Matéria publicada na revista Caros Amigos Especial sobre os 50 anos do suicídio de Getúlio Vargas. A matéria de minha autoria fala do último dia de vida de Vargas.
No peito, a bala da história
O mordomo percebeu que Getúlio não tirava a mão esquerda do bolso, mas não podia imaginar que ali estivesse o colt 32 com cabo de madrepérola.
Rio de Janeiro. A ambulância nº 11.55 chega às pressas ao Palácio do Catete, sede do governo federal, entra, pára próximo a uma porta onde desembarca médicos e enfermeiros que correm para o elevador que os conduzirá ao terceiro andar. Era terça-feira, 24 de agosto de 1954. Pouco antes de a ambulância chegar, Anísio Viana, diretor do Departamento Administrativo do Serviço Público, aproxima-se da portaria do palácio, pega o telefone e não obtém sinal na linha. Tenso, indaga para si mesmo: “Como é que deixaram esse homem sozinho, meu Deus?” Pede a um contínuo, sem sucesso, que ligue de outro telefone ao pronto-socorro, dizendo que o caso é de “ferimento grave”. O repórter Arlindo Silva, da revista O Cruzeiro, que estava de plantão na cobertura da crise, toma a liberdade de chamar o pronto-socorro da praça da República. Mas, quando a equipe da ambulância está voltando do terceiro andar, o médico responsável é taxativo: “Não há mais remédio, o presidente está morto”.
A notícia se alastrou rapidamente: o presidente se suicidara em seu quarto no palácio, às 8h30, com um tiro no peito. A carta-testamento, deixada na cabeceira da cama, foi lida na Rádio Nacional pelo ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha. Comoção nacional. Enquanto os legistas examinavam o corpo, uma multidão ia tomando as ruas próximas ao Catete. A Polícia Especial do Exército e a Aeronáutica montaram um esquema de segurança para conter o povo que se dirigia para o palácio aos gritos de: “Queremos ver Getúlio!” Em São Paulo, um espanhol, após dar um “Viva a Getúlio!”, suicidou-se com um tiro no coração. O jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, foi apedrejado e quase invadido. A Rádio Globo, onde Lacerda fizera a campanha “contra o golpe e contra a corrupção” do governo, também foi apedrejada e dois carros de reportagem do jornal O Globo, de Roberto Marinho, foram virados e incendiados. A multidão já interrompia o trânsito nas imediações do palácio e as sucessivas edições extraordinárias dos jornais se esgotavam mal chegavam à rua. A imprensa só pôde entrar no Catete por volta das 13 horas, e o povão às 17 horas, para participar do velório. Foram 2.100 casos de desmaios nas dezesseis horas em que o corpo esteve exposto à visitação pública, aproximadamente 100.000 pessoas passaram pelo caixão. No Brasil e no exterior, Getúlio virou assunto de todos os jornais. Em Paris, o Le Monde: “A queda de Vargas é uma vitória para os círculos direitistas, para as famílias que são demasiado ricas e estão mal situadas para dar lições de moral e de civismo”. Nos Estados Unidos, o The New York Times: “Poucos acontecimentos, em toda a história da América Latina, têm sido tão pasmosos como o suicídio de Getúlio Vargas”. No Rio, a Última Hora: “Matou-se Vargas. O presidente cumpriu a palavra! Só morto sairei do Catete!” O Jornal do Brasil deu a manchete: “Dramático desfecho”. Mas somente quem esteve com Getúlio nas suas últimas horas pôde relatar os bastidores da crise que se abateu sobre a presidência da República. Desde o chamado atentado da rua Toneleros, no dia 5, quando as suspeitas recaíram sobre Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal, Getúlio sabia da situação insustentável: “Esses tiros me ferem pelas costas”.O dia 24 de agostoO documento que suscitou a reunião ministerial daquela madrugada foi o Manifesto dos Generais, levado ao palácio por volta da meia-noite pelo ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa. No documento, o Exército se declarava pela renúncia do presidente. Foi na sala de despachos, à 0h30, que Vargas pegou uma folha datilografada, assinou-a e guardou no bolso – souberam depois que era a carta-testamento. Tancredo Neves, ex-ministro de Getúlio, conta detalhes: “Chegamos à sala de despachos do presidente e o general Zenóbio da Costa e o marechal Mascarenhas de Morais entraram no gabinete presidencial. Trinta minutos depois, o presidente determinou a convocação do ministério. Perguntei: ‘Presidente, como vamos conduzir a reunião ministerial?’ Respondeu-me: ‘Ouviremos os ministros militares e tomaremos uma decisão’. Pegou de cima da mesa uma caneta e me deu, dizendo: ‘Guarde isto como lembrança destes dias’, Diante da minha surpresa: ‘Não te preocupes. Tudo vai acabar bem’ “.Às 3 horas da madrugada, a reunião ministerial foi interrompida por uma decisão rabiscada na agenda pessoal do presidente: “Já que o ministério não chegou a nenhuma conclusão, vou decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com meu pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão, aqui, apenas o meu cadáver”. Sua filha, Alzira Vargas, que esteve presente à reunião, escreveu: “Terminada a reunião, devia ser, mais ou menos, 4 horas da madrugada, papai subiu para o segundo andar do palácio. Estava aparentemente seguro e tranqüilo. Acompanhavam-no eu e meu tio Benjamin. Entramos juntos em seu gabinete. Nesse momento, papai tirou uma pequena chave de seu bolso e nos disse: ‘Esta chave abre aquele cofre. Dentro dele estão os meus documentos mais importantes. Se alguma coisa me acontecer, retirem a chave de meu bolso e limpem o cofre’. Meu tio Benjamin encarou-o fixamente e disse: ‘Está bem, Getúlio’. Eu retruquei: ‘Papai, quer fazer o favor de parar com isso? De que nos adianta a chave se todos iremos juntos para o mesmo fim?’ Papai respondeu sorrindo: ‘Estou apenas avisando’. E retirou-se para os seus aposentos depois de nos dar boa noite.’” Enquanto Zenóbio saía para anunciar aos demais militares a decisão da licença, Tancredo Neves redigiu a nota oficial, que foi divulgada pelo rádio. Por volta das 6 horas, o irmão Benjamin foi ao quarto de Getúlio, dizendo que teria de depor à polícia, por ser acusado de autor intelectual do atentado da Toneleros. O presidente disse que tudo bem, mas que tomassem o depoimento ali no palácio. Logo depois, a filha Alzira, sob o pretexto de procurar um remédio para dor de cabeça, entrou no quarto: “Papai, da cama em que se encontrava repousando, perguntou-me: ‘Ainda não foste dormir?’ Respondi-lhe meio malcriadamente: ‘Eu durmo quando quiser’. Rindo, ele respondeu: ‘Pois então vá embora, que vou dormir’”. Às 7h30, Benjamin voltou ao quarto para informar que o pedido de licença não era o bastante para os militares e que os quartéis queriam o afastamento definitivo. Getúlio pediu ao irmão que trouxesse mais informações. Nesse momento, certamente, já estava decidido a se matar.Como fazia todas as manhãs, o camareiro Barbosa entrou no quarto com o material para lhe fazer a barba. Vargas estava de pijama listrado: “Que é que tu queres, Barbosa?” “Estou aqui para servi-lo, excelência.” “Não é preciso, saia que eu quero dormir mais um pouco.” “Como o senhor quiser, mas acho melhor o senhor vestir o roupão, porque está fazendo frio.” “Isso não tem importância.” Depois que Barbosa deixa o quarto, o presidente sai em direção ao seu gabinete de trabalho. “Quando vi papai acenar-me com a mão ao passar pelo corredor, estranhei sua atitude, pois sabia que não costumava sair de seus aposentos naqueles trajes”, descreve Alzira. Quando o presidente voltou, o mordomo João Zarattini notou que Vargas conservava a mão esquerda no bolso do paletó, mas não imaginou que ali estivesse o Colt calibre 32 com cabo de madrepérola. O presidente fechou a porta, sentou na cama, posicionou o revolver à altura do peito e, como diz sua carta-testamento, “saiu da vida para entrar na história”. O corpo ficou atravessado sobre a cama, a perna esquerda pendente. Junto ao abajur, na mesa de cabeceira, estava a carta-testamento. “Minha blusa ficou embebida de sangue. No sorriso que meu pai ainda me dirigiu, apenas me reconheceu e senti toda a grandiosidade da sua morte, pois ele morria pelo amor de todos nós. Morria sozinho para impedir que morrêssemos ao seu lado”, escreveu Alzira, que, assim que escutou o tiro, saiu em disparada para o quarto, junto com o tio Benjamin, o irmão Luthero e a mãe Darcy. Uma hora depois da morte, Alzira retirou do cofre todos os documentos pessoais de Vargas, entre eles a primeira via assinada da carta histórica e o diário. Ela estava preocupada com o desfecho havia seis dias, quando um funcionário lhe entregou um bilhete encontrado sobre a mesa de trabalho do pai: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo quanto desejava”. Às 10 horas da manhã de 26 de agosto, o presidente Getúlio Vargas foi enterrado na sua cidade natal, São Borja, Rio Grande do Sul, encerrando um ciclo de dezoito anos de poder.
A notícia se alastrou rapidamente: o presidente se suicidara em seu quarto no palácio, às 8h30, com um tiro no peito. A carta-testamento, deixada na cabeceira da cama, foi lida na Rádio Nacional pelo ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha. Comoção nacional. Enquanto os legistas examinavam o corpo, uma multidão ia tomando as ruas próximas ao Catete. A Polícia Especial do Exército e a Aeronáutica montaram um esquema de segurança para conter o povo que se dirigia para o palácio aos gritos de: “Queremos ver Getúlio!” Em São Paulo, um espanhol, após dar um “Viva a Getúlio!”, suicidou-se com um tiro no coração. O jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, foi apedrejado e quase invadido. A Rádio Globo, onde Lacerda fizera a campanha “contra o golpe e contra a corrupção” do governo, também foi apedrejada e dois carros de reportagem do jornal O Globo, de Roberto Marinho, foram virados e incendiados. A multidão já interrompia o trânsito nas imediações do palácio e as sucessivas edições extraordinárias dos jornais se esgotavam mal chegavam à rua. A imprensa só pôde entrar no Catete por volta das 13 horas, e o povão às 17 horas, para participar do velório. Foram 2.100 casos de desmaios nas dezesseis horas em que o corpo esteve exposto à visitação pública, aproximadamente 100.000 pessoas passaram pelo caixão. No Brasil e no exterior, Getúlio virou assunto de todos os jornais. Em Paris, o Le Monde: “A queda de Vargas é uma vitória para os círculos direitistas, para as famílias que são demasiado ricas e estão mal situadas para dar lições de moral e de civismo”. Nos Estados Unidos, o The New York Times: “Poucos acontecimentos, em toda a história da América Latina, têm sido tão pasmosos como o suicídio de Getúlio Vargas”. No Rio, a Última Hora: “Matou-se Vargas. O presidente cumpriu a palavra! Só morto sairei do Catete!” O Jornal do Brasil deu a manchete: “Dramático desfecho”. Mas somente quem esteve com Getúlio nas suas últimas horas pôde relatar os bastidores da crise que se abateu sobre a presidência da República. Desde o chamado atentado da rua Toneleros, no dia 5, quando as suspeitas recaíram sobre Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal, Getúlio sabia da situação insustentável: “Esses tiros me ferem pelas costas”.O dia 24 de agostoO documento que suscitou a reunião ministerial daquela madrugada foi o Manifesto dos Generais, levado ao palácio por volta da meia-noite pelo ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa. No documento, o Exército se declarava pela renúncia do presidente. Foi na sala de despachos, à 0h30, que Vargas pegou uma folha datilografada, assinou-a e guardou no bolso – souberam depois que era a carta-testamento. Tancredo Neves, ex-ministro de Getúlio, conta detalhes: “Chegamos à sala de despachos do presidente e o general Zenóbio da Costa e o marechal Mascarenhas de Morais entraram no gabinete presidencial. Trinta minutos depois, o presidente determinou a convocação do ministério. Perguntei: ‘Presidente, como vamos conduzir a reunião ministerial?’ Respondeu-me: ‘Ouviremos os ministros militares e tomaremos uma decisão’. Pegou de cima da mesa uma caneta e me deu, dizendo: ‘Guarde isto como lembrança destes dias’, Diante da minha surpresa: ‘Não te preocupes. Tudo vai acabar bem’ “.Às 3 horas da madrugada, a reunião ministerial foi interrompida por uma decisão rabiscada na agenda pessoal do presidente: “Já que o ministério não chegou a nenhuma conclusão, vou decidir. Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com meu pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão, aqui, apenas o meu cadáver”. Sua filha, Alzira Vargas, que esteve presente à reunião, escreveu: “Terminada a reunião, devia ser, mais ou menos, 4 horas da madrugada, papai subiu para o segundo andar do palácio. Estava aparentemente seguro e tranqüilo. Acompanhavam-no eu e meu tio Benjamin. Entramos juntos em seu gabinete. Nesse momento, papai tirou uma pequena chave de seu bolso e nos disse: ‘Esta chave abre aquele cofre. Dentro dele estão os meus documentos mais importantes. Se alguma coisa me acontecer, retirem a chave de meu bolso e limpem o cofre’. Meu tio Benjamin encarou-o fixamente e disse: ‘Está bem, Getúlio’. Eu retruquei: ‘Papai, quer fazer o favor de parar com isso? De que nos adianta a chave se todos iremos juntos para o mesmo fim?’ Papai respondeu sorrindo: ‘Estou apenas avisando’. E retirou-se para os seus aposentos depois de nos dar boa noite.’” Enquanto Zenóbio saía para anunciar aos demais militares a decisão da licença, Tancredo Neves redigiu a nota oficial, que foi divulgada pelo rádio. Por volta das 6 horas, o irmão Benjamin foi ao quarto de Getúlio, dizendo que teria de depor à polícia, por ser acusado de autor intelectual do atentado da Toneleros. O presidente disse que tudo bem, mas que tomassem o depoimento ali no palácio. Logo depois, a filha Alzira, sob o pretexto de procurar um remédio para dor de cabeça, entrou no quarto: “Papai, da cama em que se encontrava repousando, perguntou-me: ‘Ainda não foste dormir?’ Respondi-lhe meio malcriadamente: ‘Eu durmo quando quiser’. Rindo, ele respondeu: ‘Pois então vá embora, que vou dormir’”. Às 7h30, Benjamin voltou ao quarto para informar que o pedido de licença não era o bastante para os militares e que os quartéis queriam o afastamento definitivo. Getúlio pediu ao irmão que trouxesse mais informações. Nesse momento, certamente, já estava decidido a se matar.Como fazia todas as manhãs, o camareiro Barbosa entrou no quarto com o material para lhe fazer a barba. Vargas estava de pijama listrado: “Que é que tu queres, Barbosa?” “Estou aqui para servi-lo, excelência.” “Não é preciso, saia que eu quero dormir mais um pouco.” “Como o senhor quiser, mas acho melhor o senhor vestir o roupão, porque está fazendo frio.” “Isso não tem importância.” Depois que Barbosa deixa o quarto, o presidente sai em direção ao seu gabinete de trabalho. “Quando vi papai acenar-me com a mão ao passar pelo corredor, estranhei sua atitude, pois sabia que não costumava sair de seus aposentos naqueles trajes”, descreve Alzira. Quando o presidente voltou, o mordomo João Zarattini notou que Vargas conservava a mão esquerda no bolso do paletó, mas não imaginou que ali estivesse o Colt calibre 32 com cabo de madrepérola. O presidente fechou a porta, sentou na cama, posicionou o revolver à altura do peito e, como diz sua carta-testamento, “saiu da vida para entrar na história”. O corpo ficou atravessado sobre a cama, a perna esquerda pendente. Junto ao abajur, na mesa de cabeceira, estava a carta-testamento. “Minha blusa ficou embebida de sangue. No sorriso que meu pai ainda me dirigiu, apenas me reconheceu e senti toda a grandiosidade da sua morte, pois ele morria pelo amor de todos nós. Morria sozinho para impedir que morrêssemos ao seu lado”, escreveu Alzira, que, assim que escutou o tiro, saiu em disparada para o quarto, junto com o tio Benjamin, o irmão Luthero e a mãe Darcy. Uma hora depois da morte, Alzira retirou do cofre todos os documentos pessoais de Vargas, entre eles a primeira via assinada da carta histórica e o diário. Ela estava preocupada com o desfecho havia seis dias, quando um funcionário lhe entregou um bilhete encontrado sobre a mesa de trabalho do pai: “À sanha dos meus inimigos deixo o legado de minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo quanto desejava”. Às 10 horas da manhã de 26 de agosto, o presidente Getúlio Vargas foi enterrado na sua cidade natal, São Borja, Rio Grande do Sul, encerrando um ciclo de dezoito anos de poder.
Thiago Domenici é jornalista.
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