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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 30 de junho de 2012

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Fernando Carvall, ilustrador e caricaturista. Mantém o Estúdio Saci.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Por falar em família

Umas duas vezes por ano, me dá vontade de comer porcaria. Pode ser pastel de vento, enroladinho de salsicha, mas dessa vez foi hambúrguer de isopor com batata frita transgênica. Lanche comprado, peguei minha bandeja e fui, junto com uma amiga, para a varanda do restaurante, onde encontramos outra amiga, por acaso, e nos sentamos as três juntas.

Papo vai, papo vem, essa terceira amiga, de quem não sou íntima, comentou que dali seguiria pro aeroporto, pois seu irmão estava comemorando bodas de prata em outra cidade, e ela ia participar da festança. Um irmão que ela conhecera recentemente. O comentário assanhou nossa curiosidade, e então ela saiu-se com uma história que me entalou o isopor na garganta.

Filha única, ficou órfã de pai e mãe de uma só vez, aos nove anos. Foi, então, adotada pela família da melhor amiga da mãe, uma adoção plena em todos os sentidos. Cresceu cercada de gente e de amor.

Até o dia em que decidiu esclarecer uma suspeita que a atiçava havia muitos anos, de que seu pai havia tido outra família antes de se unir à sua mãe. Nesses tempos de redes sociais, não demorou muito pra que localizasse novos irmãos e recompusesse uma parte fundamental da sua história. Aproximou-se dessa outra família e estabeleceu vínculos com ela, o que bastou para que a mãe adotiva se ofendesse e a acusasse de desamor e ingratidão. Ela espera que esta situação seja superada. Sendo uma pessoa paciente, sensata e determinada, é bem provável que consiga.

Mas e os pais biológicos, morreram de quê? Acidente? Não. Seu pai assassinou a mulher a tiros, e depois se matou.

Faz uns quarenta anos. A mãe era linda e sedutora, querida e admirada pela comunidade por seu trabalho de assistente social. O marido morria de ciúmes, e tentava controlá-la de todas as formas. Não suportando a pressão, ela decidiu se separar dele. Pouco depois, aceitou a corte de outro homem e abriu espaço para um novo amor. Deu no que deu.

Essa amiga eu conheço há décadas, e jamais imaginei que arrastasse um nelson rodrigues pela vida afora. Ela é leve, bem humorada, bonita e sarada, transmite alegria e vitalidade. Contou-nos essa pauleira com a maior tranquilidade, sem sombra de melodrama, e nós duas ouvindo com o coração aos pulos.

Nos despedimos, e cada uma tomou seu rumo, eu meio desorientada. Em meia hora, tive uma aula magna sobre como a vida imita a literatura, ou vice-versa, nem sei. O que sei é que de vez em quando ela me surpreende de verdade. Inevitável pensar nas minhas próprias tragédias e achá-las tão insossas quanto aquela comida de plástico.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Faço Foto Procura-se Personagens

Descrição: Uma fotógrafa posiciona-se com sua banca em meio ao caos de um grande centro urbano. Ela propõe que os apressados passantes parem e tirem um retrato. Uma placa diz: FAÇO FOTO PROCURA-SE PERSONAGENS. Há um tripé com um banco em frente, luz e cadeira. O pano de fundo é a própria cidade, os prédios, os olhares curiosos. Os que correm por detrás do sujeito retratado são borrões, porque ali na cadeira o tempo congelou um personagem.

Saindo em busca de um lugar para me posicionar, me deparo com pessoas e espaços. Os lugares sugerem coisas, são cheios de subjetividade. Prédios velhos e abandonados competem no cenário com brilhantes vitrines, praças ao sol pedem calma a gritaria dos ambulantes, a rua de paralelepípedo acha um desbunde a avenida veloz. No emaranhado arquitetônico os sujeitos cruzam-se, são engravatados, pés descalços, trabalhadores, habitantes, aposentados, artistas, camelôs. É ululante, é a variedade.

Entender o centro como um território onde há sentimento de pertencimento, conflitos, histórias, passado e geografia é importante para uma ocupação ativa – não passiva, não passageira. Os acontecimentos de um centro urbano são fagulhas e não se repetem, pela improbabilidade da mesma combinação. São muitas os rostos, as luzes, os cenários, os humores, a chuva, o sol. O centro assume a contraditória característica do irrepetível combinado aos territórios simbólicos, onde existem certas regras de convivência. E percebendo estas arestas que configuram a singularidade deste local que um tripé inter-relacional sustenta o trabalho: a fotógrafa, o personagem e a rua.

Este trabalho teve inicio em Porto Alegre, em janeiro de 2012, no centro da cidade. Duas praças e uma esquina já foram percorridas num estudo progressivo das possíveis imagens do outro. A busca por personagens reais é uma pesquisa que começou quando tive minha primeira experiência com o cinema documental, em 2010. Pessoas entrevistadas por duas horas entram no corte final do filme com uma aparição de três minutos. Transmutam-se. São pessoas complexas e na película são somente personagens. Isto é porque a linguagem fílmica e fotográfica representa o real; ela não é o real.

Este é um antigo debate que só vem a contribuir para a construção de trabalhos que transitem na fronteira entre a ficção e o documentário. Despertando quem vê para as questões relativas ao imaginário, a fabulação, ao fantástico, a loucura. Procura-se Personagens busca no encanto ordinário das cidades e suas gentes a força das histórias pessoais, o vínculo entre lugares e pessoas, o desejo de ser personagem e o ato coadjuvante de registrar tudo isso em imagem.


Ana Mendes, gaúcha de nascimento, errante de coração e profissão. Fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Trabalha como fotojornalista freelancer entre Brasília e Porto Alegre. Mantém a coluna mensal Faço Foto

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Hoje nasceu Herzog, há 75 anos

Se o jornalista, professor universitário e teatrólogo Vladimir Herzog não tivesse sido assassinado pela ditadura militar enquanto esteva preso nas dependências do DOI-CODI, a polícia política, em São Paulo, em outubro de 1975, completaria hoje 75 anos.

O caso Herzog é, possivelmente, o mais emblemático do período de chumbo, que eu não vivi, mas meus pais viveram. Período, é fato, ainda sem a transparência necessária.

Mesmo com a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), sob elogios e criticas – recomento esse texto da revista Piauí – tenho pouca confiança de que tenhamos respostas negadas há 26 anos.

Herzog é um exemplo disso. As circunstâncias da sua morte nunca foram esclarecidas oficialmente. Recentemente, o governo informou à Organização dos Estados Americanos (OEA) que, por causa da Lei de Anistia, não vai reabrir o caso.

Por conta dessa lei, de 1979 - que anistou torturados e torturadores -  fica difícil imaginar o Brasil a seguir o exemplo de Argentina e Chile que condenaram criminalmente seus algozes.

Ainda num outro estágio, o das repostas básicas as atrocidades cometidas no período, terá a CNV condições de responder perguntas como o que fez o exército com os guerrilheiros do Araguaia, maior conflito armado da ditadura, entre 1972 e 1974?

Ou então as circunstâncias de outras mortes, como a de Rubens Paiva, ex-deputado preso em 1971 e visto pela última vez num quartel do exército no Rio de Janeiro? Quem eram os agentes infiltrados em organizações de esquerda, caso de Cabo Anselmo, o exemplo mais conhecido? E os torturadores civis e militares, quem são eles, afinal?

O que aconteceu na rua tutoia, sede da Oban (Operação Bandeirante), rebatizada de DOI-CODI? E as vítimas da Casa de Petrópolis, conhecida como Casa da Morte, mantida pelo Centro de Informações do Exército, no Rio de Janeiro? E o atentado a bomba no Rio Centro? Quem sequestrou e quem matou na Operação Condor, que uniu ditaduras do Cone Sul?

Tomara, como disse Frei Betto, que a CNV seja o passo efetivo para a verdade e a justiça.

Thiago Domenici, jornalista

PANO RÁPIDO: o coronel Brilhante Ustra foi condenado ontem, por danos morais, no caso de Luiz Eduardo Merlino. É uma decisão inédita que de certa forma driblou a Lei da Anistia. A decisão é de primeira instância. Saiba mais.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

A memória de Gabo

“A vida não é aquilo que vivemos, senão o que recordamos
e como recordamos para contar.”
Plinio Apuleyo Mendoza, amigo de García Márquez e autor de um delicioso livro de entrevistas com ele chamado “El olor de la guayaba”, disse publicamente o que há alguns anos se comenta em privado: Gabo está perdendo a memória.

Um conhecido, que no ano passado esteve com o escritor colombiano em um jantar, contou a mesma coisa. Disse que ele tem a saúde debilitada e que lhe custa muito seguir uma conversa. Há anos Gabo não escreve nada e não é visto em eventos públicos.

Apuleyo contou também que o amigo tem dificuldade para reconhecer pessoas e lembrar de situações que aconteceram recentemente, mas que guarda intacta a memória do que viu e viveu há 30, 40 anos.

Claro que é triste tudo isso, mas por sorte lhe resta intactas as lembranças do passado. E como disse o próprio em sua autobiografia: “A vida não é aquilo que vivemos, senão o que recordamos e como recordamos para contar.”

Tenho a impressão de que García Márquez se sente cada vez mais sozinho e deslocado nesse mundo. A maioria dos amigos já se foi, a mudança pela qual militou e sonhou não veio, o tipo de jornalismo que fez é cada vez mais raro.

Refugiar-se no passado é, penso eu, uma maneira de seguir desfrutando da vida. Difícil imaginar um lugar mais adequado para guardar as recordações do que aquela Paris do final dos anos cinquenta. Gabo era pobre e desconhecido, e sonhava em escrever livros inesquecíveis como Cortázar, a quem espreitava com curiosidade e timidez nos cafés.

Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas, de Salamanca, Espanha

sábado, 23 de junho de 2012

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Fernando Carvall, ilustrador e caricaturista. Mantém o Estúdio Saci.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Proteção da pele

O ano era 1992, e eu estava no Rio trabalhando na grande conferência da ONU sobre meio-ambiente. Já naqueles tempos, a cidade era refém dos traficantes de drogas, com as consequências que conhecemos sobre a segurança da população. Para que o megaevento global pudesse acontecer sem sobressaltos, as Forças Armadas colocaram em prática um plano de proteção que incluía vigilância armada ostensiva, com metralhadoras e canhões por toda a Zona Sul e no trajeto até o Riocentro, onde acontecia o evento oficial.

Lembro-me do incômodo de ver tantas armas em volta, mas também de podermos sair de um jantar, por volta da uma da manhã, e caminharmos ilesos por vários quarteirões até o hotel, encantados com aquela tranquilidade artificial, mas muito boa.

Ali naquela conferência, vi um telefone celular pela primeira vez na vida. Era um tijolo preto, exclusivo dos chefões e responsáveis pela segurança, cuja bateria durava uma hora e levava a noite toda carregando. Também ali tive a minha estreia no uso de um computador portátil, propriedade de uma chefona gringa importada direto de Nova York. Era uma geringonça gorda e pesada, que certamente havia custado uma fortuna. Eu, que havia recentemente vendido um carro pra comprar meu primeiro PC, nem imaginava o preço daquele “laptop”, palavra que recém entrava na nossa vida.

Um dia lá, ela me pediu algumas tarefas no hotel e me indicou que usasse o laptop. Eu precisava ir pro Riocentro, então ela me orientou a levar o dito cujo comigo, pra ir adiantando o trabalho, porque ela chegaria lá mais tarde. Tomei um táxi com minha colega de equipe, as duas mortas de preocupação com o tesouro que levávamos acomodado no porta-malas, junto com umas caixas de material impresso.

Chegando lá, descemos a bagagem, pagamos o táxi e ele foi embora. Quando ele já havia tomado distância, nos demos conta de que o pior havia acontecido. Tínhamos deixado o precioso laptop no porta-malas!

Como assim? Começou a bater um desespero, nós duas querendo cortar os pulsos ali mesmo. Como não tínhamos outra solução, entramos e fomos trabalhar, enquanto discutíamos como dar a notícia à chefona. Concluímos que o único jeito era dizer pra ela exatamente o que havia acontecido, e seja o que deus quiser. Podíamos sentir a faca de açougueiro arrancando nossos jovens couros.

Foram umas três horas de total desalento, nós duas acabrunhadas e desconsoladas. Quando finalmente ela chegou, estávamos com o discurso ensaiado e as caras de cão sem dono prontas. Ela entrou na sala e, antes que pudéssemos dizer qualquer coisa, foi nos contando que estava totalmente desentendida do que havia acontecido. Que achava que tínhamos levado o laptop, mas que ele lhe havia sido entregue por um funcionário do hotel, porque aparentemente o havíamos deixado na recepção, mas como ela nos havia dito pra levá-lo conosco, não estava entendendo nada.

Custou um pouco pra decifrarmos o que tinha acontecido. O bendito taxista anônimo havia encontrado a maleta e, como se lembrava de ter-nos apanhado à porta daquele hotel, voltou lá e a devolveu. E como ela trazia uma etiqueta com o nome da dona, voilá!

Você pode imaginar o nosso alívio? Depois que conseguimos conter nossa euforia, contamos a ela como tinha sido e como nossas peles haviam sido preservadas. Ela ficou surpresa com a nossa sinceridade, embora um pouco decepcionada com nosso descuido, enquanto nós só conseguíamos estar felizes e agradecidas por aqueles dois desconhecidos, nossos heróis do Rio 92.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Daqui a pouco você volta pro Face

Um gordinho me ultrapassou na fila do quilo. E o pior é que eu não estava empacado na área de saladas, lutando com um ovo de codorna, impedindo que ele chegasse logo ao Penne Alfredo. Se fosse assim, haveria alguma licitude. Mas não. Meu prato já estava montado, salada temperada, no caminho diagonal da balança, quando o gordinho, de repente, me ultrapassou.

Incrédulo diante de tamanho descaso para com as convenções gastronômicas, parei e encarei ostensivamente o sujeito, que aparentemente nem se deu conta. Era um baixote atarracado, flácido e suado, o que me alimentava a vontade de aplicar-lhe um tabefe ao pé da orelha. Claro que não fiz nada, nem sequer lhe cutuquei o ombro reclamando, e o almoço transcorreu burocrático e insosso como sempre.

Mas o fato é que tive vontade. Principalmente porque senti minha masculinidade, meus direitos, meu espaço vital sendo conspurcados pela pressa do gordinho. Diante de sua rotunda circunferência eu poderia me acalmar pensando que era gula, algum desequilíbrio hormonal, compulsão alimentar. Mas não creio que tenha sido fome o motivo do homenzinho ter se prestado a tão desprezível papel social. Ele queria ganhar tempo, isso sim.

Queria pesar logo o prato, ir logo pra mesa, comer logo, pagar logo, voltar logo pro trabalho, pegar logo o carro, ir logo pra casa, tomar banho logo, jantar logo, trepar logo na mulher, gozar logo, dormir logo, acordar logo, tomar café logo, ir logo pro trabalho no dia seguinte, sair pra almoçar logo...

E a pressa dele, de certa forma, se refletia em mim. Porque no fim era esse o código desrespeitado. Ao me ultrapassar na fila do quilo ele me ofendia com cidadão porque tinha me roubado instantes preciosos.

Agora, revendo meu semi-embate pequeno burguês, penso aqui comigo: o que afinal faria eu com esses instantes? E o sujeitinho? Haverá desfrutado deles de alguma maneira sábia? Tenho dificuldade em acreditar. Acho que o gordinho não está percebendo, assim como eu não estou, assim como você provavelmente não está, caro leitor apressado.

Aposto que você, neste momento, mesmo se distraindo numa hora de marasmo do expediente, mesmo tendo escolhido mergulhar neste texto por conta própria e sem deveres maiores está lendo apressado, querendo chegar logo ao final, ansioso pra terminar e ver se alguém postou alguma merda nova no Face, ou se aquele email que mudará sua vida finalmente aterrissou na caixa de entrada (calma, fica comigo mais um pouco que ele não chegou).

E o pior é que deve ser assim com todo mundo. A gente pode ter um emprego bom onde trabalha pouco e ganha suficientemente bem, uma mulher gata e gostosa que nos leva pra jantar de graça, amigos interessantes que sempre aprontam novas maluquices divertidas, mas nunca será suficiente. Estamos sempre insatisfeitos e ansiosos, querendo mais amigos, mais dinheiro, mais mulheres, de preferência todas as mulheres, ao menos todas as gatas e gostosas (às leitoras me desculpo e sugiro que invertam o sexo de suas posses).

O problema, caro leitor apressado, é que a vida é isso. A vida é o restaurante por quilo. É um texto de pseudo-auto-ajuda (auto-atrapalha?) pescado na internet. E será gasta ao lado da mulher que você tem, uma só – ao menos uma de cada vez, a não ser que você seja ator pornô.

E fica aqui o aviso. Ao contrário do que ocorrerá após a leitura desse texto, não vai ser possível dar uma conferida no mural do Face quando sua vida finalmente chegar ao fim.

Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Ginga no Pé Futebol e Samba

Uma bola, um tambor. Todo brasileirinho cresce chutando, cresce batendo. O Brasil também foi feito assim. Com futebol e samba. No estádio e na avenida, dois pilares de nossa cultura traçaram, ao longo das décadas, trajetórias com algumas semelhanças, diferenças e alguns momentos em que convergiram de maneira enfática.

O samba, produto brasileiro, gerado com a miscigenação que trouxe elementos da África (o batuque), da Arábia (pandeiro), da Península Ibérica (as cordas) e do próprio Brasil nativo (chocalho), nasceu favelado, suburbano, marginalizado. Desenvolveu-se com particularidades regionais Brasil afora. No Rio de Janeiro, ganhou o formato que o tirou do folclore e o inseriu na música popular urbana brasileira.

Nasceu amador. Tinha uma casa. Para o sambista, um palácio. E ele foi amador enquanto sua Escola de Samba também foi. Quando gravava, fazia shows e ganhava dinheiro, não era um sambista profissional, continuava amador, apenas destacava o lado artista, que cumpria esse papel. Mas aos poucos, o sambista foi perdendo sua casa. A Escola de Samba não era mais um espaço para se cantar samba e encontrar os amigos de comum paixão. Os desfiles, antes, feitos para brincar, hoje são produtos de uma grande indústria, cujo espetáculo visual é um grande programa de televisão.

O futebol no Brasil também é um grande negócio. Como os desfiles de carnaval, gera cifras cada vez mais vultosas. Como o samba, nasceu amador. Marginalizado, não. Para poucos, brancos e ricos. Mas o negro entra na história com a ginga – palavra que é, ao mesmo tempo, samba e futebol – e tudo muda. Como o samba, vira mestiço.

Nos idos de 30 e poucos, o futebol viu vários clubes se profissionalizarem, mas outros tantos permaneceram assim, como os sambistas e os boleiros em geral, amadores. E quando o palácio do sambista, o terreiro de sua Escola, deixa de cumprir o papel socializador, agregador e catalisador cultural, é a várzea que traz o samba à cena. Ali, estão o tambor e a bola, novamente.

Resistência
da várzea

Fica no Bom Retiro, mas, na verdade, trata-se de uma embaixada barrafundense, visto que a agremiação teve sua primeira sede naquele bairro. O Clube Anhangüera (as reformas ortográficas não derrubam a tradição), fundado em 1928, promoveu muita gafieira em sua história. Ao lado do gramado, um salão, um baile, e por muito tempo foi assim.

Mas qualquer história sempre reserva um período de seca após a bonança. E o clube já ia colocando sua tradição no banco de reservas quando tudo mudou. Dia 18 de maio de 2007, um dia especial na história recente do samba em São Paulo, nascia o “Anhangüera dá Samba!”. Unindo a sede com a vontade de beber, deu sequência à história social da agremiação e se tornou uma nova casa para os sambistas, despejados de seus lares – as Escolas.

Desde então, dezenas de rodas de samba animaram o local, primeiro com o conjunto Inimigos do Batente, formado por sambistas de vários cantos de São Paulo, e depois, com o Batalhão de Sambistas, grupo paulista que promove a valorização do samba de terreiro, gênero praticado nas antigas Escolas de Samba do Rio.

Bambas dos mais altos quilates, das maiores envergaduras, passaram por lá: Wilson Moreira, Nei Lopes e Elton Medeiros. A Portela, com Monarco, Tia Surica e Noca. A Mangueira de Tantinho. O partido alto de Ary do Cavaco (que faleceu dias depois de sua apresentação) e Luiz Grande. A Paulicéia de Germano Mathias, Osvaldinho da Cuíca, Silvio Modesto, Dona Inah e João Borba.

Celebrando o passado, mas olhando para o futuro, valorizando o presente. Assim, novos compositores, como Douglas Germano, Edu Batata e Kiko Dinucci, também tiveram espaço, bem como Paulinha Sanches e Eduardo Galotti, sambistas de vasto repertório, figurinhas carimbadas nas rodas de samba do eixo SP-RJ, respectivamente. Nomes que deverão ser destacados em colunas posteriores.

Independente, sem patrocínio ou subvenção, há um nome por trás destas realizações que merece ser destacado: Arthur Tirone, o popular Favela, neto de fundadores do clube, criado na várzea e no samba, um militante das tradições populares brasileiras. Um batalhador, um bravo.

Arthur Favela fez do projeto um encontro de sambistas tradicionais na cidade, realizado por mais de quatro anos. As enormes dificuldades financeiras – muitas vezes, ele tirou dinheiro do próprio bolso para que o evento pudesse ocorrer – levaram o projeto ao fim, em setembro de 2011.

Durante os primeiros meses de 2012, o Clube não recebeu nenhuma roda de samba e a preocupação de que tal espaço não mais pudesse servir de casa aos amantes do ritmo era evidente. Mas, desde abril, o espaço voltou a receber, mensalmente, o Batalhão de Sambistas. E assim, o samba segue ecoando no Bom Retiro.

Nesta sexta-feira, 22, um dos maiores expoentes se apresenta por lá. Roberto Silva, o “Príncipe do Samba”, 92 anos de vida e 74 de carreira artística, o último dos sambistas da Era de Ouro vivo, dá provas que a luta, árdua, dá frutos saborosos. Fruto de um trabalho amador, no sentido estrito da palavra.

Escute o samba "Indecisão", de Paulo Marques e Aylce Chaves,
na voz de Roberto Silva, o "Príncipe do Samba". Gravação de 1958.

André Carvalho, jornalista, estreia hoje a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A Smith Corona de Capote

Máquina de 8 mil dólares arrematada no Ebay
Dia desses li a notícia de que a máquina de escrever Smith Corona pessoal do escritor norte-americano Truman Capote tinha sido vendida no ebay por mais de 8 mil dólares. O leilão com preço inicial de 7 mil dólares atraiu dois interessados.

Um amigo de Capote que vendeu a relíquia na rede disse ter herdado alguns objetos pessoais do escritor. Foi com essa Smith Corona que, ao que parece, Truman escreveu (sic) o clássico do chamado jornalismo literário A Sangue Frio (1966) que relata o assassinato de uma família na cidade de Holcomb, localizada no interior do estado do Kansas, EUA.

A história virou filme e deu o Oscar (2005) de melhor ator ao interprete de Capote, Philip Seymour Hoffman. Apesar de todo o sentimento que envolve a arte de colecionar e ter a posse de objetos raros, basta vermos os milhões pagos em quadros de grandes pintores, a questão é que Capote só usava a máquina para datilografar o que considerava a versão final de seus textos.

Numa entrevista em 1957 a Paris Review ele relata, entre outras coisas, seu método de trabalho. A repórter pergunta: “Quais são os seus hábitos ao escrever? O senhor usa uma escrivaninha? Escreve à máquina?”. Ele diz: “Sou um autor completamente horizontal. Não consigo pensar se não estiver deitado, ou na cama ou estirado num sofá, com cigarros e café à mão. Não, não uso máquina de escrever. Não no início. Escrevo minha primeira versão à mão (a lápis). Depois faço uma revisão completa, também à mão”, respondeu.

Será que o comprador (a) sabia disso? Diante da resposta dele, a máquina passa a ter muito menos peso na fantasia da criação e, principalmente, nesse desejo da imaginação de colecionar algo exclusivo. A história do objeto é que dá esse valor emocional e, por consequência, financeiro. O diamante da história são os papeis originais escritos à mão.

Thiago Domenici, jornalista

Não escrevo pedindo respostas

No sábado, antes do almoço, Henrique me mandou um e-mail que estragou não só a comida como o dia todo. Tive a sensação de que eu mesmo poderia ter escrito o mesmo correio para ele naquele dia. Li, reli, re-contra-li a mensagem e não sabia como e nem o que responder. E por continuar sem saber, decidi publicá-la na ilusão de que alguém nos apresente alguma resposta.

Irmão,

Queria mesmo era que você estivesse aqui e pudéssemos tomar umas cervejas, terminar um maço de cigarros, e conversar uma noite inteira. Ando confuso e acho que um daqueles nossos encontros em que terminamos cheios de álcool e saudosismo seria um ótimo remédio.

Tenho dentro de mim uma inquietação e uma angustia um pouco sem uma causa aparente. Parece que de repente me dei conta de que os anos estão passando e que a maioria dos projetos que eu imaginei não se concretizaram. Pior, os que se concretizaram perderam todo o encanto quando deixaram de ser sonho e viraram realidade.

Lembra de como termina o documentário José e Pilar? Saramago está em uma conferência e lhe perguntam o que lhe falta na vida depois de ter conseguido tanta coisa. Ele responde: tempo. Isso é triste, claro, mas mais triste é o que ele diz depois, sobre a história da viagem do elefante que ele narra no livro. O elefante fez um trajeto absurdo de Lisboa a Viena, salvou vidas, encantou pessoas e no final o que restou foi sua pata, que virou adereço para colocar guarda-chuvas e bengalas. “Aquilo [o recipiente] era uma metáfora da inutilidade da vida. Não conseguimos fazer dela mais do que o pouco que ela é”, diz Saramago.

Um homem que viveu 87 anos, que escreveu livros que mudaram a vida de pessoas, que ganhou prêmios, que semeou ideias, dizer isso? Imagina nós, meu velho, o que vamos conseguir fazer das nossas vidas? De que serve? O que fazemos aqui?

A impressão que tenho é que chegamos aqui meio que de penetra, sem saber exatamente o que se celebra (se é que se celebra algo) e quem são os convidados, e no final vamos embora com a mesma sensação de vazio com que chegamos. Com sorte guardamos uns quantos amigos e amores na mala na hora de partir.

Dia desses li que fizeram uma experiência que consistia em vendar algumas pessoas em um descampado e dizer para que elas caminhassem em linha reta. Sabe o que aconteceu? Que todas elas, todas, terminaram andando em círculo. Estamos condenados a tropeçar sempre na mesma pedra? Seria essa a conclusão do tal estudo?

Eu me sinto andando em circulo e com os olhos vendados. Gostei daquilo que você escreveu dia desses, aquela parada do Lorca. Mas se o Eloy Martínez tem razão quando diz que passamos a vida procurando o que já temos isso só prova que não aprendemos nada. Que não somos capazes nem de revisar os bolsos. Na verdade, acho que o dominó que visto (assim como o do Pessoa em Tabacaria) não era para mim, e nem bolso tem. Estou de novo com o português: serei o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta.

Mas, pra terminar, como vamos achar algo se nem sabemos o que estamos procurando?

Não te escrevo pedindo respostas. Fique tranquilo. Duvido que as tenhas.

Ah, e não se preocupe comigo não. Escrevo porque estou triste e sinto tua falta, só isso. Se eu estivesse feliz estaria ouvindo música, andando no parque e tomando o sol. A tristeza demora mais, mas igual que a alegria ela passa. E logo voltamos a esse estado intermediário, que nos adormece e nos possibilita enfrentar essa vida que, como diz o Miguel, é curta demais e dolorida demais. E tudo isso pra no final não conseguir fazer dela nada além do pouco que ela é?

Pelo menos brindemos por nossa amizade.

Fique bem, irmão. A gente vai se falando.

Abraço,
Henrique

*Henrique autorizou a publicação da mensagem. O único pedido que me fez foi a eliminação de um parágrafo (devidamente excluído por mim).

Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas, de Salamanca, Espanha

domingo, 17 de junho de 2012

Watergate, 40 anos

Os repórteres Carl e Bob
Talvez o maior caso do jornalismo norte-americano. A espionagem empreendida pelo partido Republicado do então presidente Richard Nixon contra o partido Democrata era denunciado há exatos quatro décadas - 17 de junho de 1972 - pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward, do The Washington Post.

Houve um assalto à sede do Comitê Nacional Democrata, no chamado Complexo Watergate. Ali, durante a campanha eleitoral de 1972, cinco pessoas foram detidas quando tentavam fotografar documentos e instalar escutas no escritório do Partido Democrata. O escândalo e seus desdobramentos culminaram com a renúncia de Nixon em agosto de 1974.

O famosa fonte dos repórteres (ficaram 26 meses debruçados sobre o tema) conhecida por muito tempo apenas como Garganta profunda (Deep Throat) foi quem revelou que o presidente sabia das operações ilegais. Em 2005, 32 anos depois da série de reportagens, os dois confirmaram que W. Mark Felt era a fonte – Felt havia dado pouco antes entrevista a revista Vanity Fair dizendo ser ele o Garganta Profunda. À época, Felt era o número dois do FBI. Felt faleceu em 2008.

A renúncia de Nixon na TV
Em recente artigo de opinião no Post em razão dos 40 anos do Watergate, Carl e Bob afirmaram que Nixon era “muito pior do que eles pensavam”. Escreveram, por exemplo, que o “estilo de vida” durante sua presidência era usar métodos de espionagem e sabotagem política. Uma dura critica que diz ainda que durante seus cinco anos e meio a frente do país – iniciada em 1969 – foi empreendida com cinco guerras sucessivas: “contra a oposição a guerra do Vietnã, contra os meios de informação, contra os Democratas, o sistema de justiça e contra a história”.

Thiago Domenici, jornalista

sábado, 16 de junho de 2012

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Fernando Carvall, ilustrador e caricaturista, estreia no NR a série Meia Idade. Mantém o Estúdio Saci.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Tempo tempo

Hoje eu descobri que o meu ipad pode ter um editor de texto. Eu, que achei que ele era só um lindo brinquedinho, fiquei ainda mais seduzida por este acessório que me acompanha há poucos meses, mas já ocupa um lugar importante entre meus badulaques preferidos.

Não posso deixar de pensar em quando iniciei minha vida de escritório, quase quarenta anos atrás, e na primeira vez que vi um terminal de computador, na biblioteca da universidade, meu primeiro emprego formal. Era um terminal "cego", pois não tinha monitor de imagem, só um teclado acoplado a uma impressora matricial. Pelo menos, é assim na minha memória.

E no primeiro aparelho de fax, no telex que se usava intensivamente para a comunicação internacional escrita, coisas que a geração atual simplesmente nunca viu.

Quando conto para a turma de trinta anos que a gente datilografava cartas em cinco vias coloridas, separadas por folhas de papel carbono, e que cada letra errada implicava uma complexa operação corretiva, me soa como se pertencesse a uma outra realidade, outro tempo. Dia desses, uma moça que ouvia o relato me perguntou se havia ar condicionado no escritório, "naquele tempo". Sim, havia aqueles caixotes embutidos na parede, que roncavam como um avião prestes a decolar.

Era um tempo em que as decisões podiam ser tomadas com prazo de dias, pois nenhuma resposta formal precisava ser dada instantaneamente, se não havia como transmiti-la na hora. O fax e, principalmente, o email, mudaram para sempre a nossa relação com o tempo.

Não que eu lamente a evolução tecnológica, muito ao contrário. Mas que ela nos trouxe uma pressão descomunal sobre o que entendíamos como urgências e emergências, não há dúvida. Atualmente, cada hora de um dia meu de trabalho normal significa em média cinquenta mensagens pra responder, algumas implicando providências complexas e, principalmente, imediatas, urgentes. Nas reuniões, nos aeroportos, até na fila do cinema, tem gente checando seu email de trabalho, pois, em muitos casos, quem manda a mensagem (leia-se "chefe") não admite esperar mais que quinze minutos pela resposta. É pra isso que nos "dão" esses malditos telefones conectados à internet.

Mas tem outra coisa que mudou muito nas instituições. A gente trabalhava pra caramba, mas, como a relação com o tempo era outra, havia o café na copa pra colocar a conversa em dia, o almoço em casa, as crianças que às vezes vinham pro escritório por algum problema na escola ou no apoio doméstico, e era uma festa.

Principalmente, as equipes eram coesas e mais focadas em objetivos comuns. O que vejo hoje é um mata-mata, uma competição individual entre pessoas da mesma equipe, um esforço pra ser o "primeiro da turma" que me deixa assim, meio nostálgica, coisa que absolutamente não sou. Ou não era.

O texto acima foi escrito há algumas semanas. De lá pra cá, muita coisa mudou. Faz quase dois meses que me aposentei da carreira institucional, algo que eu desejei e planejei há muito tempo e em detalhes. Eu só não previ as manifestações de apreço e afeto que recebi de colegas, chefes e grandes chefes, e que me comoveram profundamente.

Por enquanto, parece que estou de férias, por pelo menos duas razões: não preciso ler nem muito menos responder centenas de emails por dia, e uma hora não é mais uma hora. São sessenta minutos inteiros pra eu decidir como usar. Um luxo! Quem disse que o tempo não é relativo?

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

misture para degustar

Fui formada no erudito versus popular. Sendo que o erudito - o clássico, o culto - era a aspiração. O popular era o primitivo, o tosco, o incompleto. Algo a ser observado com compaixão e nada além. Ao erudito, o sofisticado. Ao popular, o simplório.

Essa formação arraigada grudou nos meus primeiros trabalhos. Passei alguns anos tentando escrever propositalmente um romance muito complicado e formal. Tanto me esmerei que consegui fazê-lo praticamente ilegível. Ou legível para meia dúzia de iniciados no new barroco literário.

Eu fugia do quê? Das frases simples, da ordem direta, das palavras mais usadas, dos parágrafos curtos. Minha intenção era que o leitor se esforçasse tanto quanto eu tinha me esforçado. Pedisse socorro ao Aurélio iguais vezes eu havia pedido. É claro que dei com os burros n'água.

Ainda não havia entendido que o complicado é diferente do complexo, e que o sofisticado é na realidade o simples. Demorei muitíssimo para compreender o que hoje me parece líquido e certo: sem comunicação não há público. Sem leitores não há escritor.

Perdi um tempo irrecuperável desprezando os autores com muitos leitores, e cultuando os autores com poucos leitores. Por quê? Estava presa à ideologia cultural de que só uns poucos conhecem e valorizam a qualidade. Enquanto a massa nada sabe.

Passei um bom bocado em frente a uma porta que não se abria. Escrevia para a tradição literária e também desejava ter leitores. Não consegui uma coisa e nem outra. Leia-se: nem a acolhida de críticos admirados por mim, nem a comunicação com o leitorado. Um desastre!

Até que um dia os bois-bumbá Garantido e Caprichoso abriram meus olhos. Salvaram a minha pele. Explico. Fui contratada pela revista da TAM para viajar à ilha de Parintins, Amazonas. Meu trabalho, ao lado do fotógrafo Ed Viggiani, era narrar os bastidores da festa dos bois.

Visitando os galpões, tanto do Caprichoso quanto do Garantido, encontrei uma fábrica de criação. Costureiras, marceneiros, eletricistas, pintores, maquinistas, ferreiros, soldadores, desenhistas, figurinistas, e segue a lista.

Um exército de criadores caprichando para garantir brilho à ópera do boi-bumbá, realizada todos os anos no bumbódromo da ilha. Fábula que o púbico sabe decorado e salteado. Mas o que vale mesmo é a variação no contar. Dito de outra forma: renovar a tradição.

Compreendi o rigor e a liberdade usados pelos artistas do boi. Percebi o talento deles em misturar. Sem cerimônia, eles ligam os pontos entre erudito e popular. Se funcionar, qualquer referência entra. Pegam o que for preciso para seduzir o público. Seduzem.

No avião de volta a Sampa, conclui que não precisava jogar fora o que havia cultuado e amado nos anos de formação. Bastava acrescentar novos elementos, vindos de onde viessem. Tinha sim um inimigo a neutralizar: o preconceito que fura nossos olhos cegando o horizonte.

fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo. Escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

Em tempo: Morreu Ivan Lessa (1935-2012). Duas penas enlutadas. A grande pena dele da qual saíram textos deliciosos, e a minha pena por ela ter silenciado.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Todas as flores para Pilar

Cinzas de Saramago em frente a FJS
(crédito: Daniela Martins Gutierrez)
Era abril, eu passaria uns dias em Portugal, e escrevi para Miguel sem muita esperança de receber resposta. A vida de repórter independente na Europa é uma sucessão de tentativas frustradas de entrevista – chego a ficar feliz quando pelo menos me respondem que não é possível.

Com ele foi diferente. Respondeu uma hora depois e disse “sim, claro”.

Miguel Gonçalves Mendes, diretor do documentário José e Pilar (sobre o prêmio Nobel Saramago e sua esposa), me recebeu em um bar no centro de Lisboa, dias depois daquela primeira troca de e-mails. Pensei que com sorte conversaríamos uma hora e meia. Foram quatro dias. Conheci lugares fantásticos graças a ele e, mais do que isso, conheci, por sua causa, a uma mulher incrível. “É a mulher mais encantadora que eu já vi”, me disse ele.

Falava de Pilar del Rio, a viúva de Saramago, que depois de um telefonema de Miguel me abriu as portas da Casa dos Bicos – prédio que passava por reformas para abrigar a nova sede da Fundação José Saramago (FJS). Conversamos, ela me mostrou alguns projetos da FJS, e fui embora com a sensação de que Miguel tinha razão quando falou do encanto e da força daquela mulher que consegue ser, ao mesmo tempo, dura e doce.

Pilar trabalha todos os dias, sempre está elegante e disposta. Costuma dizer que é assim porque pertence a outra geração e não a atual, que já “nasceu cansada”.

Perguntei a Miguel se ele nunca havia visto a Pilar triste. Sua resposta foi definitiva: “Claro que vi, mas ela se nega, se nega a deixar a tristeza ficar”.

Hoje, dia 13 de junho, a Fundação José Saramago começa a funcionar no novo espaço, um prédio lindo, de três andares e quase cinco séculos de história. É um dia especial para todos os leitores de Saramago, que de certa forma contribuiram para que o espaço se tornasse realidade – a fundação se mantém com um percentual do dinheiro da venda dos livros do escritor.

Não há financiamento público, mas há, sim, interesse público no que a entidade faz. Na FJS trabalham pessoas muito capazes e comprometidas – conheci algumas delas –, o que me faz crer que projetos interessantíssimos serão gestados ali nos próximos tempos.

Hoje é um dia muito especial também para Pilar. Eu vi com que carinho ela cuidava de cada detalhe do novo prédio e posso imaginar sua satisfação com a chegada do dia de hoje.

Abrir as portas da Casa dos Bicos para o público significa para ela a realização de um compromisso. Quando Saramago estava bastante doente, os dois tiveram uma conversa. “E depois, o que faço eu?”, ela perguntou. O escritor pensou um pouco e respondeu: “Continua-me”. Para continua-lo, Pilar decidiu mudar-se para Lisboa (moravam na ilha espanhola de Lanzarote) e acompanhar ainda mais de perto os trabalhos da fundação.

Hoje, como todos os dias, ela vai chegar à fundação e depositar uma rosa aos pés da oliveira que fica no passeio onde estão enterradas as cinzas de Saramago – bem em frente à Casa dos Bicos.

Hoje, como todos os dias, Pilar também merecia receber flores. Hoje, em especial, merecia todas as flores do mundo ou pelo menos aquela do conto infantil que Saramago escreveu: “A Maior Flor do Mundo”.

Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas. Hoje, especialmente, manda essa ótima contribuição.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Só um sonho

(Era de se imaginar que aquele sol, aquele céu e aquele parque eram um cenário demasiado perfeito para que nada de ruim acontecesse).

Agachada, ela acariciava um cachorro e se divertia mais com o afago que o próprio animal. O viu de longe, fez o último carinho no cão, e saiu em sua direção, desviando das crianças que corriam pelo gramado. Deu-lhe um abraço forte e apertou-o com força logo antes de prendar as pernas atrás de suas costas e trazer sua cabeça contra seus seios.

(Era uma brincadeira puramente infantil ou altamente sexual, escolha).

Ele devolveu a intensidade do abraço, agarrou-a pelas nádegas e começou a caminhar lentamente, levando-a consigo numa alegria tão plena quanto fugaz.

Giraram por um momento e de repente a terra se abriu.

Os dois foram ao solo.

Ela primeiro; um golpe seco contra o chão. Manteve o sorriso, o semblante doce, incompatível com o charco de sangue que começou a se formar ao lado de sua cabeça.

Ele a abraçou e cuidadosamente colocou a mão esquerda em sua nuca. E seus dedos penetraram fundo, se empaparam com o líquido espesso e tocaram algo viscoso. Desesperado, fitou as pessoas ao redor. Gritou por socorro, por um médico, uma ambulância, mas não houve reação. Todos seguiam olhando-os, alguns com um sorriso mórbido. Todos imóveis.

Voltou a mira-la, pediu que não fechasse os olhos, que não dormisse, e assistiu como ela, docemente, morria em seus braços.

Acordou assustado e confuso. Ela dormia tranquila, agarrada ao travesseiro. Aproximou-se e tocou com a mão esquerda sua nunca. Os dedos encontraram os cabelos e a pele, e nada mais. Ela se moveu um pouco, abraçou-o, e seguiu dormindo, sonhando que acariciava um cachorro, alheia ao perigo que corria.

Ricardo Viel, jornalista, mantém a coluna semanal direto de Salamanca, Espanha

sábado, 9 de junho de 2012

povo e liberdade











Caco Bressane, ilustrador e arquiteto, colaborador do NR

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Cacofonia

Acho que o que realmente nos diferencia dos outros animais é a expressão verbal. Não tenho dúvida de que os bichos têm sentimentos, sensibilidade, inteligência, raciocínio. Observando o nosso finado Chico, um gato desses de raça incerta, preto como carvão, que nos adotou há alguns anos, pude constatar claramente suas manhas, seus pedidos, suas formas de nos transmitir o que queria e sentia. E sei que todo mundo tem suas histórias sobre aquele bicho que “só falta falar”.

Expressar-nos por palavras, primeiro faladas, muito depois, escritas, tornou-se tão importante para os humanos, que não podemos imaginar nossa vida sem elas. Quase tudo o que somos, fazemos e sentimos se expressa através delas. Que o digam essas mal traçadas linhas.

Uma vez, fomos passar uns dias num sítio, em Cunha, um lugar perto de São Paulo. Era inverno e fazia um frio danado. Numa determinada manhã, todos saíram pra andar pela serra, e eu fiquei sozinha em casa, preparando o almoço. Estava totalmente imersa na minha tarefa e nos meus pensamentos, quando percebi que estava vivendo uma experiência rara. Como não havia ninguém por perto, tudo o que eu ouvia eram ruídos ambientais: passarinhos, vento, água corrente do riacho próximo, galinhas, cachorros. Nenhuma voz, música ou risada. Não havia TV ligada nem o ruído de carros, mesmo distantes.

Fiquei encantada. Conectei-me ao que estava acontecendo, ciente de que era uma raridade mesmo. Deixei-me levar, enquanto lavava tomates e temperava pedaços de frango. Acho que quase consegui parar meus pensamentos, absorvendo o silêncio de vozes e ruídos de gente.

No outro extremo, fica a Rua do Curuzu, em Salvador, onde já estive muitas vezes. Pra mim, é o lugar que melhor representa a cacofonia dos humanos. A qualquer hora da noite ou do dia, tem música tocando alto em alguma casa – geralmente em várias ao mesmo tempo. As pessoas nunca se dão ao trabalho de ir até onde estão as outras, caso queiram perguntar ou dizer alguma coisa. Todo mundo grita, da rua para dentro de casa, e vice-versa, e de uma casa pra outra. Se alguém está do lado de cá da rua, grita para a pessoa que assoma a alguma janela do outro lado, iniciando um papo animado e muito natural. É um vozerio permanente, misturado com o barulho dos carros que sobem a ladeira e as TVs sempre ligadas.

E São Paulo, que ruge, não pelas vozes humanas, mas pelas coisas inventadas e construídas por nós. Rios de carros e ônibus, enxames de motos, e o metrô revirando as tripas da cidade, tudo carregado de gente. Lá, não são as palavras nem as vozes humanas que criam o caos, pois elas são abafadas pelos barulhos da cidade, que encobrem tudo como uma grossa manta de lã. De vez em quando, ela é retirada por algum feriado, e então as pessoas podem se ouvir um pouco.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

cadê o texto?

"O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem." Curioso que essa perfeita descrição tenha sido feita por um padre em cima de um púlpito.

Era o ano 1655. O púlpito, o da Capela Real em Lisboa. O padre, António Vieira (1608-1697). Autor dos celebérrimos Sermões - coletânea organizada por ele de suas várias pregações na capital alfacinha e na baiana Salvador. A passagem citada está no Sermão da Sexagésima.

Mas o assunto da nossa crônica não é o padre Vieira, nem o púlpito, nem o sermão e menos ainda uma discussão sobre estilo. É uma conversa mais direta e cotidiana. Quase um lamento. Quero registrar uma ausência que sinto em 90% das matérias, posts, comentários e quejandos que ando lendo. A ausência do texto.

Pois é claro que uma frase depois de outra e depois de outra terminando com um ponto final não constitui por si só um texto. Para ser, um texto precisa de um mínimo de tessitura. Uma costura mesmo que modesta. Um texto que pode até não ter brilho, mas que dê um pouco de sabor para quem o lê.

Jornalista, blogueiro, redator publicitário, pesquisador acadêmico, comentarista da internet, em suma todos os que lançam mão das palavras para tornar algo público, deveriam levar mais a sério a construção do texto.

Tentar separar o conteúdo da sua expressão verbal. Uma coisa é o que se pretende dizer. Outra, é como dizer. Esse como é a tessitura. Saber escrever bem o conteúdo, seja ele qual for, é o grande prazer dos escrevinhadores. E, por extensão, a fruição dos leitores.

Eu não sei se as faculdades de jornalismo mantêm cursos de redação. Não tenho notícia se a moçada da área exercita modos de escrever. Sei que se conversa muito acerca da convergência digital, o que é ótimo. Se conversa acerca de princípios éticos, o que é ótimo também.

Agora, será que a moçada debate sobre como contar uma história de forma que o leitor guarde, por um tempinho que seja, alguma sensação após a leitura? Será que alguém exclama: "Nossa, isso está bem escrito" ou "Puxa, isso está mal escrito".

Tenho certeza: nenhuma história é boa ou ruim. O que a qualificará, para cima ou para baixo, é o jeito como é escrita. A mais correta ideologia do mundo não sobreviverá se os textos que a propagarem forem fracos, confusos, opacos.

Tanto faz se o texto será impresso ou exibido nas telas dos computadores, tablets, smartphones. Ele seguirá sendo um texto. Seguirá almejando o que António Vieira sacou no remoto século XVII: "O estilo há de ser muito fácil e natural".

Repare. A ideia e a expressão podem, num primeiro pensar, parecer uma só. Mas não. A ideia se forma na mente. A expressão se concretiza no arranjo das palavras, frases, parágrafos.
Elementar, caros escribas.

fernanda pompeu, webjornalista e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé e do Yahoo. Escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O samba do togado doido

Lula e Gilmar em 2010, durante trabalhos do STF
Não! Não pense o leitor que vou aqui destilar mais uma catilinária contra o ministro Gilmar Mendes em defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Até por que o ex-presidente é maior de idade e saberá se defender muito bem, pois tem grande experiência política e sabe lidar com situações de saia justa.

O que chama a atenção no atual episódio do encontro no escritório do ex-ministro Jobim é o emaranhado de versões repercutidas na imprensa com o propósito simples e cristalino de desviar o foco das investigações da Polícia Federal e, sobretudo, das sessões da CPMI Cachoeira/Veja/Demóstenes no Congresso Nacional.

A “defesa” do senador Demóstenes na Comissão de Ética do Senado e as novas acusações do ministro Gilmar Mendes ao ex-presidente Lula, bem como o silêncio do contraventor Carlos Cachoeira na CPMI, formam um painel expressivo de como a bandidagem insiste em tentar melar a CPMI e livrar a própria cara e de outros meliantes envolvidos, em particular em órgãos de imprensa comprometidos com toda essa semvergonhice.

Um escárnio com o Brasil que tenta trabalhar, vencer enormes desafios nas áreas da educação, da saúde, de saneamento básico. De um Brasil que tenta passar seu passado ditatorial a limpo, que tenta acabar com os juros escorchantes cobrados pelos bancos privados. De um Brasil que quer incentivar e aumentar o seu parque industrial, consolidar seu mercado interno, desenvolver regiões como o nordeste e tirar milhões da pobreza.

O discurso do senador Demóstenes na Comissão de Ética é uma pérola de cinismo e deboche com a sociedade brasileira, delatando alguns companheiros de viagem, invocando a proteção divina e sugerindo, vejam só quanta honradez, que a CPMI cumpra a sua função de ir a fundo na sua tarefa, como se ele – Demóstenes – estivesse ali por acaso ou, como cinicamente afirmou, por uma grande perseguição pessoal.

Antes dele, os jornais já haviam estampado a fotografia do silêncio de Cachoeira, com aquela expressão de quem encara o país de frente e – como o célebre personagem do saudoso Chico Anísio – pergunta: “Sou, mas quem não é?” Milhões não são, bicheiro Carlinhos, milhões não são. E esses muitos milhões exigem justiça e, acima de tudo, respeito. O seu silêncio na CPMI é o silêncio dos covardes.

E agora vem o valente e destemido ministro Gilmar Mendes, esse exemplo de profissional discreto para o cargo que ocupa, a lançar suspeitas para todos os lados, sempre e quando essas suspeitas possam atingir o ex-presidente Lula, o Partido dos Trabalhadores, alguns de seus aliados e a esquerda de um modo geral.

Há quem diga que não existe crise nenhuma e que o Brasil real não está dando bola para essas diatribes de Gilmar Mendes & Cia. Será? É sempre recomendável que em política nenhum de nós se comporte como os avestruzes que enfiam a cabeça no buraco. Crises políticas e institucionais podem surgir em 24 horas a pretexto deste ou daquele acontecimento.

Senão vejamos: militares da reserva e alguns da ativa, segundo se depreende por manifestos aqui e ali, estão receosos ou mesmo contra a instalação e os trabalhos da Comissão da Verdade; fazendeiros e usineiros estão descontentes com os vetos da presidenta ao Código Florestal; os bancos privados ainda não engoliram a baixa dos juros e não vão abrir mão assim sem mais nem menos de seus escorchantes lucros; os conglomerados mediáticos andam assustados com medidas ou leis que possam vir a regular a atuação do setor com a criação de uma nova Lei de Meios. Tudo isso a um só tempo.

Juntos, esses setores, mesmo que com alguns conflitos de interesses entre eles aqui e ali, sempre estiveram nas trincheiras do obscurantismo, do conservadorismo, apenas em defesa de seus negócios e contra os direitos dos trabalhadores que constituem a maioria da população brasileira. Não há que superestimá-los, concordo, mas também não se deve subestimá-los.

Quando um país que inicia sua caminhada para a maioridade tem na sua mais alta corte de justiça um togado cuja atuação e o linguajar lembram mais nossas jagunçadas interioranas, torna-se necessário que botemos as barbas de molho. Ninguém é bandido até prova em contrário... E muito menos santo.

Izaías Almada, escritor, dramaturgo, mantém a coluna mensal Pensando Alto

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Pare esse trem!

“Estou muito preocupado, mas como te conheço sei que vencerás todas as dificuldades porque te sobra energia, graça e alegria, como dizemos os flamencos, para parar um trem”. Federico García Lorca escreveu essa mensagem – fragmento da que provavelmente foi sua última carta – quatro dias antes de ser preso e fuzilado pelas tropas franquistas. O destinatário era Juan Ramírez de Luca, com quem o poeta espanhol planejava fugir para o México. Lorca foi morto por que cometeu dois pecados graves; na época de Franco ousou ser republicano e homossexual.

Recentemente a carta de Lorca a Juan tornou-se pública. Cada vez que aparece um material inédito do poeta as circunstâncias de sua morte e o fato de seu corpo nunca ter sido encontrado (como o de outros milhares de espanhóis assassinados durante a Guerra Civil) voltam à tona. Essa é uma história triste e interessante, mas hoje queria mesmo era falar sobre o conteúdo da carta de Lorca e da lição que acho que podemos tirar dela.

Duvido que a grande maioria das pessoas tenha energia, graça e alegria de sobra. Mas creio, isso sim, que todos nós temos em nossas vidas locomotivas que precisam ser freadas.

Se é verdade o que dizia Tomás Eloy Martínez, que passamos a vida procurando algo que está nos nossos bolsos, então podemos dizer que trazemos conosco o necessário para impedir que as máquinas nos atropelem.

Muitas vezes o que falta é que algum iluminado nos pergunte: “Já procurou no bolso do paletó?” ou nos escreva uma carta cheia de poesia dizendo que somos mais fortes do que imaginamos e que somos capazes de parar trens.

Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas, de Salamanca, Espanha.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Impressões aquáticas

Esta água deve estar muito cansada! Foi a conclusão a que cheguei em poucos minutos, observando o funcionamento do Canal do Panamá. É mais ou menos como uma escada gigantesca que os navios têm que subir ou descer. E fazer navio transitar por escadas não é uma tarefa simples.

Sentada num restaurante panorâmico em Miraflores, quase não consigo comer. Acompanhada de uma amiga tipo alma gêmea, conversar também não posso. Aquilo me ocupa totalmente.

A água transita sem parar entre comportas que abrem e fecham. Tudo em escala supermacro. Se o navio está subindo, a água precisa ser deslocada para encher a próxima eclusa, pra que ele continue flutuando. Na descida, é só abrir a comporta pra que a água possa fluir em quantidade suficiente. Funciona dia e noite, porque a demanda é enorme, agendada com muita antecedência. E o pedágio do canal é essencial para a economia do país.

Dadas todas as explicações para visitantes, não consigo tirar os olhos da água. Tenho uma sensação estranha, como uma dor por aquela água que é levada pra lá e pra cá, como se fosse um pacote pesado e enorme, desses que ninguém quer. Uma mala sem alça.

E essa água que anda o tempo todo, não pelo movimento natural do mar, mas pelo impulso das engenhocas inventadas pelos humanos, tem outra tarefa também pesadíssima: sustentar aqueles navios gigantes à tona, dentro dos quadrados apertados que são as eclusas. Eles ficam ali, paradinhos, esperando o quadrado se encher até o nível necessário, ou seja, até a água completar sua tarefa. Alguns marinheiros acenam pra nós, espectadores daquele estranho passeio.

É estranho mesmo. Todo mundo já ouviu falar do canal do Panamá, construído pra ligar o Atlântico ao Pacífico, um atalho aberto a ferro e fogo na faixa mais estreita da América Central. A gente ouve essas coisas e vai imaginando, mas não sabe bem o que esperar.

Cheguei lá, olhei e me deu uma pena enorme daquela água, fiquei engasgada. Tinha muita gente olhando. Não sei se alguém mais pensava nisto, porque assistiam a passagem dos navios, comiam, bebiam e conversavam com a maior naturalidade. Eu é que devo ser meio maluca mesmo, vendo essas coisas por aí.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.
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