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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Colligere, o poder do pensamento negativo

“No final, e apenas uma questão de aceitar regras, abrir mão de algumas coisas para ter outras.
Natureza é conflito.
Sociedade é submissão.
A conveniência se impõe sobre a liberdade.
E o poder se impõe sobre a vontade.
Quem constrói a verdade controla a sua vida.
Cansados de perder alguns tentam mudar por dentro”.

Colligere, o poder do pensamento negativo

segunda-feira, 26 de setembro de 2005

Orçamento Público Federal

Matéria publicada no especial Caros Amigos Corrupção (nas bancas até o começo de outubro), sobre o Orçamento Geral da União. Parceria com Diogo Ruic.

Orçamento público federal: os caminhos e descaminhos

O Orçamento Geral da União (OGU) é todo o dinheiro que o Brasil tem para investir e pagar dívidas a cada ano. E como ele é arrecadado e como é gasto? É uma contabilidade extremamente complexa, mas simplificando, vamos imaginar um contrato firmado entre o governo e a sociedade, pelo qual a nossa contribuição (impostos, por exemplo) vai para um grande “cofre federal”. Esse dinheiro deve destinar-se às ações do governo – programas, projetos, despesas constitucionais, obras e serviços, custeio.
O Orçamento se alimenta de mais de vinte fontes, as principais são o imposto de renda, a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e a Previdência Social recolhida por todos os patrões e empregados. Para 2004, o Orçamento foi de 1,5 trilhão de reais.
A elaboração e a execução do Orçamento obedecem a leis, como a Lei do Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. Tudo começa assim: o poder executivo elabora a proposta orçamentária, que é enviada pelo próprio presidente da República em forma de projeto de lei, ao Congresso Nacional até o dia 31 de agosto de cada ano. Ao Congresso cabe analisar e aprovar o orçamento. Para isso, existe a CMO – Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização, composta por 21 senadores e 63 deputados. Por lei, todos os congressistas podem propor as chamadas emendas parlamentares: emendas individuais, máximo de 20 por parlamentar, emendas coletivas, que se subdividem em bancadas estaduais (de 18 a 23), e bancadas regionais (até duas por bancada); e emendas de comissões permanentes do Senado e da Câmara (até cinco por comissão).
O deputado federal pelo PT de Santa Catarina e relator geral da CMO para o orçamento de 2006, Carlito Merss, explica que depois do célebre rombo dos Anões do Orçamento que gerou uma CPI (veja na página 28), diminuiu a margem para esquemas de corrupção usando as emendas: “Os deputados não tinham limites para emendas, podiam fazer quantas achassem necessárias. Hoje não, somente vinte e a soma total delas não pode passar dos 3,5 milhões de reais por parlamentar”. Na visão de Merss, a margem para fraudes é pequena “mas elas ainda existem”. E como podem ocorrer? Ele responde que o superfaturamento é um exemplo: “Chego pro prefeito: ‘O que o senhor está precisando aí?’ ‘Tô precisando fazer um posto de saúde’. Digo: ‘Vou propor uma emenda de 100 mil para garantir o posto’. Muitas vezes o valor do posto é razoável, mas o prefeito já arma esquema com uma empreiteira de lá”. O esquema seria, por exemplo, executar a obra por 20 mil com material de má qualidade que custa bem menos e embolsar os 80? “Essa possibilidade existe, mas é mais difícil porque o processo é mais transparente e rígido do que na época dos Anões.”

O caminho do dinheiro

O assessor de normas orçamentárias da Secretaria de Orçamento Federal, José Roberto de Faria dá mais detalhes: “Encerrada a discussão e aprovado o projeto de lei orçamentária no Congresso, o presidente tem 15 dias úteis para sancionar e publicar na íntegra ou com vetos na parte que considerar contrária ao interesse público ou inconstitucional”. Depois de tudo aprovado, o orçamento é publicado no Diário Oficial da União e a partir daí está em condições legais de ser executado.
Trinta dias após a publicação no Diário Oficial da União, o poder executivo estabelece o cronograma mensal de desembolso, isto é, define como o dinheiro será liberado. Nesse momento entra em cena o Ministério da Fazenda, por intermédio da Secretaria do Tesouro Nacional, que é quem "toma conta do caixa" e faz as liberações dos recursos do Tesouro Nacional. O valor de 1.5 trilhão de reais citado como “estimado” no começo deste texto não é a realidade do Orçamento. Por quê? Porque a Constituição de 1988 divide o Orçamento em três frentes: O Orçamento Fiscal, o da Seguridade e o de Investimento das empresas estatais federais. O Orçamento Fiscal se destina aos gastos com investimentos de infra-estrutura (obras federais), saúde, educação, manutenção dos ministérios, parcelas de receitas tributárias federais transferidas para Estados e municípios, etc. A Seguridade Social atende os benefícios previdenciários (aposentadorias, pensões etc.). E o de investimento, como diz o nome, responde pelos investimentos das estatais, a Petrobrás, por exemplo. E a dívida pública? O Orçamento destinou 860 bilhões, em 2004, ao refinanciamento da dívida pública, ou seja, 57 por cento do total. Sobram, então, 630,4 bilhões para os investimentos todos, levando em conta que desses 630 bilhões parte tem destino certo – pagamento do funcionalismo federal (ativos e aposentados e pensionistas dos três poderes); transferências constitucionais aos Estados e municípios, além do contingenciamento dos recursos para fazer caixa objetivando bons resultados com o superávit primário –, o que realmente sobra para investimentos sociais e melhoria das condições de vida da população é um orçamento modesto. “Em 2003 sobraram 4 bilhões para investimento; 2004, 10 bilhões; 2005, menos de 15 bilhões. Espero que em 2006 possamos trabalhar com o orçamento na casa dos 20 bilhões”, diz Carlito Merss.

Quem paga a conta é você

Parte do Orçamento é transferida para os Estados e municípios para realizarem obras públicas ou programas nas áreas de saúde, educação, saneamento etc. E nesses casos é que a corrupção tem mais campo, com os problemas de desvio de verbas e superfaturamento. Em 2004 a União repassou para os 5.561 municípios brasileiros, 21 bilhões de reais. Estudo do economista Cláudio Ferraz, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, mostra que foi detectado algum tipo de corrupção na máquina administrativa em 73 por cento dos municípios fiscalizados pela Controladoria Geral da União entre 2001 e 2003. “Não tenho certeza se a descentralização de recursos federais aumenta a corrupção, pode ser que aumente, o problema é não ter mecanismos suficientes para conter esse tipo de corrupção. Sou a favor da descentralização com mais controle, como comitês que fiscalizassem, por exemplo, as licitações”, explica Cláudio Ferraz.
Alguns casos são comuns, como a criação de empresas fantasmas e a simulação de processos de licitação. Também são usuais as licitações não competitivas, das quais apenas uma empresa participa, quando a lei exige pelos menos três participantes para qualquer projeto acima de 80.000 reais por ano. Em Itapetinga, na Bahia, o edital de licitação para compra de merenda escolar era publicado apenas uma hora antes do prazo final, de forma que vencia sempre a empresa do irmão do prefeito. “Espero que daqui a uns dez, doze anos seja possível mandar um auditor uma vez por ano aos municípios para checar o destino real do dinheiro federal, mas agora não temos condições pra isso e nem estrutura”, finaliza o deputado Carlito Merss. Decerto, o grau de organização da sociedade local pode ser determinante para prevenir e combater o desvio de dinheiro público vindo do Orçamento Geral da União, como comprova o exemplo da pequena Ribeirão Bonito, o qual você verá na reportagem a seguir.

Thiago Domenici e Diogo Ruic são jornalistas.

quinta-feira, 22 de setembro de 2005

Slogans dos Candidatos

Severino renunciou, enfim. Diz que voltará. Espero que não. Enquanto isso no blog do jornalista Fernando Rodrigues já surgem slogans dos novos candidatos:
Saem os slogans dos candidatos!

Enquanto não sai o novo presidente da Câmara, dá-se risada no salão Verde da Casa. A última é que a SMPB, de Marcos Valério, fez gratuitamente uma seleção de possíveis slogans para cada um dos principais pré-candidatos. Impagável:

1 - Arlindo Chinaglia (PT-SP):PT no comando para moralizar a Câmara
2 - Beto Albuquerque (PSB-RS):Para uma Câmara independente, um vice-líder do governo
3 - Francisco Dornelles (PP-RJ):Pela renovação da Câmara, um deputado com 5 mandatos
4 - João Caldas (PL-AL):Pela continuidade do bom trabalho de Severino
5 - José Thomaz Nonô (PFL-AL):PFL pela neutralidade na Câmara. Impeachment já!
6 - Luiz Antonio Fleury (PTB-SP):O partido que entende de mensalão saberá combatê-lo
7 - Michel Temer (PMDB-SP)Um tucano do PMDB para tocar a Câmara junto com o PT

segunda-feira, 19 de setembro de 2005

No peito, a bala da história

Matéria publicada na revista Caros Amigos Especial sobre os 50 anos do suicídio de Getúlio Vargas. A matéria de minha autoria fala do último dia de vida de Vargas.
No peito, a bala da história
O mordomo percebeu que Getúlio não tirava a mão esquerda do bolso, mas não podia imaginar que ali estivesse o colt 32 com cabo de madrepérola.
Rio de Janeiro. A ambulância nº 11.55 chega às pressas ao Palácio do Catete, sede do governo federal, entra, pára próximo a uma porta onde desembarca médicos e enfermeiros que correm para o elevador que os conduzirá ao terceiro andar. Era terça-feira, 24 de agosto de 1954. Pouco antes de a ambulância chegar, Anísio Viana, diretor do Departamento Administrativo do Serviço Público, aproxima-se da portaria do palácio, pega o telefone e não obtém sinal na linha. Tenso, indaga para si mesmo: “Como é que deixaram esse homem sozinho, meu Deus?” Pede a um contínuo, sem sucesso, que ligue de outro telefone ao pronto-socorro, dizendo que o caso é de “ferimento grave”. O repórter Arlindo Silva, da revista O Cruzeiro, que estava de plantão na cobertura da crise, toma a liberdade de chamar o pronto-socorro da praça da República. Mas, quando a equipe da ambulância está voltando do terceiro andar, o médico responsável é taxativo: “Não há mais remédio, o presidente está morto”.
A notícia se alastrou rapidamente: o presidente se suicidara em seu quarto no palácio, às 8h30, com um tiro no peito. A carta-testamento, deixada na cabeceira da cama, foi lida na Rádio Nacional pelo ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha. Comoção nacional. Enquanto os legistas examinavam o corpo, uma multidão ia tomando as ruas próximas ao Catete. A Polícia Especial do Exército e a Aeronáutica montaram um esquema de segurança para conter o povo que se dirigia para o palácio aos gritos de: “Queremos ver Getúlio!” Em São Paulo, um espanhol, após dar um “Viva a Getúlio!”, suicidou-se com um tiro no coração. O jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, foi apedrejado e quase invadido. A Rádio Globo, onde Lacerda fizera a campanha “contra o golpe e contra a corrupção” do governo, também foi apedrejada e dois carros de reportagem do jornal O Globo, de Roberto Marinho, foram virados e incendiados. A multidão já interrompia o trânsito nas imediações do palácio e as sucessivas edições extraordinárias dos jornais se esgotavam mal chegavam à rua. A imprensa só pôde entrar no Catete por volta das 13 horas, e o povão às 17 horas, para participar do velório. Foram 2.100 casos de desmaios nas dezesseis horas em que o corpo esteve exposto à visitação pública, aproximadamente 100.000 pessoas passaram pelo caixão. No Brasil e no exterior, Getúlio virou assunto de todos os jornais. Em Paris, o Le Monde: “A queda de Vargas é uma vitória para os círculos direitistas, para as famílias que são demasiado ricas e estão mal situadas para dar lições de moral e de civismo”. Nos Estados Unidos, o The New York Times: “Poucos acontecimentos, em toda a história da América Latina, têm sido tão pasmosos como o suicídio de Getúlio Vargas”. No Rio, a Última Hora: “Matou-se Vargas. O presidente cumpriu a palavra! Só morto sairei do Catete!” O Jornal do Brasil deu a manchete: “Dramático desfecho”. Mas somente quem esteve com Getúlio nas suas últimas horas pôde relatar os bastidores da crise que se abateu sobre a presidência da República. Desde o chamado atentado da rua Toneleros, no dia 5, quando as suspeitas recaíram sobre Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal, Getúlio sabia da situação insustentável: “Esses tiros me ferem pelas costas”.O dia 24 de agostoO documento que suscitou a reunião ministerial daquela madrugada foi o Manifesto dos Generais, levado ao palácio por volta da meia-noite pelo ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa. No documento, o Exército se declarava pela renúncia do presidente. Foi na sala de despachos, à 0h30, que Vargas pegou uma folha datilografada, assinou-a e guardou no bolso – souberam depois que era a carta-testamento. Tancredo Neves, ex-ministro de Getúlio, conta detalhes: “Chegamos à sala de despachos do presidente e o general Zenóbio da Costa e o marechal Mascarenhas de Morais entraram no gabinete presidencial. Trinta minutos depois, o presidente determinou a convocação do ministério. Perguntei: ‘Presidente, como vamos conduzir a reunião ministerial?’ Respondeu-me: ‘Ouviremos os ministros militares e tomaremos uma decisão’. Pegou de cima da mesa uma caneta e me deu, dizendo: ‘Guarde isto como lembrança destes dias’, Diante da minha surpresa: ‘Não te preocupes. Tudo vai acabar bem’ “.Às 3 horas da madrugada, a reunião ministerial foi interrompida por uma decisão rabiscada na agenda pessoal do presidente: “Já que o ministério não chegou a nenhuma conclusão, vou decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com meu pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão, aqui, apenas o meu cadáver”. Sua filha, Alzira Vargas, que esteve presente à reunião, escreveu: “Terminada a reunião, devia ser, mais ou menos, 4 horas da madrugada, papai subiu para o segundo andar do palácio. Estava aparentemente seguro e tranqüilo. Acompanhavam-no eu e meu tio Benjamin. Entramos juntos em seu gabinete. Nesse momento, papai tirou uma pequena chave de seu bolso e nos disse: ‘Esta chave abre aquele cofre. Dentro dele estão os meus documentos mais importantes. Se alguma coisa me acontecer, retirem a chave de meu bolso e limpem o cofre’. Meu tio Benjamin encarou-o fixamente e disse: ‘Está bem, Getúlio’. Eu retruquei: ‘Papai, quer fazer o favor de parar com isso? De que nos adianta a chave se todos iremos juntos para o mesmo fim?’ Papai respondeu sorrindo: ‘Estou apenas avisando’. E retirou-se para os seus aposentos depois de nos dar boa noite.’” Enquanto Zenóbio saía para anunciar aos demais militares a decisão da licença, Tancredo Neves redigiu a nota oficial, que foi divulgada pelo rádio. Por volta das 6 horas, o irmão Benjamin foi ao quarto de Getúlio, dizendo que teria de depor à polícia, por ser acusado de autor intelectual do atentado da Toneleros. O presidente disse que tudo bem, mas que tomassem o depoimento ali no palácio. Logo depois, a filha Alzira, sob o pretexto de procurar um remédio para dor de cabeça, entrou no quarto: “Papai, da cama em que se encontrava repousando, perguntou-me: ‘Ainda não foste dormir?’ Respondi-lhe meio malcriadamente: ‘Eu durmo quando quiser’. Rindo, ele respondeu: ‘Pois então vá embora, que vou dormir’”. Às 7h30, Benjamin voltou ao quarto para informar que o pedido de licença não era o bastante para os militares e que os quartéis queriam o afastamento definitivo. Getúlio pediu ao irmão que trouxesse mais informações. Nesse momento, certamente, já estava decidido a se matar.Como fazia todas as manhãs, o camareiro Barbosa entrou no quarto com o material para lhe fazer a barba. Vargas estava de pijama listrado: “Que é que tu queres, Barbosa?” “Estou aqui para servi-lo, excelência.” “Não é preciso, saia que eu quero dormir mais um pouco.” “Como o senhor quiser, mas acho melhor o senhor vestir o roupão, porque está fazendo frio.” “Isso não tem importância.” Depois que Barbosa deixa o quarto, o presidente sai em direção ao seu gabinete de trabalho. “Quando vi papai acenar-me com a mão ao passar pelo corredor, estranhei sua atitude, pois sabia que não costumava sair de seus aposentos naqueles trajes”, descreve Alzira. Quando o presidente voltou, o mordomo João Zarattini notou que Vargas conservava a mão esquerda no bolso do paletó, mas não imaginou que ali estivesse o Colt calibre 32 com cabo de madrepérola. O presidente fechou a porta, sentou na cama, posicionou o revolver à altura do peito e, como diz sua carta-testamento, “saiu da vida para entrar na história”. O corpo ficou atravessado sobre a cama, a perna esquerda pendente. Junto ao abajur, na mesa de cabeceira, estava a carta-testamento. “Minha blusa ficou embebida de sangue. No sorriso que meu pai ainda me dirigiu, apenas me reconheceu e senti toda a grandiosidade da sua morte, pois ele morria pelo amor de todos nós. Morria sozinho para impedir que morrêssemos ao seu lado”, escreveu Alzira, que, assim que escutou o tiro, saiu em disparada para o quarto, junto com o tio Benjamin, o irmão Luthero e a mãe Darcy. Uma hora depois da morte, Alzira retirou do cofre todos os documentos pessoais de Vargas, entre eles a primeira via assinada da carta histórica e o diário. Ela estava preocupada com o desfecho havia seis dias, quando um funcionário lhe entregou um bilhete encontrado sobre a mesa de trabalho do pai: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo quanto desejava”. Às 10 horas da manhã de 26 de agosto, o presidente Getúlio Vargas foi enterrado na sua cidade natal, São Borja, Rio Grande do Sul, encerrando um ciclo de dezoito anos de poder.
Thiago Domenici é jornalista.

terça-feira, 13 de setembro de 2005

Intelectualidade na Crise

Essa opinião do sociólogo Ricardo Musse integra parte da matéria "o que pensam os intelectuais da esquerda" da revista Caros Amigos, edição de setembro. Essa análise é também o meu ponto de vista sobre toda essa canalhice política. Deixo aqui registrado, pois é crucial que tenhamos um olhar diferenciado sobre todo esse processo.
Ricardo Musse, doutor em filosofia e professor no Departamento de Sociologia da USP, nunca foi filiado ao PT, mas se diz militante do partido.
“Não há como deixar de considerar o governo a partir da crise política em que se deixou enredar. Foram 25 anos para chegar ao poder e pouco mais de 25 meses para colocar alguns de seus principais dirigentes no banco dos réus. Independentemente do poder econômico e político da oposição – de seus métodos e aliados no submundo –, houve um erro monumental na gênese desse fracasso, no mínimo por subestimar ou não identificar o adversário. O ‘grande organizador da derrota’ foi a tibieza em promover mudanças, a estratégia de continuidade na economia, na administração e na política. A fração petista no poder revelou-se alma gêmea do tucanato, desde a transição que virou coabitação até o neoliberalismo mitigado que abraçou como programa de governo. Há uma teia de causas e efeitos em tudo isso, um encadeamento nem sempre visível na mídia, que transforma a denúncia em espetáculo: a política econômica neoliberal só se mantém pela via da subordinação dos interesses populares ao poder econômico, pela mercantilização das consciências e da representação política, partidária, sindical etc. Hoje, o governo agarra-se à falsa expectativa de que agradando ao poder econômico não será destroçado, e dá-lhe cada vez mais do mesmo, ampliando a estratégia de capitulação que é a própria fonte do fracasso. Ao mesmo tempo busca o apoio das massas, ameaçando reeditar dinâmicas típicas da história do populismo no continente. A estratégia de ‘união nacional’, ensaiada desde o início do governo, a tentativa de se apresentar como ponto de confluência de movimentos opostos – do agronegócio e da reforma agrária, dos transgênicos e do ambientalismo, dos banqueiros e do setor produtivo, do capital e do trabalho – corre o risco ainda maior de desagradar a todos. Hoje, a nossa esquerda sofre de melancolia. Uma crise de legitimidade assola todas as instâncias do poder – o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a mídia, o Exército, as igrejas etc. – e a esquerda imobiliza-se em discussões estéreis – é ou não golpe, querem ou não o impeachtment, deve defender ou não Lula – e não vê a oportunidade histórica de mobilizar os trabalhadores e os setores populares, de apresentar uma solução de esquerda para a crise. Uma das virtudes da crise é a desmistificação de ilusões, em especial da expectativa de que o capitalismo não seja a própria barbárie. Mas tenho me angustiado muito com a imaturidade e fragilidade da esquerda – com as exceções de sempre, como o MST. Uma parcela da esquerda, as ‘boas almas’, vê a conjuntura como uma reiteração de sua previsão de que não se deve lutar pelo poder e de que convém entregar o galinheiro às raposas. Outra, ‘exibicionista’, comporta-se como caudatária do PFL e da mídia. Há ainda alguns que, mesmo tendo alertado para os equívocos da fração dominante no PT, vestem a carapuça e propõem uma atualização dos rituais medievais de autoflagelação em praça pública. Agora e sempre, a tarefa da esquerda é uma só: organizar e mobilizar os trabalhadores e os setores populares. Numa sociedade em que todas as relações estão assentadas no dinheiro, só há uma força capaz de se contrapor a isso: a ação política das massas. O PT, apesar dos desvio de sua antiga direção, ainda é o espaço partidário mais democrático e representativo dos anseios de mudança. É o resultado da ação social de milhares de militantes anônimos que dedicaram parte de suas vidas a mudar o país, um legado que não pode ser usurpado.”

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Quem lembra dos precatórios?

Com tantas notícias e escândalos de corrupção, trago um caso esquecido, porém um dos mais célebres da história do país. É mais um capítulo dos amigos Maluf e Pitta.
Quem lembra dos precatórios?

O “Escândalo dos Precatórios” gerou uma CPI em 1997, mas a falcatrua começou em 1995. A história foi badalada e a sacanagem com o dinheiro público cabeluda. Coisa para mais de 5 bilhões de reais (em valores atualizados). As fraudes com os títulos públicos aconteceram nas prefeituras de São Paulo, Guarulhos, Osasco e Campinas e nos Estados de Santa Catarina, Alagoas e Pernambuco. Os principais envolvidos são Paulo Maluf e Celso Pitta, ex-prefeitos de São Paulo, Divaldo Suruagy, ex-governador de Alagoas, Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, Paulo Afonso Vieira, ex-governador de Santa Catarina, e os peixes pequenos, mas não menos importantes, como Wagner Baptista Ramos, ex-coordenador da dívida pública municipal de São Paulo, considerado “o cabeça” do esquema que aquecia os precatórios. Após várias denúncias foi instaurada no Senado Federal uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), que no seu relatório final acusou dezessete pessoas (entre as citadas acima) e 161 instituições financeiras.
O jornalista Luís Nassif, que investigou o escândalo, explica: “A CPI começou em cima de um pequeno banco, o Vetor. Sabia-se da aprovação da emissão de títulos públicos para pagamento de precatórios, mas pelos valores me pareceu impossível um banco pequeno como o Vetor conduzir o processo. No decorrer das minhas investigações deu para perceber que era um enorme esquema que envolvia caixinhas políticas, subfaturamento, mercado de títulos estaduais e fundos off-shore”.
Antes do esquema malandro, vamos às explicações passa a passo. O precatório é um documento em que o Estado ou município reconhece uma dívida – dívida calculada pela Justiça e sem possibilidade de recurso ou contestação. Decorrem, por exemplo, mas não só, de ações por desapropriação de terrenos e processos trabalhistas. Funciona assim: quando um juiz anuncia uma sentença, por exemplo, condenando um Estado, envia um documento (um precatório) ao tribunal responsável e pede que esse tribunal determine ao Estado devedor a inclusão do pagamento desse precatório no orçamento dos anos seguintes. Aí entra a malandragem, de uma brecha legal da emenda constitucional nº 3, de 1988, que permite aos Estados e municípios a emissão de títulos públicos (letras financeiras do Tesouro Municipal ou Estadual negociáveis no mercado financeiro) com o objetivo de antecipar arrecadação de dinheiro para pagar os precatórios. Eis aí um dos caminhos da corrupção, já que as emissões desses títulos pelos acusados eram superiores ao necessário para quitar os precatórios. Um dos trunfos de Wagner Ramos para superfaturar a quantidade de títulos era embutir a correção monetária nos precatórios que seriam saldados: “Descobriram uma brecha na legislação que permitia manipular cálculos de dívidas pré-Constituição para justificar os precatórios. O Senado aprovou a primeira operação para a cidade de São Paulo, tendo Maluf como prefeito. Ele percebeu que era um negócio bom e resolveu terceirizar, chamando o Banco Vetor e seu assessor, Wagner Ramos. Para ser esquentado, o dinheiro passava pelos canais dos títulos estaduais, operações esquenta-esfria em bolsas, doleiros etc. Era um sistema de corrupção, que terminou abafado e sem ação nem do Banco Central nem da Receita Federal”, diz Nassif.
Para outro jornalista, Rogério Pacheco Jordão, autor das primeiras reportagens que denunciaram as irregularidades com os títulos públicos da prefeitura de São Paulo – "Como Pitta deu um prejuízo de R$ 1,7 mi para SP em único dia" e "Celso Pitta: rombo pode chegar a R$ 10 milhões", publicadas no Jornal da Tarde, o desfecho das investigações foi decepcionante: “Era uma CPI propícia a seguir o dinheiro. Sabe aquela coisa do garganta profunda que falava pro jornalista do Washington Post ‘follow the money’? Essa dos precatórios teve todas as chances e condições de seguir o dinheiro, mas não seguiu”. Nassif emenda: “Quando o quadro ficou claro, ocorreu uma ampla manobra de abafamento. O relatório final acabou terminando em meia pizza”.
Essa operação abafa é citada, mas em off, por pessoas que acompanharam a CPI. Segundo relatos, quando Lázaro de Mello Brandão, então presidente do Banco Bradesco S.A. depôs na CPI, o clima amainou. Segundo noticiário do jornal Folha de S. Paulo, os depoimentos de Lázaro e do seu vice, Ageo Silva, “dividiram a CPI do Senado sobre a suposta participação de grandes bancos nas irregularidades com títulos públicos”.
O relator da CPI, Roberto Requião (PMDB-PR), oito anos depois, em recente entrevista de capa a Caros Amigos, declarou: “Fiz a CPI dos Títulos Públicos e joguei para a platéia, joguei para a mídia, se não jogasse pra mídia, não teria aprovado meus relatórios. Mas não foi suficiente, pois o plenário do Senado aprovou relatórios duríssimos e logo depois o Fernando Henrique impôs a legalização dos títulos com o pretexto de que desestruturava o sistema financeiro nacional. ‘Esse roubo tem que ser relevado porque senão quebram os bancos.’ (teria dito FHC) Ele preferiu quebrar os Estados. (...) E aumentando os prazos de pagamento, empurrando o pepino para os Estados, para salvar o quê? Supostamente, para salvar os bancos. Que importância teria quebrar um banco ou outro no Brasil? O que não pode quebrar é o Brasil.”
Encerrado em 1997, o relatório final da CPI estimou em quase 240 milhões de dólares o estrago nos cofres públicos: Pernambuco emitiu 480 milhões de reais em títulos, mas pagou somente 25 milhões. Em Santa Catarina foram emitidos 605 milhões, dos quais 34 milhões quitaram precatórios. São Paulo foi de longe o caso mais absurdo: de 1 bilhão e 500 milhões de arrecadação com os títulos públicos, somente 300 milhões foram usados para quitar precatórios. Ou seja, 1 bilhão e 200 milhões foram aplicados em outras finalidades. Quais finalidades? Nem o Ministério Público sabe dizer, já que o dinheiro não é carimbado. O leitor fique à vontade para imaginar o destino dessa grana toda.
Com o relatório final da CPI nas mãos, o Ministério Público (esferas federal e estaduais) processou os envolvidos. Alguns caíram rápido politicamente, como Divaldo Suruagy, que renunciou ao cargo de governador em 1997. Paulo Afonso Vieira escapou da cassação, em votação na Assembléia Legislativa catarinense, porque faltaram dois votos para aprovar o pedido de impeachment.
Em São Paulo, o MPE propôs três ações civis públicas de improbidade administrativa. Ao todo, foram processadas 34 pessoas, físicas e jurídicas, dentre as quais vinte instituições financeiras, entre elas o Banco Bradesco e o Vetor. Celso Pitta e Wagner Ramos foram condenados, em segunda instância, à suspensão dos direitos políticos por oito anos, perda dos cargos e ressarcimento aos cofres públicos da quantia desviada (21 milhões corrigidos), mas eles recorreram em novembro de 2004 ao Superior Tribunal Federal.Em outro processo, Paulo Maluf também responde como réu e foi condenado, em sentença de primeira instância, a pagar uma multa equivalente a até cem vezes o salário de prefeito. O fato é que oito anos depois nenhum deles foi condenado definitivamente devido à morosidade da Justiça e à velha problemática de vários recursos judiciais que protelam durante anos a sentença final. Efetivamente, só tiveram seus bens bloqueados e as instituições financeiras (as menores) foram fechadas. Maluf, Pitta e Ramos, no processo criminal movido pelo MPF, se condenados, estão sujeitos a pena de um a cinco anos de prisão. As sentenças finais podem levar muitos anos e os acusados nem estar vivos. A justiça tarda, mas não falha. Será?


Thiago Domenici é jornalista

quinta-feira, 8 de setembro de 2005

Dias iguais

Na música relaxante,
Um anestésico cotidiano.
Sobe o som do aparelho,
O veículo roda os cavalos,
Entram um, dois, três; em pé. Não tem onde sentar.
Cavalheiro-obrigatório cede o lugar ao idoso.
A jovem gargalha da amiga,
A janela embasada de suor antigo revela o mendigo que canta a tristeza –
A sede de cachaça aumenta a todo instante.
Muda de faixa, o motoqueiro a mil – pilhado e adrenalizado – quase encontra Deus.
Na música relaxante,
Um anestésico cotidiano.
A injustiça é nua,
Palpável e palatável.
Os gestos são iguais,
Um com a bíblia em punho,
O outro com o revólver.
Cobrador imóvel e o fone esquerdo cai.
O sangue escorreu até a cintura.
Na estatística vale o número,
A vida, em si, não vale – a alma é prisioneira do medo (todos os dias).
A trajetória chega ao fim.
O aparelho é desligado – de volta a realidade.
O sinal é dado,
A porta se abre,
O cotidiano segue.


Thiago Domenici

terça-feira, 6 de setembro de 2005

O milênio que não veio

Essa matéria de minha autoria foi publicada no especial Caros Amigos Terra em Transe.
A mídia fez a retrospectiva do último milênio. O novo viria e a Austrália seria o primeiro país da virada. Tudo pronto: pacotes turísticos esgotados, fogos de artifício, multidões nas praças, boates e restaurantes decorados, o megashow seria transmitido pela televisão. A maioria não demonstrava, mas havia o tom de interrogação no ar. Para completar, tínhamos o bug do milênio – o poderoso vírus Y2K que paralisaria todos os computadores do planeta. Para profetas, milenaristas e místicos era certo: não teríamos escapatória.
Nada se viu. Tudo normal. A exemplo da Babilônia e do Egito antigos, nenhuma transformação radical, nada de messias e nem anjo descendo dos céus detonando a fúria divina. À época da prometida virada, o famoso costureiro francês Paco Rabanne previu que em 11 de agosto de 1999 a estação espacial MIR cairia sobre Paris, carregada de ogivas nucleares, e mataria 20 milhões de pessoas: “... eu imploro, fujam” foi o que declarou à revista L´Evénement. Paranóia? O professor da PUC de São Paulo Rafael Rodrigues da Silva, especialista em ciências da religião, provoca: “Imagine se o tsunami de agora tivesse acontecido no ano 2000? Ia ser um auê”. Para ele, o Apocalipse é interpretado de forma errada, já que apokalypsis, do grego, significa revelar: “É nessa perspectiva errada que essa gente associa datas simbólicas, troca de períodos, a calamidades”. O teólogo Leonardo Boff completa: “É expressão da crise da cultura, das certezas e das seguranças. Quando a cultura entra em crise, surgem mitos do fim da espécie ou do fim do mundo”. O caso de Paco Rabanne não é o único. Historicamente, são vários os casos de profetas que tentam adivinhar o futuro. O mais famoso é o francês Michel de Nostre-Dame, o Nostradamus. Numa de suas primeiras profecias, na Itália, disse ao jovem criador de porcos Felice Peretti: “Numa ocasião como esta, não posso deixar de me curvar diante de Sua Santidade”. Em 1585 – dezenove anos após a morte de Nostradamus –, Peretti seria eleito papa com o nome de Sisto V.
Também se atribui a ele a previsão dos ataques ao World Trade Center, em 2001: “No ano de 1999 e sete meses, do céu virá um poderoso rei do terror para reviver o grande rei de Angolmois”. Porém, a referência pode ser a Francisco I, que governava a França na época do profeta. O rei foi duque de Angoulême antes de subir ao trono. Sem contar que, de 1999 a 2001, são 26 meses de diferença. Creia-se ou não, as Centúrias de Nostradamus prevêem o futuro do mundo até 3767. São Malaquias foi outro profeta – religioso e reformista – falecido em 1148 que profetizara em frases curtas os papas da história. João Paulo II, por exemplo, foi descrito com a frase “De labori solis”, que significa “do trabalho do sol”.A explicação é que João Paulo é de Cracóvia, onde nasceu Copérnico, primeiro a explicar a órbita solar da Terra. Sobre o último papa a ser eleito no século 21, a previsão assusta: “No papado de um novo Pedro, a Igreja sofrerá uma derradeira perseguição, Roma será destruída e chegará o Juízo Final”.

Milenarismo histórico
O milenarismo é a crença de que Cristo estabeleceria sobre a Terra, após a segunda vinda, seu reino de mil anos (o milênio). “Todos eles (os justos) reviveram e reinaram com Cristo mil anos; os demais (mortos) não reviveram até que se passaram mil anos”. (Apocalipse 20,4-5.) É daí, desse trecho do livro do Apocalipse, do apóstolo João, a origem do termo milenarismo. A confusão entre milenarismo e apocalipse vem de longa data. A mais comum relaciona o milenarismo a catástrofes transformadoras que trariam o fim dos tempos e a renovação posterior, quando, na verdade, a análise é mais profunda e envolve um histórico político-social.
O livro Mil Anos de Felicidade: Uma História do Paraíso, do francês Jean Delumeau, explica o milenarismo na cultura ocidental desde os tempos pré-cristãos até hoje. Segundo ele, “há em geral uma ligação entre febres milenaristas e grupos sociais em crise. Os atores dos movimentos escatológicos são freqüentemente marginalizados, desenraizados ou colonizados que aspiram a um mundo de igualdade e de comunidade”. Leonardo Boff mantém o raciocínio: “Todas essas manifestações devem ser entendidas como expressões imaginárias de uma situação de crise generalizada que demanda sua superação não imaginária ou simbólica, mas real, sócio-histórica”.
As primeiras interpretações são judaico-cristãs, lá do século 12, quando o monge Joaquim de Fiore pregava a volta de Cristo nos moldes atuais. Outros povos também dão conta de milenarismos históricos. Por exemplo, os sumérios (3.000 a.C.), com a mitologia dos “deuses da ordem” e os “deuses da destruição”. Ou os incas e a concepção de “regresso do inca”, na qual a América seria unificada espiritualmente. Conhecedores de astronomia e baseados no calendário maia, tinham até a data do regresso: “21 de dezembro de 2012”, ou seja, daqui a sete anos.
O Brasil não fugiu à regra. Temos Canudos (1898) e a Guerra do Contestado (1916). Em Canudos, no sertão da Bahia, o líder Antônio Conselheiro se considerava um emissário divino. Seus seguidores eram trabalhadores pobres e contra a República. O “Império do Belo Monte” (região onde habitavam) seria uma nova Canaã depois do fim. A repressão militar fez a estatística: 4.000 mortes. No Contestado, sul do Brasil, não foi diferente. Um ex-soldado, Miguel Lucena de Boaventura, reuniu gente em torno da crença dos “Quatro Santos” do monge João Maria – morto em conflito e venerado na região. Com base nisso, pregavam a volta do Rei Encoberto, dom Sebastião. Fundaram a Monarquia Sul-Brasileira, mas a resistência foi contida no mesmo ano, 1916.

Radicalismo da fé?
O pontapé inicial foi de João e bastou para aparecerem inúmeros grupos milenaristas. Segundo o instituto americano Millenium Watch, que pesquisa o assunto, só nos Estados Unidos, em 1999, existiam mais de 1.200 profetas auto-aclamados. Já a Itália teria mais de quatrocentos grupos, entre evangélicos, satânicos, espíritas, mágicos e ufólogos, revelou o Grupo de Busca e Informação sobre Seitas (Gris). Uns esperam o messias e outros já têm o seu próprio. De certo, essas novas tendências utilizam elementos de religiões mais antigas e delas constroem a própria concepção. Para citar as mais conhecidas: Nova Acrópole, Testemunhas de Jeová, Mórmons, Igreja da Unificação ou seita Moon, Rosa-cruzes e outras. As mais radicais apelam para o suicídio como forma de martírio. Texas, 1993, região de Waco. O ex-líder da seita Branch Davidian (Ramo Davidiano), David Koresh, pregou a seus seguidores que deveriam morrer para renascer das cinzas quando chegasse o fim. O resultado: oitenta pessoas carbonizadas. Em 1997, Califórnia, a seita Heavens Gate levou 39 de seus seguidores ao suicídio. Acreditavam que na cauda do cometa Hale Bopp vinha uma espaçonave para salvá-los. O líder, Marshall Applewhite, acreditou que o suicídio era etapa necessária para a salvação “O suicídio deles mudou o mundo?”, pergunta o professor Rafael Rodrigues, da PUC. Ele explica que essa suposta restauração através da morte se deve à marca religiosa forte, já que nesses ambientes a teologia que prevalece é a da resistência pelo martírio: “O martirizado não morre, sai vitorioso. É o Daniel na cova dos leões e seus três amigos que saem da fornalha sem um arranhão. Isso passa como historinha popular que alimenta a mística de resistência”.
Tirar vantagem da situação foi um bom negócio para Karen Anderson, de Dallas, EUA, que tem um livro e vídeos direcionados para donas de casa – são vídeos explicativos de como lidar com o fim do mundo. E Mário da Silva Brito escreveu: “Você já pensou que o destino da humanidade pode estar na dependência de uma dose a mais de uísque no bucho de um piloto atômico norte-americano ou de vodca no do russo encarregado de disparar foguetes balísticos intercontinentais?”

Thiago Domenici é jornalista

sexta-feira, 2 de setembro de 2005

Pisando o astro, distraído

Em 1967, o hoje festejado Tomás Eloy Martínez, autor de O cantor de tango, editava uma revista, a Primera Plana, em Buenos Aires. Certo dia, o jornalista recebeu um telefonema da editora Sudamericana. O editor Francisco Porrua o convidava a conhecer a obra de um novo escritor. Martínez deixou a revista e se dirigiu à casa de Porrua. Como a distância era curta, resolveu andar, apesar da chuva.
Ao chegar, pisou os papéis jogados no chão. Naquela época, era costume portenho proteger o assoalho com jornais nos dias de chuva. Não era essa, porém, a intenção de Porrua. Ao devorar a primeira cópia de Cem anos de solidão, espalhara pela casa algumas páginas do romance do jovem a ser apresentado. "Por sorte as folhas estavam viradas para baixo", contou Martínez a EntreLivros.
As marcas das solas dos sapatos de Martínez ainda estão lá, no verso das páginas 97 a 107, atingidas antes que Porrua impedisse o jornalista de enlamear a obra-prima de Gabriel García Márquez, então promissor escritor colombiano. Mais tarde, Martínez se redimiu da gafe. "Até onde sei, a primeira resenha crítica de seu romance foi escrita por mim."
Fonte: Revista Entrelivros (www.revistaentrelivros.com.br), Ano I, Nº I.

quinta-feira, 1 de setembro de 2005

O Brinco

Esse texto, do gênero Conto, é de um amigo jornalista, Thomaz de Molina (mais conhecido como Batata). Tomei a liberdade de publicá-lo aqui, já que é um texto muito bem escrito e com um humor peculiar. Espero que gostem.

O Brinco

Cá estou eu, de quatro feito um cachorro, a farejar a porra de um brinco. Minha mulher vai chegar de viagem daqui a umas duas horas. Ela, as crianças e o cachorro. Se eu não achar o brinco antes de qualquer um deles, estou ferrado. O quarto ainda está de pernas para o ar e eu me sentindo um crápula. Me sentindo, médio. Foi bom. Minto. Muito bom. Minto. Ótimo, virar a loura pelo avesso, conspurcando meu próprio leito conjugal. Ia começar a arrumar a casa quando o telefone tocou.
“Perdi um brinco aí”, ela disse; eu gelei: “Aí, onde?”. A pergunta soou meio idiota. “Sei lá”- a voz macia respondeu pelo outro lado da linha. “A gente fez amor pela casa toda”. Fiquei mudo um tempão. “Alô”- novamente o veludo da voz. A Loura deve ter repetido o alô umas dez vezes. “Pedro?”- meu nome nem Pedro é. “Vê se não liga mais pra cá” , falei a primeira coisa que me veio à cabeça. “Cachorro! Da próxima vez deixo sua mulher achar o brinco”. Não vai haver próxima vez, pensei sem muita firmeza, desliguei o telefone da tomada.
Prioridades: encontrar o brinco, arrumar a casa, apagar as pistas, não necessariamente nessa ordem. Porra, eu podia ter perguntado como é o brinco! De ouro, pérola, estrelinha, pingente, bolinha...bem, agora já foi. Natália, Natália. Não chegue agora, meu bem. Fure um pneuzinho, pare no Rancho da Pamonha, pegue uma blitz da polícia rodoviária, qualquer coisa do tipo. Acidente, não. Meus filhos não podem sofrer um arranhãozinho. Cadê o brinco? Porra! Calma. Vamos reconstruir os passos. Cozinha, primeiro.
A loura, só de avental e salto alto, preparando um tagliatelle com ervas finas. Eu, abrindo a primeira garrafa de Casillero del Diablo, Marvin Gaye espalhando a voz pelo dolby estereo: “Get up, get up, now let’s make love tonight”.... Esquece isso, canalha! Não dá. Eu, colado na marquinha do biquini, ajudando a mexer o molho, mordendo sua orelha... O brinco, porra! Nem reparei se ela estava de brinco! Eu, com a mão por dentro do avental, segurando o seio dela, a loura rindo, perguntando se eu queria que o molho desandasse... O molho vai desandar é se eu não achar o brinco e a Natália achar. Natália, Natália, meu amor, por que você aparece em minha cabeça nessas horas? Quer fazer com que eu me sinta culpado? Tá bom, sou culpado, mas juro que esta foi a primeira vez. Este ano. Nada na pia, nada embaixo do escorredor de pratos, nada embaixo da grelha do fogão. E se o brinco caiu no molho e eu comi? Não, eu teria notado, mesmo que fosse uma perolazinha de nada. Você é louco, cara. Como é que traz uma mulher como essa para dentro do recesso do seu lar, templo sagrado onde seus pimpolhos habitam; santuário da sua esposa fiel. Onde é que você estava com a cabeça? No colo da loura, depois do jantar maravilhoso que ela – já meio alta após a garrafa de Casillero – servira só de gravatinha borboleta e guardanapo de linho branco pendurado no braço.
No colo da loura. Ela já sem o guardanapo – mas ainda de gravatinha – a folhear meus gibis eróticos: Valentina, de Crépax; Druuna, de Paolo Eleuteri Serpentieri; O Clic, de Milo Manara. Estou tentando recordar nossos passos para descobrir onde o brinco pode ter caído. Os passos. Marvin Gaye se foi e Astor Piazzolla atacou de Mano a Mano. Passos de tango com a loura só de salto e gravata borboleta, o cabelo preso no alto da nuca, atrás das orelhas, a orelha onde deveria estar o brinco que eu não vi. Porra! Uma hora dessas, a Natália já deve estar na Marginal Pnheiros. Tomara que o trânsito esteja infernal. Sim, ainda é cedo, todo mundo está vindo para o Centro trabalhar. Aliás, eu deveria estar indo para o Centro trabalhar. Sim, as pistas devem estar todas congestionadas na Marginal, espero.
As pistas. Abrir todas as janelas, deixar o ar circular. Natália tem olfato de perdigueiro. Ai, cacete! Deus queira que ela não sinta nenhum cheiro de perfume, eu não estou sentindo. Trocar os lençóis e fronhas, rápido. O brinco. Pode bem Ter caído embaixo da cama ou se perdido nos lençóis. Se perder nos lençóis. A voz macia dizendo: “Vem amor, se perder nos lençóis” Desculpe, Natália, mas não dava pra deixar passar. Sou um pústula, eu sei. Abominável, no mínimo. Eu penitencio: ando de quatro como um cachorro se você quiser, prometo à minha Nossa Senhora, mas me ajude a achar esse brinco maldito.
Aqui no quarto, no canto, tem uma poltrona Le Corbusier, que a Ná usa pra ler e que eu usei para colocar de quatro a gazela dourada. Que vergonha. Mas ela estava linda como uma estátua de Rodin. O brinco pode ter caído ali, no canto, enquanto eu a cavalgava. Não, não está, não caiu. Porra! Seu panaca! Se você se safar dessa, nunca mais, ouviu? A língua da loura na minha orelha. Eu não ouvi nada. Eram só fluidos, fluidos diversos; e o ouro dos pelinhos da coxa daquela valquíria do sexo, tremendo junto com suas pernas, flamando como minúsculos estandartes. Porra! Vou ter um troço. Minha respiração está ofegante e estou coberto de suor. Tenho que achar o brinco; e antes que Natália chegue, tomar um banho, se der tempo. O banheiro! Só pode estar lá! Claro! Eu vi a deusa loura colocando de volta nos dedos os anéis que deixara num canto da pia. Ela bem que pode ter colocado de volta os anéis e esquecido os brincos. Um deles, pelo menos. Ou os dois. Os dois. Eu e ela na jacuzzi que Natália mandou instalar. Isso não se faz. Mas eu fiz. Se eu fosse outro estaria profundamente arrependido; eu quero me arrepender, mas não consigo, como não consigo achar a porra do brinco! Minha esperança é que tenha caído no ralo, ou quem vai escorrer pelo ralo é o meu casamento feliz de oito anos, um casal de crianças lindas, um lar harmonioso e uma esposa que é um tesão, uma fera na cama, a melhor trepada do mundo, criativa, bem-humorada, inteligente, uma mulher de parar o trânsito, na flor dos seus 27 anos; e eu, cretino, trepando dentro de casa com uma loura burra – mas gostosa, reconheço – que não sabe nem onde põe os brincos. Talvez minha Ná já esteja no parque Villa Lobos, que é perto daqui. Deixa eu colocar o telefone de novo na tomada. Pronto. Ouvi um latido. Pronto. Adeus, mundo cruel. O telefone e a campainha tocaram ao mesmo tempo. “Alô”. Tenho que abrir. Seja o que Deus quiser.
“Pedro?”- a voz macia – “Tem mais de duas horas que estou ligando praí e só dá ocupado. Ó , não precisa se preocupar, achei o brinco. Estava na bolsa.” Desliguei e corri para a porta. Natália abriu o seu sorriso maravilhoso de 32 dentes perfeitos. Tive uma ereção
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Thomaz de Molina (Batata)
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