É sábado de manhã e faz sol, estou de saída para um caruru, hoje estava só na intenção de contar aqui, rapidinho, o caso das meninas que semana passada fugiram de minha aula chata para ir tomar café e imaginar Gramado, a linda e cordial, a bucólica e pacífica e feliz Gramado do Rio Grande do Sul que não conheço.
Mas não, porque há que se ser grave na vida quando nem bem uma semana faz que mataram com um tiro na cabeça uma colega de trabalho, e atiraram seu corpo no asfalto imundo em troca de um carro, de trinta dinheiros, de sei lá o quê de rico e desimportante aqui, tão longe de Gramado, nesta Cidade da Bahia.
Há que se ser grave, amigos, com ternura que seja, mas há que se ser grave, porque não há válvula de escape, não há leveza pura, não há risada burra, não há recortar-se do mundo que valha se depois o sujeito tiver de voltar e enfrentar de novo o mesmo mundo, o mesmo ou até piorado mundo, quando acordar segunda-feira.br
Há que se ser grave diante da brutalidade, da expressão aparentemente pura e banal da maldade perpetrada por um, por dois bandidos de meia tigela, que não sabem por que mataram, mataram simplesmente porque mataram, incapazes que foram de tomar outra decisão para cumprir sua missão bandida daquela noite.
Há que se ser grave quando se sabe que não foi o primeiro nem será o último crime de semelhante natureza nesta cidade, neste país; quando se sabe que não-sei-quantos mil crimes bárbaros nunca foram nem serão suficientes para despertar uma reflexão sincera, severamente auto-crítica, sobre o porquê de haver gente no Brasil assim, ruim, cruel, incapaz de pensar, antes de puxar o gatilho, na barbaridade do ato que está prestes a cometer.
Há, amigos, que se ser grave, diante de nossa incapacidade de compreender que o ódio que em nós desperta a figura daqueles dois pobre diabos é absolutamente normal, legítimo, humano – e, provavelmente, os defina mesmo. Mas mais graves ainda é necessário sermos para ponderarmos que tal sentimento não nos autoriza, enquanto indivíduos, enquanto sociedade, a fazer nenhuma leitura apressada, que repute simplesmente à “crueldade”, à “banalidade”, ao “mal” puro e simples e exterior a nós, “probos”, o homicídio daquela noite.
Há que se ser grave, em contrapartida, também diante da armadilha da culpa cristã: será que somos todos igualmente responsáveis, na soma e média aritmética de nossos atos individuais, por vivermos em uma sociedade capaz de semelhantes atrocidades? Sim, mas também não. Sim porque, de fato, reproduzimos e praticamos diariamente a exclusão de quem nos é exterior, de quem nos parece dessemelhante, e assim contribuímos para que a alguns seja dada a condição de homens, a outros, a de feras. Mas veementemente não, se a partir daí pretendermos acreditar poder banir o mal do mundo à base de pequenos, de individuais, de homeopáticos gestos de cordialidade, respeito, de caridade, de alguma forma elitista de bondade quiçá.
Há que se ser grave para tentar entender a natureza da “crueldade”, da “banalidade”, do “mal” que cada vez mais, no Brasil, se nos apresenta como “puro e simples”, entendê-lo no que nele houver de mais humano, para talvez, com sorte, descobrir e assumir a parcela de responsabilidade por ele que couber a cada fração de nossa sociedade. Nesse sentido, inspirado pelo ótimo filme sobre Hannah Arendt que assisti ontem – e recordando o pouco de seu trabalho que já li – palpito, mal comparando, que é preciso abandonarmos radicalmente a hipocrisia que nos leva a, feito escritores de maus folhetins, colocarmo-nos a nós mesmos no cômodo lugar de “vítimas”, e a partir de tal sentirmo-nos autorizados a exigir medidas, respostas, punições – da Polícia, do Governo, dos Céus enfim. Há mais é que se escrutinar, tenaz e continuamente, sem auto-complacência, a brutalidade à qual acreditamos estar meramente “expostos”. Porque se dois seres humanos são capazes de puxar um gatilho de revólver diante da cabeça de uma pessoa qualquer em nome de qualquer coisa que lhes pareça ser uma “missão maior” (ainda que tal não seja o complexo nazismo, mas “só roubar e escapar”), é sinal, amigos, de que algo de muito pernicioso há na sociedade, na cultura em que eles (nós) vivem(os) e se (nos) formam(os). Nada disso atenua a monstruosidade deles hoje, nem do crime que cometeram, mas é isso ou acreditar, simplesmente, que se trata de um par de feras, de erros da espécie, de “não-seres humanos”.
Enfim, há que se ser grave, ou então passar a vida sendo obrigados a dar uma fugidinha de vez em quando, para tomar café e ser feliz, lá longe, na distante, na imaginária Gramado de nossos sonhos.
*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.
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