolverá o problema enquanto não houver condições plenas de emprego no país. “Flanelinhas vão existir independentemente de leis e instituições. São pessoas que precisam sobreviver, subsistir”, diz.

Fim de noite
Pouco antes das 2h, um carro estaciona na vaga diante do estúdio de tatuagem. Um casal desce, Alemão se aproxima, informa o preço e pede o pagamento adiantado. Garante que permanecerá por ali até às 4h, mesmo sabendo que seu horário está prestes a vencer.

Pouco depois, mais seis guardadores se aproximam. Um deles estende um copo descartável a Alemão. Ele dá uns dois goles e abre um sorriso: “Tem que esquentar pra balada, né?”. Enquanto os amigos conversam combinando onde será o fim da noite, Simone junta seus pertences espalhados no banco traseiro do Vectra e enrola o bebê no cobertor. Depois se despede do filho mais velho e pede que tenha cuidado, antes de descer a rua acompanhada de H.

Caminhará até o Largo da Batata, em Pinheiros, onde tomará o último ônibus para o Taboão da Serra. Como mora em uma região muito violenta, o marido estará à sua espera no ponto, às margens da rodovia Régis Bittencourt. Com ela, Simone leva 60 dos 80 reais que o filho faturou naquela noite. É uma maneira de garantir que o rapaz não gaste tudo na diversão.

Assim que Simone se despede, os sete flanelinhas se livram dos coletes e faixas reflexivas e rumam para o Pancadão, uma boate de funk próxima. Quase todas as vagas de Alemão ainda estão ocupadas.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Gastronomia radical: uma refeição a 50 metros de altura

Durante parte de maio e começo de junho alguns sortudos tiveram a oportunidade de compartilhar uma experiência única: fazer uma refeição a 50 metros de altura a céu aberto, içados por um guindaste. É isso mesmo, em plena Avenida Faria Lima, coração financeiro de São Paulo, os convidados felizardos puderam conhecer a estrutura do Dinner in the Sky, que já passou por mais de 40 países proporcionando grandes lucros e emoções às pessoas.

Segundo o site dinnerinthesky.com, a ideia surgiu na Bélgica em meados de 2004 e chegou ao Brasil em 2009. A "mesa" comporta 22 pessoas sentadas e mais 5 pessoas no corredor central.

A música eletrônica agita o ambiente enquanto os bombeiros fazem os últimos acertos no equipamento para a subida. O chef e seu time de auxiliares “pré-preparam” os pratos que serão finalizados e servidos nas alturas. A equipe de apoio confere a arrumação dos pratos, copos e talheres na bancada.

O chef e os auxiliares ficam no centro da plataforma, no único espaço onde existe piso. Os convidados são presos por cintos de segurança resistentes, como os de carros de Fórmula 1, e têm um pequeno apoio para os pés. O resto é céu aberto.

No começo da subida, o chef faz uma breve apresentação sobre as bebidas e pratos que serão servidos. Naquele sábado foram feitas várias subidas rápidas, em que as pessoas ficavam cerca de meia hora nas alturas. No dia, as famosas tapas com tempero espanhol foram escolhidas como prato principal. A sobremesa era uma deliciosa mistura de chocolate belga, mousse de baunilha e macadâmia (estava tudo sensacional!).

Nos jantares, mais longos, com mais de uma hora de duração, os convidados apreciavam entrada, prato principal e sobremesa. Os cardápios eram variados, já que em cada subida um chef mostrava seus talentos culinários.

As reações são variadas: alegria, euforia, apreensão e até alívio, daqueles que têm medo de altura e quando menos esperam já estão no alto da aventura, apreciando a vista. Os enormes arranha-céus da Faria Lima não parecem tão altos quando você está a 50 metros de altura. Depois de uma bela refeição, o grande momento da atração fica por conta da coragem de cada um.

Os assentos reclináveis possibilitam aos convidados tornar a experiência mais radical. Nem todos encaram o desafio. A sensação de liberdade é impressionante, mas o vento forte e gelado assusta um pouco. O jantar nas alturas pode ser também romântico e os casais que voltam do passeio ficam felizes por compartilhar aquele momento com a pessoa amada, mesmo sem poder se beijar por conta da falta de mobilidade.

É a gastronomia radical: em vez de voar de balão, de pular de paraquedas você come nas alturas. A experiência é única e inesquecível, principalmente para o bolso. Desta vez o evento foi fechado ao público, mas em outras ocasiões o ingresso por pessoa chega a custar 600 reais por cabeça.

Thiago Barbieri, jornalista, especial para o NR

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Agora: sem receio de gás pimenta e canetadas retrógradas

A decisão unânime do STF merece um registro mais do que positivo. Nesta quarta-feira, segundo o tribunal, quem defende a descriminalização da maconha está exercendo os direitos à liberdade de reunião e expressão, previstos na Constituição Federal.

É simples assim.

Em trecho do seu voto, o ministro Celso de Mello, esclarece: "Quantos heróis nacionais não eram criminosos segundo a lei do tempo em que praticaram seus atos? Lembro-me de Tiradentes, julgado e condenado à morte como um traidor – praticou o crime de lesa-majestade. Foi o primeiro herói nacional, hoje patrono cívico do país e de diversas corporações policiais estaduais. Estariam, então, os autores de livros de história cometendo um crime ao incluí-lo no relato? Pergunto mais: seria inconstitucional a realização de um seminário em que se discutisse a liberação das drogas ou em que a proclamasse resultado das reflexões empreendidas? Mostra-se criminoso o documentário protagonizado pelo ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em que defende a descriminalização da maconha? A resposta é desenganadamente negativa."

Que o debate siga civilizado, sem repressão e pancadaria policial. E que os juízes que proibiram as marchas, repensem seu olhar conservador diante de importante questão nacional. E que venha a descriminalização com legalização. Esse é o passo seguinte que muitos esperam. Eu sou um deles.

Thiago Domenici, jornalista

E a novela continua...

Acredite quem quiser, mas a novela “Amor e Revolução” continua o seu calvário no SBT. A última pesquisa do Ibope (06 de junho) apresentava um índice de audiência de 3%, o mais baixo entre as novelas que estão sendo apresentadas no momento. Segundo o Instituto de pesquisa, para cada 100 televisores ligados no horário, apenas seis estavam sintonizados na novela. E isso é mau, segundo os especialistas no assunto.

Até aí nada de mais, pois sempre haverá um dos folhetins eletrônicos que ocupará a última posição na pesquisa, até mesmo com índices de audiência maiores do que este apresentado por “Amor e Revolução”. O grande problema é que os autores ainda não conseguiram encontrar o norte, o rumo certo para o enrosco em que se meteram. E tenho sérias dúvidas se o encontrarão.

Não me parece que o gênero telenovela, tal qual é feito no Brasil, aceite qualquer tema para ser dramatizado, sobretudo quando se trata de “contar histórias” a partir da realidade. E quando essa realidade envolve questões políticas, opções ideológicas, luta de classes, o confronto visceral entre ditadura e democracia, por exemplo, e ainda traz no seu bojo feridas não de todo cicatrizadas pela sociedade brasileira, torna-se necessário que seus autores conheçam minimamente o assunto que escolheram. E esse, definitivamente, não é o caso.


E não lamento. Ao contrário: quando ainda tenho paciência para ver algum capítulo e as situações e diálogos ridículos e inconsistentes que tentam fazer avançar uma história sem pés nem cabeça, compadeço-me com o desrespeito à memória de homens e mulheres como Carlos Marighella, Mário Alves, Heleny Guariba, Iara Yavelberg, Eduardo Leite (o Bacuri), Joaquim Câmara Ferreira, Carlos Lamarca, Aurora do Nascimento Furtado, Vladimir Herzog, Maria Lucia Petit, Rubens Paiva, Maurício Grabois e tantos outros que perderam a vida para que o Brasil não só recuperasse a democracia que lhe haviam aprisionado com baionetas e canhões, mas que pudesse também ser um país de maior igualdade e justiça social.

Não deixa de ser curioso que um grupo de militares, assim que os primeiros capítulos foram ao ar, manifestassem a intenção de impedir a exibição da novela sob a alegação de que ela dava uma ideia preconceituosa de nossas FFAA. Atitude, quanto a mim ridícula e desnecessária, pois além de afirmarem na prática o sentimento autoritário que caracterizou os seus pares nos anos 60/70, não atentaram para o fato de que a estrutura da novela, digamos desse modo, ridicularizava também a esquerda revolucionária.

A tal ponto, que mais recentemente um grupo de militantes da época organizou um abaixo assinado na internet pedindo que os autores da novela excluíssem dos depoimentos finais as opiniões de defensores do golpe e dos métodos empregados para livrar o Brasil do comunismo, sob o argumento de que o país está para aprovar a Comissão da Verdade justamente para passar a limpo esse período e punir os torturadores.

Concordo com o argumento, mas não concordo com o método, pois seria também uma forma de censura e o que é pior: daria subsídios aos criadores da novela para que, falaciosamente, argumentassem que faziam uma novela “democrática”, dando voz aos dois lados da contenda.

Com essa fraca audiência, a pergunta que se torna necessária é a seguinte: se a novela, de grande realismo – segundo os autores – pretendia mostrar às novas gerações o que foi o Brasil dos anos 60/70 (assunto para o qual não se prepararam, insisto) o que explica audiência tão baixa? Estão as novas gerações desinteressadas do assunto ou perceberam que estão diante de uma tentativa de se vender gato por lebre?

Izaías Almada é autor entre outros do livro “Teatro de Arena: uma estética de resistência” (Editora Boitempo) e colunista do NR.

terça-feira, 14 de junho de 2011



Veruscka Girio, publicitária, designer, diretora de arte, produtora multimídia, videocenarista, vj e curiosa no processo do uso do computador como ferramenta de criação e produção artística para elaboração de novos mundos. Mantém a coluna interativa Astronauta Mecanico.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Jornal Movimento, uma reportagem

O livro do jornal Movimento, da Editora Manifesto S.A, que faz a revista Retrato do Brasil, já está no prelo. E disponível  para todos que o queiram ler e saber mais sobre a história do jornal feito por jornalistas, como descreve a apresentação abaixo. O livro foi coordenado por Carlos Azevedo, com quem já trabalhei algumas vezes e teve reportagens das minhas amigas Natalia Viana e Marina Amaral. A capa e a diagramação do livro são do ótimo Chico Max. O lançamento do livro impresso está previsto para o mês de julho, em algumas capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Brasília e Belo Horizonte.

"Ao longo de sua história, a imprensa brasileira passou por vários momentos de grave cerceamento da liberdade de expressão, e em todos eles soube mostrar dignidade e coragem.

Houve inclusive publicações que surgiram em pleno regime de exceção, especialmente durante o mais recente período autoritário (1964-1985), trazendo a resistência como marca de nascença.

Eram publicações pequenas, sem grandes recursos para assegurar sua sobrevivência num ambiente absolutamente adverso (além da censura propriamente dita, sofriam, por parte do regime, o bloqueio de publicidade e, frequentemente, a violência de atentados e agressões). Souberam, com formidável galhardia, carregar as melhores bandeiras das reivindicações democráticas.

A capa do livro, com lançamento previsto
para o mês de julho.
Daí a relevância deste projeto, que conta a história do semanário Movimento, que circulou entre 1975 e 1981. Numa etapa em que a censura imperava, a luta de pequenas publicações como Movimento contra a máquina de impor silêncio era de uma audácia formidável. Foi imensa sua importância e sua influência ao trazer à tona vários temas que geraram debates enriquecedores.

A Petrobras é a patrocinadora do projeto de resgate da história do semanário Movimento. Somos uma empresa que aposta no futuro. Por isso sabemos da importância de se conhecer nosso passado.

Tendo como missão primordial, desde que foi criada, contribuir para o desenvolvimento do Brasil, a Petrobras segue rigorosamente esse compromisso em seu dia a dia. Damos nossa contribuição apoiando a indústria pesada brasileira, aprimorando nossos produtos, expandindo nossas atividades para além das fronteiras, desenvolvendo tecnologia de ponta – e patrocinando as artes e a cultura. Além de maior empresa do Brasil, somos também os maiores patrocinadores culturais. E fazemos isso observando sempre nossa missão primordial. Afinal, um país que não respeita sua cultura, que desconhece o seu passado, jamais será um país desenvolvido."

Guitarrista do Skyrocket Love diz como é trabalhar nos EUA

Que viver de música no Brasil é um problema, a gente já sabe. Hoje, com raras exceções, qual artista vive de venda de material fonográfico? Estar no palco, fazer shows e grandes turnês é que pode garantir uma verba para estes profissionais que na maioria das vezes trabalham como freelancers, ou seja, não contam com nenhuma segurança ou estabilidade profissional.E se a coisa é tão complicada no Brasil, como é ser um brasileiro, músico e viver dessa profissão nos EUA?
Desta vez, “Penetra Oficial” resolveu conversar com o cearense Lucas Martins Guterres, de 25 anos, guitarrista que atualmente enfrenta a burocracia dos EUA para se estabilizar no país e na profissão.
Lucas é o único brasileiro da banda Skyrocket Love, que ele define como um pop/rock moderno estilo 30 Seconds To Mars, Muse e Coldplay.
Por Fabiana Cardoso dos Santos, jornalista e produtora

Você vive de música ou tem outra profissão nos EUA?
Lucas: Eu inicialmente vim pra estudar apenas, e agora estou vivendo apenas de música.

Com qual idade você se mudou de país? Por quê?
Lucas: Eu me mudei pros EUA em 2010, aos 24 anos. Vim pra estudar Engenharia de Áudio (apesar de ser guitarrista) pois sempre quis adquirir o conhecimento de estúdio, gravação, produção, etc.. Pra tentar de alguma forma adquirir mais conhecimento como músico. Estudei numa escola bastante reconhecida, e que recomendo demais pelas oportunidades profissionais que eles dão aos alunos. A quem possa interessar, a escola é o Musicians Institute em Hollywood/CA, e eles oferecem cursos de todos instrumentos, com duração de 3 meses até bacharelado.

Quais são as principais diferenças, vantagens e desvantagens de cada país?
Lucas: Acho que pra começar, depois de experimentar os dois lados, eu diria que músico no Brasil não é reconhecido como merece. Não que nos EUA seja, mas definitivamente o Brasil sendo um país naturalmente tão musical, as pessoas poucas vezes prestam atenção no que realmente tem qualidade ou em novas bandas, e sim no que são "forçadas" a gostar pela mídia. Uma vantagem no Brasil - na minha opinião - é a forma como as pessoas demonstram sentimento por música, talvez seja até algo cultural, não necessariamente uma desvantagem na América. E um ponto positivo nos EUA seria a forma como as pessoas estão dispostas a ouvir e conhecer novos artistas, o que definitivamente não acontece no Brasil.

Quanto às diferenças musicais, quais as principais?
Lucas: À primeira vista, acho que aqui (EUA) é conhecido como o país do rock, enquanto o Brasil como o país do samba. Pessoalmente, acho que o Brasil tem uma variedade musical maior, embora tudo que tem nos EUA, também tem no Brasil. Mas, nosso país leva vantagem nos extras, como samba, axe, forró, MPB, e por aí vai. Já no EUA o acesso à qualidade é mais fácil, por exemplo, o preço de equipamentos são mais baixos, consequentemente muitas vezes você consegue criar um bom produto com poucos recursos. Acho que o brasileiro, quando interessado, tem a oportunidade de trazer na bagagem uma cultura musical maior!

E sobre a abertura de mercado, como funciona?
Lucas: Como falei anteriormente, isso definitivamente é um fator positivo aqui nos EUA. Pra exemplificar: Em praticamente todas as casas de show de Hollywood você tem a chance de ver entre 3 a 4 bandas autorais por noite, de segunda a segunda. Não apenas nos finais de semana. Não significa que é mais fácil você conseguir um contrato com gravadora ou colocar sua banda no topo do mercado, mas com certeza é uma forma de poder mostrar seu trabalho.

Os músicos conseguem destaque em grandes eventos?
Lucas: Acho que isso acontece da mesma forma que no Brasil, através de um "relações-públicas". O segredo é qual você vai contratar. Naturalmente, levando em conta que os maiores eventos do entretenimento mundial acontecem aqui em Los Angeles, ter um agente que consiga te colocar nos eventos "classe A" vai de acordo com o quanto você, sua banda, ou gravadora está disposta a pagar. Nas semanas que antecedem eventos como Oscar e Grammy, a cidade ferve com festas promocionais todas as noites, e pra entrar nos eventos mais concorridos, às vezes só artistas com nomes estabelecidos no mercado, ou muito bem relacionados com os organizadores/patrocinadores.

E você já vivenciou o desespero das "sub-celebridades" tentando aparecer no show business?
Lucas: Isso é tão comum que assusta. Como eu sou avesso a certos tipos de badalação, mas muitas vezes tenho que ir por compromissos profissionais, eu geralmente assumo uma postura de observador em alguns eventos. E, talvez por ser tão constrangedor, acabo achando engraçado aqueles artistas que (literalmente) dão qualquer coisa pra dar uma entrevista; tirar uma foto com artista famoso; desfilar no tapete vermelho e fazer poses absurdas prós fotógrafos, que grande parte das vezes não fazem a menor idéia de quem é a pessoa; ou muitas vezes ficam pedindo quase que desesperadamente pro seu assessor conseguir uma entrevista, mas na hora de falar assumem aquela postura arrogante como se fossem superiores à todos em sua volta. Sabe a famosa vergonha alheia? É constante.

Como é o contato com os músicos internacionais?
Lucas: Conheço artistas quase que diariamente aqui, seja em shows, festas ou em estúdio. Mas nunca conheci nenhum dos meus grandes ídolos. E acho que prefiro assim. Muitas vezes você cria uma imagem de um músico que você acompanha a carreira há 10 anos, mas na verdade na vida pessoal ele é totalmente o oposto (risos). Por outro lado, já tive a chance de assistir shows de todos eles ao vivo, com exceção dos que já partiram. Alguns que já fui aos shows são: John Mayer, Keith Urban, Bon Jovi, Aerosmith, Eric Clapton, Jason Mraz, AC/DC, Paul McCartney, Elton John, e por aí vai. Dos que já foram com certeza Stevie Ray Vaughan é o principal deles!

Você sabia?
A Hollywood do cinema não é uma cidade, mas sim um distrito de Los Angeles, a maior cidade da Califórnia e segunda maior dos Estados Unidos. O local ganhou imensa notoriedade por conta da concentração de inúmeras empresas ligadas ao cinema, desde estúdios até empresas que trabalham com efeitos especiais, edição e outros serviços ligados à indústria.

Em quais casas importantes você já tocou nos EUA?
Lucas: Definitivamente é uma das experiências que eu agradeço ter vivido aqui. Você trabalha, trabalha, e quando se dá conta está tocando no mesmo palco que no passado seus ídolos tocaram. Whisky a Go Go é um desses lugares. Pequeno, estilo bem underground, sem nenhum tipo de luxo, mas cheio de história. Nos passado foi palco de várias bandas e artistas que se tornaram famosos, como Guns n' Roses, Jimi Hendrix, The Who, The Police, entre muitos outros. É um bom começo!

Como é trabalhar com grandes empresários e produtores. E com quais já trabalhou?
Lucas: Tive oportunidade de trabalhar com vários produtores e conhecer muitos outros. Luke Ebbin foi um dos que tive a oportunidade de trabalhar. Ele produziu o álbum Crush do Bon Jovi, que foi uma das primeiras bandas da qual virei admirador. Coincidência ou não, em um dos dias que estávamos no estúdio, ele nos mostrou - sem saber que eu era fã de carteirinha - uma música que tinha acabado de gravar com Richie Sambora como possível tema de um programa de televisão aqui nos EUA. A sensação de ouvir uma música inédita do seu ídolo antes de todo mundo foi interessante. Outro que sou muito grato por ter trabalho foi o Dan Korneff, que já trabalhou com bandas como Paramore e My Chemical Romance. Um talento absurdo e uma humildade rara de encontrar nesse meio!

E quais foram os maiores perrengues que passou, tanto no Brasil como nos EUA?
Lucas: Acho que todo músico, principalmente no início de carreira, passa por umas situações desagradáveis. Desde a forma como algumas vezes é tratado por um contratante, até contratempos no palco durante um show. Acontecem tanto os problemas técnicos, como um amplificador dar problema, como os fisiológicos, tipo ter dor de barriga no meio do show. E se já é difícil parar no meio do show, imagine em lugares que sequer há um banheiro decente! Acontece nas melhores e maiores bandas (risos).

Quais são as documentações necessárias para conseguir trabalhar de forma legal como músico nos EUA?
Lucas: A forma mais comum de conseguir trabalhar legalmente como músico nos EUA é com o visto de artista. Não é simples conseguir (estou passando por isso no momento), mas se você preencher os requisitos dá certo! Alguns dos itens principais requisitados são: um contrato nos EUA que prove que você vá trabalhar como músico e ser bem pago por isso; vasta publicidade como músico profissional no seu país de origem, comprovando que você é reconhecido pelo seu trabalho, antes de vir morar nos EUA. A lista é bem extensa, mas se você possui esses dois primeiros, já começou bem. E claro, o preço é bem salgado. Contando as taxas de aplicação e honorários de advogado, o processo inteiro custa em média U$4.500.

Você, como brasileiro, qual conselho dá para quem quer sair do país para trabalhar como músico?
Lucas: Acho que músico de verdade nunca escolhe essa profissão pelo dinheiro ou fama, e sim por amor. Mas claro, todo mundo tem contas pra pagar no final do mês! Pensando nisso, eu diria que vale a pena correr atrás do que você sonha, mas sempre com um projeto em mãos e um objetivo a ser alcançado. O famoso "american dream" não existe, se é que um dia existiu, então não adianta sair do Brasil pra um país de primeiro mundo, seja os EUA ou qualquer outro, achando que vai ser mais fácil. Talvez você seja mais bem recompensado financeiramente, mas vida de músico nunca vai ser fácil (risos). Mas sem dúvida é um grande passo pra adquirir experiência, conhecer novos músicos, e assim crescer profissionalmente.

Por fim, como você analisa sua vida como músico fora do Brasil?
Lucas: O fato de estar em Los Angeles me deu a oportunidade de conhecer e trabalhar com pessoas que sempre admirei, mas se engana quem pensa que a vida de músico nos EUA é mais fácil. Além das dificuldades burocráticas por ser de outro país, ainda existe o fato de aqui ter talvez 20 ou 30 vezes mais bandas que no Brasil, isso faz com que a concorrência seja muito maior. Mas, acho que o lugar de cada um de nós está guardado, só temos que correr atrás!

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Realidade catastrófica

O mundo deveria acabar no último dia 21 de maio. Ao menos é no que apostavam os adeptos do grupo cristão evangélico estadunidense Family Radio, que comprou dezenas de espaços nas principais cidades dos Estados Unidos e Canadá para anunciar que o juízo final viria na data.

Com sede na Califórnia, o Family Radio lançou uma campanha mundial na qual advertia que “só os verdadeiros crentes se salvariam”. Em sítios na internet, assim como nas ruas, o grupo gastou uma fábula para estampar frases como: "o Dia do Juízo Final é o dia 21 de maio de 2011. A Bíblia garante".

A não ser que eu ainda não tenha percebido o fim e que o Nota de Rodapé tenha ultrapassado barreiras dimensionais, indo muito além do virtual, acredito que o planeta, assim como a vida que nele existe, resolveu contrariar a previsão.

Comunicação
e ironia


Dirão que estou sendo irônico em demasia. Talvez. Contudo, grandes ironias se dão no âmbito da comunicação. Exemplo clássico disso ocorreu a partir das 20h de 30 de outubro de 1938. Era o Dia das Bruxas nos Estados Unidos e Orson Welles transmitia uma dramatização de "A Guerra dos Mundos", de H.G. Wells, pela rádio CBS.

Por uma hora, músicas eram interrompidas com entradas de repórteres em crescente tom de desespero à medida que relatavam explosões em Marte e meteoritos caindo na Terra, o que, na sequência, seria descrito como uma invasão alienígena que aniquilaria o mundo. Pura travessura de Welles. Uma traquinagem midiática que, como experimento, testou a capacidade das pessoas em acreditar no que os veículos de comunicação transmitem.

Na semana do dia 21 de maio, a mídia circulou a informação do “fim do mundo”. Muitos crentes ficaram crédulos. Uns não trabalharam. Outros pensaram em suicídio. A maioria das pessoas não levou as notícias a sério. No geral, emissores e receptores compartilhavam mensagens em tom de zombaria. Desde a propaganda patrocinada pelo grupo evangélico até a divulgação por veículos jornalísticos, a coisa toda deu sinais de nova brincadeira.

Dura realidade

Após tanta invencionice, uma dose cavalar de realidade. Chega a ser um coice. Eis que se apresenta a falta de cuidado de boa parte da mídia ao trabalhar informações – não tomando por base o fim do mundo da Family Radio ou a destruição alienígena de Welles, mas os noticiosos cotidianos.

Bastou uma edição regular do Jornal Hoje, da Rede Globo, no dia 24 de maio, para esquecer o catastrofismo e a ficção. Reportagem sobre o crescimento do número de celulares no Brasil e a repórter larga para a entrevistada: “entre dois rapazes, se um tiver o aparelho da sua operadora e outro não, você liga pra quem?”. Resposta: “ligo pro que tiver o da minha operadora”.

Depois dessa, para que preocupação com o fim do mundo ou com invasões alienígenas? Hoje, o maior cuidado é tirar minhas filhas da sala quando começa um telejornal.

Moriti Neto é jornalista

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Morre Jorge Semprún, escritor e político espanhol

Jorge Semprún, militante destacado do Partido Comunista Espanhol durante os anos difíceis do franquismo e escritor de grande talento, faleceu em Paris na última terça-feira, 7 de junho, aos 87 anos. Sofria, há alguns meses, de um tumor no cérebro.

De Semprún pode ser lida em português sua famosa Autobiografia de Federico Sánchez (tradução de Olga Savary, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1979). O livro ultrapassa as reminiscências de sua militância no Partido Comunista Espanhol e da resistência democrática e popular ao regime franquista.

Como destaca Semprún no primeiro capítulo do livro, “o tema das relações do intelectual com o partido, e mais amplamente com o movimento operário em geral, é um dos assuntos principais deste ensaio de reflexão autobiográfica.” (p. 18) E acrescenta com precisa ironia, verberando os preconceitos obreiristas difundidos nos partidos comunistas da época: “Isso de ‘intelectual’ na verdade é faca de dois gumes. Serve como um elogio ou como um anátema.” (Ibidem) Mas não falta às memórias do militante e escritor espanhol a coragem também da autocrítica: “Eu tenho sido um intelectual stalinizado. É bom saber que eu o fui e explicar porque o fui.” (p. 21)

Jorge Semprún nasceu em Madri, capital da Espanha, em 1923. Filho de um ministro do governo republicano, ele e sua família foram obrigados a exilar-se após a derrota da Frente Popular na guerra civil e a instalação do regime fascista sob o comando do general Franco em 1939. Passaram pela Suíça e pela Holanda, fixando-se finalmente em Paris, na França, onde o jovem espanhol aderiu ao Partido Comunista em 1941 e, logo em seguida, à Resistência francesa. Preso pela Gestapo em 1943, foi deportado para o campo de concentração de Buchenwald num trem abarrotado de prisioneiros. Essas experiências, apesar de penosas, não o abateram e inspirariam mais tarde seu primeiro romance, A grande viagem.

Com a libertação da França e a derrota do nazismo, regressou a Paris, de onde viajava com frequência e identidade falsa para a Espanha, a serviço do Partido Comunista Espanhol, vindo a integrar o Comitê Executivo do Comitê Central do partido de 1956 a 1964. Assumindo posições contrárias ao estalinismo cada vez mais incisivas, e divergindo da orientação seguida pelo partido sob a liderança de Santiago Carrillo, acabou sendo excluído da organização, passando a dedicar-se à literatura e ao cinema. Escreveu romances em língua espanhola ou francesa, vários premiados, como o já referido A grande viagem, de 1963, ou A segunda morte de Ramón Mercader, de 1969. Foi autor também de roteiros cinematográficos muito elogiados, como o do belo filme A guerra acabou, de 1966, dirigido por Alain Resnais e interpretado por Yves Montand, ou os dos consagrados filmes de Costa-Gavras, Z, de 1968, e A confissão, de 1970.

Com a derrocada do regime franquista, retornou à Espanha, ocupando o cargo de ministro da Cultura de 1988 a 1991, no governo socialdemocrático de Felipe Gonzalez. Nos últimos anos, tornou-se um ardoroso partidário da unificação europeia.

Não é preciso concordar inteiramente com um militante e intelectual para respeitar sua trajetória, admirar sua obra e aprender com suas experiências e reflexões. O século XX, com seus abalos, avanços e retrocessos, não foi fácil, nem retilíneo, nem para as lutas sociais, nem para as biografias de seus protagonistas. Jorge Semprún, um desses protagonistas como comunista ou como democrata, como ativista ou como escritor, merece, apesar das divergências que se possa ter com algumas de suas posições e escolhas, o reconhecimento de todos os militantes proletários e intelectuais críticos que não desistiram de lutar por sociedades autenticamente democráticas e socialistas

Duarte Pereira, 72 anos, é jornalista e escritor, especial para o Nota de Rodapé

Crack e o óxi: epidemia socialmente incontrolável

O crack se instalou nas principais cidades do planeta e se tornou uma espécie de epidemia socialmente incontrolável e com consequências destruidoras para os usuários.

É o que revela a Pesquisa sobre a situação do Crack nos Municípios Brasileiros realizada recentemente pela Confederação Nacional de Municípios.

O estudo esclarece o caráter onipresente da droga em território nacional ao cravar a estatística negativa na qual 98% das cidades brasileiras relatam casos de consumo de crack.

Foto: Victor Moriyama

O balanço segue ladeira a baixo e revela o despreparo do Estado em lidar com o problema: 91% dos municípios não possuem programas próprios para tratamento de viciado.

A falta de amparo governamental, entretanto, não é nenhuma novidade entre os usuários: "A assistência social vem até aqui, nos convence a voltar pro albergue e diz que vai colocar a gente no mercado de trabalho, que vai recuperar a gente e etc. Já esperei oito meses e desisti, fui embora e prefiro morar na rua", me relatou um usuário.

Os albergues públicos, ofertados pelas prefeituras como alternativa aos moradores de rua, acabam se tornando locais renegados em que as divergências culturais se intensificam a cada pernoite.

"Fumei meu
monza inteiro"


Em São José dos Campos, interior de São Paulo, a disposição para se reintegrar a sociedade é enorme e consenso entre usuários. Alguns alegam a incapacidade incutida no vício, outros tem o sonho de ter uma "conversinha" com o prefeito a fim de esclarecer algumas "questões sociais".

Os estigmas de preconceito que os usuários carregam são tão fortes que o processo de reintegração a sociedade se torna um túnel cuja luz em seu final é apenas a pedra no cachimbo."Não vejo saída, mas gostaria muito de ser ajudado. Quem vai dar emprego para mim?",  me contou entrestecido certa vez um travesti.

De modo geral, a dependência impede a volta dos usuários a vida normal, muitos perderam o controle e viram sua estrutura familiar ruir em poucos meses. Ruan gastou 40 mil reais em apenas 3 semanas entre festas em hotéis e longas tragadas de crack. "Fumei meu monza inteiro" conta outro usuário.

Tive a oportunidade de registrar alguns usuários nas regiões centrais das cidades de São Paulo e São José dos Campos (SP) e notar traços de uma permanente inquietação. Alguns personagens, depois do uso mostravam um comportamento transtornado, e as alucinações eram constantes.

Muitos me relataram seu desejo em sair do vício, qualificado como incontrolável, mas esbarravam na falta de amparo do Estado em oferecer clínicas de tratamento ou mecanismos de ajuda. Outros classificavam a droga como uma "manifestação do Diabo", uma mescla de desejo e prazer mas, principalmente, o consumo era dominado por sensações de medo e pânico.

Suas histórias de vida relatam o verdadeiro drama de quem vive na rua. O desligamento social se impõe como irreversível e trava uma batalha diária. Apenas os fortes sobrevivem. Os "companheiros" do vício cumprem o papel da família sanguínea, que a essa altura deu ao indivíduo como um ser perdido
para o mundo das drogas e sofre sua dor exclusiva.

"Quem vive nessa vida de nóia não tem amigo! Se você deixar, maluco rouba sua camiseta para tentar trocar por pedra" relata Ruan. Compreender a abrangência do impacto psicológico que uma família sofre ao ver seu "chefe" dominado pelo vício, não é uma tarefa fácil.

Especialistas indicam que o ápice do efeito da droga se da nos 3 primeiros minutos e pode se prolongar, de forma reduzida, até 10 minutos. Trata-se de um efeito rápido, de curta duração e que leva o usuário a querer estar novamente sob efeito dá droga.

Estima-se que um viciado pode chegar a morte em 7 anos ao usar a droga todos os dias. Para "encrementar' o mercado, os vendedores da droga introduziram uma nova moda no país, o Crack colorido, cujas pedras variam nas cores azul, verde e rosa.

No ramo dos negócios vale tudo para atrair a freguesia. Este artifício do mundo fora da lei, chega ao mercado consumidor num momento de expansão da droga rival, o lixo do crack que ainda não se instalou em todo o país. É o Óxi - "oxidado" - é produzido a partir da pasta de coca com o acréscimo letal de cal virgem e querosene. A mistura é extremamente tóxica e segundo "especialistas", já que é ambígua a existência de um especialista num fenônemo novo, pode levar a morte em menos de três anos.

O crack é fabricado a partir da mistura de bicarbonato de sódio com uma pasta de cocaína. A palavra "crack" vem do inglês “to crack” associado ao barulho que as pedras fazem quando queimadas. O óxi, por sua vez, libera, durante a combustão, um óleo extremamente tóxico que pode ser reaproveitado pelo usuário se misturado ao cigarro, fator que amplia o nível de dependência da nova droga.

Ambos são consumidos em cachimbos improvisados ou em latas de alumínio e contam com o auxílio das cinzas de cigarro colocadas embaixo da pedra durante o consumo. Nas bocas de fumo o valor da pedra de crack é padronizado e custa em média 5 reais, já o Óxi sai pela metade do preço.

Com o objetivo de acelerar a disseminação do oxidado, os pontos de venda da droga lançam uma nova promoção para facilitar a aquisição do produto, 3 por 5.

Victor Moriyama, 26 anos, é repórter fotográfico do Jornal O Vale, em São José dos Campos, cidade que reside atualmente. Estreia hoje a coluna Fotógrafo-escreve no NR.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Do xadrez ao besteirol

Na premiação que é considerada a mais importante da internet, vá lá, o Oscar da Internet, apesar de eu não gostar do termo, a Webby Awards – em sua 15º edição – elegeu o Watson como a personalidade do ano.

Só que o Watson não é um ser humano. É um computador – um supercomputador – da IBM. O sistema foi desenvolvido pela equipe de inteligência artificial da empresa.

Abaixo, reproduzo um texto do Flávio de Carvalho Serpa, publicado recentemente na Retrato do Brasil, contando os feitos dessa máquina.

Do xadrez ao besteirol 

O Watson é um computador da IBM que concorreu no Jeopardy, um programa muito popular de perguntas da TV norte-americana no qual os participantes devem apertar rapidamente um botão caso saibam a resposta correta.

Na disputa com humanos, Watson levou a melhor
No Brasil, um show similar, mas só com pessoas, foi apresentado na década de 1950, O céu é o limite, oferecendo prêmios em dinheiro. O Watson massacrou os concorrentes humanos, todos campeões dos anos anteriores, respondendo coisas de conhecimento geral e trivialidades. Anos antes, em 1997, o Deep Blue, também outro computador da IBM, já havia derrotado o campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov. 

A diferença, no caso da derrota de Kasparov, é que no xadrez as regras são lógicas e todas as táticas estavam carregadas na memória do computador, dando-lhe vantagem. Já Watson respondeu sobre banalidades da cultura, o que implicou programação muito mais complicada e um "comportamento" mais perto do humano.

Watson é formado por 90 servidores com 2.880 processadores. Ele não está conectado ao Google, o que só atrapalharia. Em vez disso, tem na sua memória milhões de documentos selecionados (sem o lixo do Google), dicionários, enciclopédias e livros de conhecimentos triviais, de histórias de costumes a futilidades em geral. Baseado na pergunta, Watson processa em milésimos de segundos milhões de dados em busca de similaridades, com um algoritmo que indica a porcentagem de probabilidade do que poderia ser a resposta correta. No programa Watson, conquistou 77.144 pontos, contra 24.000 do segundo e 21.600 do terceiro colocado.

Dias depois, Watson teve uma recaída e perdeu para um concorrente veterano, que há 35 anos ganhou o concurso cinco vezes consecutivas. Rush Holt, um político profissional que atualmente é deputado republicano, acertou, por exemplo, que hipofobia é medo de cavalos, informação que Watson não encontrou na sua memória. Na etapa seguinte, da qual participaram outros políticos, no entanto, Watson ganhou no combinado, fazendo 40.300 pontos contra 30.000 da soma dos humanos

Na pergunta “O que é o amor?”, Watson arrancou gargalhadas da plateia com a resposta vencedora: “É uma insanidade temporária curável com o casamento”. Ele achou essa resposta no livro Dicionário do diabo, de Ambroise Bierce. Por outro lado, ele confundiu a maluquete Paris Hilton com o prédio da rede hoteleira na capital francesa.

O quase chamuscado Holt evitou vangloriar-se da vitória ao ser aplaudido na Câmara dos Deputados. Sabiamente, ele alertou: “Estou orgulhoso, mas é crucial a educação em matemática e ciências para o futuro da nação”.

O representante da IBM, citado pela revista Time, completou o raciocínio dizendo que a tecnologia de Watson era um salto, e não apenas um exercício de trivialidades. Para ele e a IBM, o computador é uma poderosa ferramenta para ajudar na decisão de questões complicadas que envolvam o processamento de milhões de dados em tempo de trabalho muito curto, como exigem situações de emergência.

Fora da ribalta, Watson já arrumou emprego em uma área muito mais séria. Com milhões de diagnósticos e sintomas médicos em sua memória, ele vai estrear na área médica, prometendo ser mais eficiente – no que diz respeito a diagnóstico de doenças raras – que o Dr. House do seriado de TV. Brevemente, via Internet, ele vai estar nas melhores salas de emergências dos melhores hospitais. Afinal, o trunfo de um bom médico é sua longa experiência, mas todos eles têm memória limitada. A combinação de inteligência, experiência e especialização de milhares de médicos é, certamente, muito mais poderosa.
O representante da IBM disse que a tecnologia de Watson
era um salto, e não apenas um exercício de trivialidades

Também os grandes escritórios de advocacia dos EUA já estão de barbas de molho, segundo anuncia o veterano jornalista de tecnologia John Markoff. Ele conta, num artigo no New York Times, que exércitos de juristas especializados em pesquisas de legislação, uma profissão muito bem paga, estão com os dias contados, prontos para se aposentar com a chegada de um software relativamente barato.

Em janeiro, a empresa especializada Blackstone Discovery, de Palo Alto, Califórnia, analisou e classificou em poucas horas, por 100 mil dólares um milhão e meio de documentos relevantes num caso, na ordem de importância. Anos antes, em 1978, registra o jornalista, perícia semelhante gastou meses, com advogados trabalhando em regime de horas extras a um custo de mais de 2 milhões de dólares. Calcula-se que a busca eletrônica com algoritmos tenha reduzido a necessidade para apenas um jurista pericial em casos que antes empatavam nada menos que 500 deles.

Para piorar, empresas que contrataram esses serviços resolveram testar o desempenho das enormes equipes desde a década de 1980, usando a mesma documentação disponível. Foi um desastre. Apenas 60% do trabalho foram considerados precisos e acurados. “Pense em quanto dinheiro foi gasto, com resultados pouco melhores do que decidir no cara ou coroa”, comentou um analista no New York Times. 

A Blackstone usa algoritmos de inteligência artificial (IA) tão avançados que não se baseiam na busca de palavras-chave, como faz o Google. E pode deduzir padrões de comportamentos que escapariam aos analistas humanos.
Antigamente, o medo de a automação causar desemprego limitava-se aos trabalhos repetitivos e mecânicos, de baixa qualificação, mas agora a ameaça espalha-se por todas as gamas de profissões. No setor financeiro de Wall Street, por exemplo, a quase totalidade de decisões de compras e vendas de papéis já e feita por supercomputadores em frações de segundo ao longo de todo o pregão. Não há humanos para concorrer com eles.

Trata-se de uma tendência para a qual a humanidade ainda não tem um plano B, nem mesmo um A. Segundo um desses visionários, Marshall Brain, o criador do popular site HowStuffWorks (Como tudo Funciona, no Brasil), existem fortes razões para temer a esperada proliferação dessas máquinas. “Em 2030, eles vão ocupar quase a metade dos empregos nos EUA”, previu Marshall para a revista Business Week. Eles já são considerados mais eficientes em cargos de decisão de RH (Recursos Humanos), pois não se deixam levar por emoções baratas e subjetivas dentro das empresas.

Markoff, o jornalista do New York Times, reuniu opiniões pouco esperançosas sobre essa questão. David Autor, professor de economia no MIT (Massachusetts Institute of Technology) é piedoso, mas pessimista. “Não há razão para acreditar que a tecnologia aumente o desemprego. A longo prazo, vamos inventar coisas para as pessoas fazerem”. O mais grave, especula ele, “é se as mudanças tecnológicas vão levar a empregos melhores. A resposta é não”.

Nos próximos dez anos, além do reconhecimento da fala, as máquinas de gerações sucessoras de Watson e Deep Blue vão entender o que está sendo dito pelos humanos – ou então de simular um entendimento e respostas capazes de ludibriar até os mais inteligentes humanos. As novas gerações de programas de computador baseadas em Inteligência Artificial vão, no mínimo, se tornar mestres da dissimulação e do fingimento. 

A vitória de Watson não se deve apenas ao esmagador poder computacional de supercomputadores de processar dados e documentos, e sim ao projeto de Inteligência Artificial na área de software. Há bastante tempo, os programadores de IA abandonaram as tentativas de produzir programas que imitassem a inteligência do cérebro humano. Até porque ela é imprecisa e tremendamente inadequada para muitas coisas. A IBM considera o Watson um feito de engenharia, mais do que iluminações de processos cognitivos. 

Mesmo que nas próximas décadas os computadores não consigam ainda pensar como o cérebro humano, eles já viraram grandes mestres na arte da dissimulação, capazes de enganar a maioria dos humanos. 

Infelizmente, o cérebro humano ainda não sabe como lidar com esse desafio e nem quais são as consequências dessa evolução. A menos que se acredite nos roteiros de cinema da série de exterminadores do futuro, num mundo em que as máquinas tomaram o poder. Há pelo menos um consolo: provavelmente as máquinas não vão querer nos comer.
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