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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 30 de abril de 2013

O preço da vaga


por Ricardo Sangiovanni*

Outro dia – isso foi ano passado – parei o carro numa vaga com placa de zona azul para resolver um pepino no cartório aqui perto. Nem bem abri a porta, encostou o rapaz guardador dos carros, com colete da prefeitura e talão de cartelas de estacionamento na mão. “Vai demorar muito aí?”

Respondi que não, que era só registrar uma firma mesmo, e o rapaz: “Então bote R$ 2 aí, bora, bora.” Da abordagem prefiro dizer que foi um tanto rude para o que se espera de um funcionário a serviço da coisa pública, mas não tiraria a razão de quem dissesse ter sido intimidatória, agressiva até, mais parecida com a atuação violenta de certos flanelinhas.

Retruquei que não, que queria pagar o valor do cartão de estacionamento. “Com cartão é R$ 3, sem cartão é R$ 2”, argumentou o rapaz, certo de estar-me propondo um negócio da China: o cliente (no caso, eu) pagaria menos; o guardador (no caso, ele) lucraria mais; e a prefeitura (no caso nem eu, nem ele, logo, como impõe a boa lógica, ninguém) mui justamente não levaria um centavo.

Mas não topei, e o homem pasmou. Azar: melhor fazer o justo, mais ainda por R$ 1. Paguei os R$ 3, pedi o cartão, no qual ele rabiscou qualquer coisa e me deu, meio puto – afinal, deixara de ganhar R$ 2 em troca da provável miséria que ganha da prefeitura por cada vaga vendida. Joguei o papel no parabrisa e fui lá quitar minhas obrigações cartorárias.

***

Lembrei dessa história porque há uns dias noticiaram uma lei recém-aprovada pelos vereadores de Salvador que estipula o combate à atividade dos flanelinhas (os guardadores irregulares, que trabalham sem colete da prefeitura) com multa e prisão.

Prisão. Bestamente noticiou-se a palavra prisão, sem uma linha sequer ponderando a violência com que o Estado se propõe a agir sempre que o alvo da lei é algum retalho de população marginalizada. Os vereadores de Salvador aprovaram – em celeríssimos três meses e meio de legislatura, senhoras e senhores – uma lei que referenda a mais abjeta ferramenta para combater a ilegalidade, a violência urbana, a confusão entre o público e o privado: prender gente pobre. E isso foi noticiado assim, assim.

Noticiado assim e ratificado com depoimentos de uma porção de motoristas batendo palmas para a lei, contra um único guardador de carros ouvido, reclamando. Entre o bando de argumentos do arco-da-velha dos motoristas, destaco o de um senhor, entrevistado dentro de seu automóvel: “Eles [os flanelinhas] exploram a gente. Eu acho que precisa mesmo tomar uma providência e a autoridade agir para que – não [quero dizer que] acabe, porque muitos deles sobrevivem disso, mas que pelo menos tenham bom senso, respeito aos donos dos carros.” Eis o tal do “respeito” senhorial, de que aliás já tratei aqui há um par de semanas, essa infeliz condição definidora da cidadania na cabeça do brasileiro (grosso modo) de classe alta e média.

Noticiado assim e ratificado, ao fim e ao cabo, por uma “pesquisa” – feita aliás não se sabe como – dando conta de que 98% da população da cidade são a favor de cuja lei, e 2% contra. (Toda unanimidade é burra, diria Nelson Rodrigues. E toda quase unanimidade também, digo humildissimamente eu.) Dito assim, ao velho modo positivista, como o argumento que justifica a porretada.

Por cima da tristeza comum de se viver num país cheio de preconceitos de classe, de cor, de gênero, de opção sexual como o nosso, sinto secretamente uma atroz desesperança em relação ao jornalismo que se anda fazendo a partir dessa realidade. Noticia-se bestamente de um tudo, com perigosas “factualização” e “imparcialização” da realidade, sem profunda leitura crítica do que se noticia, como se essa fosse tarefa a posteriori, e tarefa ademais de comunicólogos, antropólogos, sociólogos, ou sabe-se lá de quem, exceto de jornalistas. E assim vamos, tagarelando verdes feito papagaios.

A única polêmica que as notícias sobre o assunto conseguiu levantar foi administrativa: são cerca de 2 mil flanelinhas na cidade, contra 1.300 guardadores credenciados pela prefeitura. Ou seja: ou a prefeitura contrata mais que o dobro de agentes, ou ela credencia os atuais flanelinhas, transformando-os em agentes sindicalizados e autorizados, com direito a colete amarelo e talãozinho de zona azul. O que não seria novidade, afinal muitos dos guardadores atuais começaram na profissão como flanelinhas.

***

Aí fui contar, entre moralista e folgazão, meu causo do guardador de carros a um amigo. Terminava de expor-lhe a moral do acontecido, qual seja, que a noção de coisa pública é o que falta em nosso Brasil brasileiro, e que não teremos mais do que ratos dentro da máquina estatal enquanto nosso projeto de nação não for o da educação para a cidadania, para a igualdade, para o republicanismo.

Meu amigo assentiu. Acrescentou apenas que, se não lhe falhasse a memória, a taxa para estacionar na rua pelo tempo mínimo (duas horas, bem mais que os quinze minutos que levei para resolver minha pendência no cartório) eram R$ 1,50, e não R$ 3. Então eu não havia escapado do golpe… Mas, pelo menos, a moral da história seguia sendo a mesma.


*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Último corujão



por Carlos Conte   ilustração Caco Bressane*

Conhecem o último corujão da Lapa? Fica na rua Guaicurus, próximo ao Mercado, aonde eu ia com a minha avó fazer compras quando criança. De dia, o comércio popular fervilha, os estudantes indo e vindo, as padarias cheias, as lotéricas cuspindo filas de gente para as calçadas, os taxistas pitando e vendo TV no ponto. Mas é o sol baixar um pouco, as persianas vão se fechando, as portas metálicas ficam semicerradas, o povo nervoso quer espaço para voltar para casa, árvores escurecem o passeio e, daí pra frente, as almas descem às ruas pra dar suas bandas. Só permanecem abertas as pizzarias delivery e o bar do Silvinho, o último corujão do bairro da Lapa, certamente um dos últimos fecha-nunca da cidade.

A censura aos bares andou degolando muita gente nos últimos tempos. As multas são tão altas que a maioria vai à falência. Quando batem as dez da noite, todos os donos de bar de São Paulo tornam-se figuras preocupadas, ansiosas, com medo de servir. Põem a conta na mesa sem o cliente pedir, oferecem uma saideira, porque os vizinhos... ai, os vizinhos... lamentam-se. Só no Silvinho que não. Lá não existe Lei do Psiu e às dez a noite está apenas começando.

É por volta das sete e meia que as portas se levantam e só vão se fechar lá pelas seis da madrugada. Não se ouve falar de reclamação ou problema com a polícia. Pelo contrário. Os policiais acenam das viaturas fazendo ronda. E o Silvinho acena de volta. Seu sócio, o Lagarto, tem cara mesmo de lagarto, ou de crocodilo, com seu papo gordo e sua barriga inchada. Todos ali têm barriga inchada, como se estivessem de oito meses, a ponto de explodir.

Parece que o bar inteiro está assim: a ponto de explodir. A impressão é de que alguma coisa grave pode acontecer a qualquer momento. Respira-se sujeira nesse bar. O ar é impregnado de futum de fossa, de catinga de bueiro. Enquanto os barrigões se encostam, alguém bebe sozinho, triste. Dois bêbados, um deles usando um uniforme de funcionário da CET, o outro de jaqueta de couro, gastam todas as suas moedas ouvindo Zé Ramalho na jukebox. Na frente, alguns carros de luxo estacionados. Seus donos são sujeitos simpáticos, quase sempre calvos, morenos, cinquentões, que conversam entre si em roda, mas também interagem com o restante do pessoal. São os policiais civis, todos sabem. Os caras têm grana mas preferem beber no Silvinho. Não sei por que o bar do Silvinho virou o reduto dos policiais civis do bairro da Lapa. E dos bandidos também. A legião de jogadores ali tem salvo-conduto para entrar e sair quantas vezes quiser pela porta do salão dos fundos, onde ficam as maquininhas caça-níqueis, proibidas por lei. Também não se sentem constrangidos os que, em dupla, em trio ou em bando entram no banheiro para cheirar. Todo mundo sabe que é o motoboy da rua Fábia quem passa a farinha.

Um vendedor de frutas deixa o carrinho na calçada e pede Cynar com 51. Pedreiros e pintores tomam sua sopa em silêncio. Do balcão dá pra ver os caldeirões soltando vapor. O meu preferido é o caldo de piranha, que dizem ser afrodisíaco. Todos os vícios andam por lá. O bar do Silvinho é o refúgio da boêmia assustada da cidade. Bolos de dinheiro entram e saem pela porta a todo instante. Maços de notas de dez vão e vêm, maceradas pela agitação nervosa da noite.

Ali eu sempre encontro o Otávio, um amigo do meu falecido avô. Quando termina o expediente na cantina, onde trabalha há décadas como garçom, desce em direção ao Silvinho, mas fazendo o pinga-pinga de sempre nos botecos do itinerário. Chega com as mãos no bolso, de camisa branca de manga comprida, os cabelos amarelados penteados para trás com gel, a cara cheia de rugas. Cumprimenta um por um, conhecendo ou não, mostrando sua boca vazia de dentes, porém cheia de afeto. Tem dias em que o Otávio parece uma alma penada.

Enquanto isso, os jovens, não menos decadentes, ficam em pé na entrada, curvados, ou encostados nas paredes, de moletom, boné e calça jeans, bebendo litrão. A maioria dos bandidos (assaltantes, traficantes) está entre eles. Todos se conhecem. Há amigos de infância nessas rodas. Mesmo os estranhos são bem recebidos, porque podem ser conhecidos de alguém, não se sabe... Em lugares como o bar do Silvinho não se veem muitas confusões, porque pouca gente se arrisca a ver no que vai dar... De vez em quando o Silvinho ou o Lagarto é obrigado a tocar dali um beberrão inconveniente, e ainda assim o faz com naturalidade e delicadeza, que nem se percebe. Não tem brigas. Não tem gritos. Há um entendimento superficial, um acordo velado, nos cumprimentos, nas saudações, mas é impossível não sentir, no meio do vapor dos caldeirões e da fumaça dos cigarros, no último corujão da Lapa, vestígios de pólvora, sangue e crime.

* Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Caco Bressane, arquiteto e ilustrador, especial para o texto

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Serenata



por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Será que ele me ama mesmo, assim bem muito, do jeito que eu quero e preciso tanto?

Fingindo não repetir clichês, será que os meus filhos sentem o que eu sinto por eles e apreciam meu jeito metido a não-clichê de ser mãe?

Esses textos que eu escrevo porque preciso, e ficam dormindo no computador, será que algum dia vão acordar e sair por aí?

Quero muito me livrar do sufoco de trabalhar tanto, dessas viagens que se multiplicam, de avião e espera em aeroporto, de quarto e cardápio de hotel, de tanta reunião, seminário, plano estratégico e relatório, mas como vai ficar a vida sem este compromisso essencial? Quem serei eu após essa carreira farta de sobrenomes?

Como será ter cinquenta anos? E sessenta? Como lidar com reuniões de família, e por que resisto tanto a elas? E a morte, que não pergunta nada, chega e pronto; como será morrer? E tudo misturado, rodando na cabeça de madrugada em alta rotação, dentro daquela batedeira sem botão?

Os cinquenta e o fim da carreira chegaram e se foram com surpreendente suavidade e gosto de café com bolo de canela. Continuo viva, virei blogueira e serei avó postiça em breve. Confirmaram-me, no furdunço do Facebook, que a paixão passa, o amor lava e cozinha. O tempo fica rindo de mim pelos cantos, de tão solto que o deixo.

Mergulhei fundo no infinito lago de dentro. Guiada por uma lanterna em mãos hábeis e meio mágicas, nadei, nadei e nadei. O bate-estaca dos miolos nas madrugadas foi serenando, serenando, serenou.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. 

quinta-feira, 25 de abril de 2013

OU já era


por Fernanda Pompeu           ilustração Fernando Carvall*

Uma das melhores contribuições da cultura internet, creio, é fragilizar a dinâmica do isso ou aquilo, do fla ou flu, do feminino ou masculino, do pensar ou agir. Como se estivéssemos nos preparando para adotar comportamentos unissex, unirracias, unitudo.

Estamos começando a civilização do E. Do isto e aquilo. Leio jornal e portal. Visto saia e coturno. Uso email e sussurro no pé do ouvido. Quero desenvolvimento econômico e natureza. Tenho vida online e offline. Em suma, estamos no tudo ao mesmo tempo.

Mas não é fácil. Estou com cinquenta e sete anos. Fui educada na lógica das oposições. Do sólido ou do líquido. Da esquerda ou da direita. Do amigo ou inimigo. Do sim ou do não. De uma certa maneira, venho de um mundo confortável. No qual, você é ou não é. Ponto sem com.

Tendo sido configurada desse jeito, me custou - e ainda me custa - certo esforço para embarcar no universo líquido, onde os muros perdem vigas de sustentação. E tremem. Também não sou bobinha para acreditar que diferenças e conflitos ficaram para trás. É claro que não.

A sociedade humana segue classista, sexista, racista, injusta. O que mudou, a meu ver, são as formas de transformação. Agora, posso conjugar ativismo físico com ativismo online. Posso misturar maneiras de estar. Posso postar meu comentário (meu grafite mental) em quase-infinitos espaços.

Antes não. Para que minha expressão, opinião, protesto, aplauso fossem publicados, eu precisava de intermediários. Um veículo, um editor, um pistolão, uma panelinha. Entre o poema na gaveta e ele na página, havia uma paisagem de obstáculos. Em resumo: poucos vitoriosos para uma multidão de perdedores.

A cultura internet mexe com nossos neurônios. Ela faz a parede virar janela. Demonstra que a interação e o compartilhamento não são opções. São fatos. Impossível querer crescer, inovar, produzir, acontecer sem considerar a fala, o comentário, o medo, a coragem do outro.

O outro toca a campainha da nossa cabeça. Sem pedir licença, despeja suas necessidades, demandas e desejos. Ele acha que se expressar é direito inalienável. É um outro enxerido, caprichoso, cheio de si.

Paciência. Mas também esse cidadão digital nos lembra de um óbvio muitas vezes esquecido. Nos lembra que só existe escritor se houver leitor, mercado se houver consumidor, poema se houver sonho. Clique que segue.

Resumo da crônica: não sou eu OU ele. Sou eu E ele. Nós no líquido.


fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto

quarta-feira, 24 de abril de 2013

É novela, quer o quê? Pára de chiar e muda de canal!


por Cidinha da Silva*

Escrever textos opinativos sobre novelas ou aspectos delas, é um grande aprendizado. É vespeiro de abelhas bravas e vingativas. Você passa pelo inferno do desprezo, ora intelectualóide, ora esquerdizante e vai até outro inferno, do pessoal que compra a ideologia da novela e a assisti (ou diz que não assisti) sem laivo de criticidade. É um risco para a reputação da cronista, porque de uma ponta a outra há um corredor polonês inclemente, preparado para bater.

Mesmo a crítica mais participativa, aquela localizada no entremeio dos infernos, confunde papeis. São ditas coisas como “Muito bom o texto! Faça-o chegar à autora da novela!” Ora, faça-o você, se acha que vale o trabalho de movimentar-se nessa direção. A escritora escreve, põe o texto no mundo e ele anda com as próprias pernas. E quem quiser que o carregue, promova, critique, execre-o, com argumentos, por favor, principalmente no caso dos textos opinativos. Assim a autora se sentirá motivada a debater.

Ainda outra dimensão negativa, é que o texto sobre novelas publicado na Web é lido de maneira imediatista e grudada no tema abordado. É um texto sem asas, em que pese o fato de muitos leitores não aceitarem convites para ampliar o real. Parece que o peso da superfície livro é que continua a possibilitar vôos mais satisfatórios.

Pelo lado mais positivo, este tipo de crítica também encerra a percepção de que autora não consagrada joga nas onze. Ou seja, escreve, corrige, edita, escolhe ilustração, publica, divulga e deve fazer o texto chegar às mãos dos possíveis interessados.

A resposta aos textos novelísticos é também campo fértil para a manifestação dos donos da verdade. Gente que tem coisas prontas a dizer e que, pretensamente, pairam sobre a abordagem chinfrim da cronista, bem como sobre a percepção insignificante dos demais mortais. Um exemplo significativo, que não se refere à novela, propriamente, mas se adéqua de maneira perfeita ao perfil de dono da verdade exercido na Web, é a afirmação de que o espaço midiático e a repercussão conseguidas pela declaração de amor de Daniela Mercury à companheira, Malu Verçosa, é “um pouco exagerado demais.”

É de dar nó em pingo d’água! A coisa é “um pouco exagerada demais!” Diria que o sujeito inventou um pleonasmo torto precedido (contradito) por um quantificador de leveza linguística (a função inventada para o advérbio “pouco”, na frase). Tudo disfarce cínico da heteronormatividade para desqualificar a atitude da cantora, perfeitamente afinada com o respeito aos direitos humanos das pessoas LGBT no Brasil.

Existe uma versão ainda mais tosca dos donos da verdade, os fatalistas: "É a Rede Globo”! O que esperavam? O que assusta é vocês ainda esperarem alguma coisa das novelas.” Ou ainda, “É novela, quer o quê? Pára de chiar e muda de canal!” As variações são muitas, tem o cara que diz: “Se eu não gosto, desligo a TV, não fico revoltadinho e abro mil assuntos no Face.”

Tem também outro tipo, metido a descolado: “Eu queria entender porque a autora ainda se da ao desfrute de assistir a um programa de uma emissora notoriamente racista. Se por questões de análise social ou se por entretenimento, no meu caso nem um nem outro”. A escritora avisa que não há uma resposta precisa para essa neurose. De um modo geral, cronista é gente à toa, mete-se onde não é chamada e vive procurando assunto. Essa é a verdade singela que não dá para ocultar desde os tempos de Machado e Lima Barreto.

É candidato a rei também, o arauto da esquerda: “O povo ainda não entendeu que uma mídia corporativa burguesa não pensa no povo e cultura como seres humanos, só pensam no lucro... o pior é que o povo ainda dá audiência.” É dureza receber essas mensagens, ainda mais para a autora que não é noveleira. Ela apenas lê a telenovela quando a assiste.

Tem os comentários impossíveis de decodificar, seja por pretenderem uma ironia (fracassada), seja por serem vagos ao afirmarem uma coisa, ao mesmo tempo em que contrariam o que disseram antes. É confuso mesmo. Você lê, relê e não consegue perceber se a concordância (ou discordância) é com a afirmação da autora ou com a crítica a ela.

Outros comentários mostram porque a novela emplaca, explicitam o tipo de pensamento representado por ela, expresso na voz do público. Note-se um vernizinho intelectual, estratégia da comentarista para tentar se diferenciar da massa ignara, quando emite juízo de valor sobre a crônica a respeito do núcleo de moradores de favela da telenovela Salve Jorge: “A novela não é grande coisa mesmo, mas é ficção e não documentário. E quem acha que novela vai fazer pensar? A maioria dos jovens de favela e periferias não querem nada mesmo: vejo aqui, na região de Venda Nova, em Belo Horizonte, rapazes soltando pipas, fazendo rachas com motos... moças que não trabalham, só querem namoro, e olha que não se vestem mal, não... não sei onde acham dinheiro pra comprar; é cabelo chapado, shortinhos curtos, funk em volume ensurdecedor, etc, etc...”

Felizmente, predominam os comentários inteligentes, lúcidos, mas a gente que lê o mundo, destaca sempre o que precisa ser reconstruído, por isso a ênfase naqueles que deixam escapar visões de mundo que interessam muito à ideologia da novela.

Bom exemplo de comentário positivo é o que segue. “Desligar a TV é uma boa mesmo, mas não resolve o que se discute aqui: invenções e reforços dos estigmas racistas! Por favor, a idéia é questionar e combater violências, não fechar os olhos, as portas, as janelas, a TV, os ouvidos... Detesto novela, não as assisto, mas estou com quem questiona o que elas veiculam.”


*escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna quinzenal Dublê de Ogum

terça-feira, 23 de abril de 2013

Bastidores de um crime

Caros leitores,
O texto desta terça-feira, escrito pelo talentoso jornalista catarinense Fernando Martins, é real, aconteceu e acontece com mais frequência do que se possa imaginar, infelizmente.
Os nomes dos envolvidos foram modificados.
Semana que vem, eu volto com as crônicas.
Boa leitura,

Fernando Evangelista




por Fernando Martins*

Os dois policiais dão o mesmo testemunho: “O delinquente estava caminhando, viu a viatura e saiu correndo. Fomos atrás e, ao revistá-lo, encontramos 10 papelotes de cocaína no bolso da calça”. O delegado se dá por satisfeito e manda trazer o jovem, detido numa das celas da delegacia.

O rapaz nega ser dono da droga. “Os policiais estão mentindo”, ele diz. O chefe da delegacia mantém o flagrante e ordena que ele fique preso. Um advogado presencia a cena, chama o delegado num canto e cochicha:

– O garoto está de bermuda e ela não tem bolso. Como ele poderia carregar drogas no bolso? Isso só pode ser brincadeira.

 Eu já estou com o flagrante fechado, ele vai continuar preso e se o doutor quiser que converse com o juiz – rebate o delegado.

Juliano da Silva, 23 anos, não tem passagem pela polícia, não tem apelido, e mora no morro do Mocotó, área central de Florianópolis. É negro, pobre e está desempregado. Ou seja, na visão da polícia e de grande parte da sociedade, é um elemento altamente suspeito.

Juliano é filho de dona Clotilde, faxineira de 54 anos, que cuida sozinha de seis rebentos. O marido deu no pé e nunca mais apareceu. O sonho de Juliano é, um dia, ganhar bastante dinheiro e ajudar a mãe e os irmãos a sair da vida de miséria.

O “flagrante” ocorreu às 22h de uma sexta-feira. Os fatos:

Juliano desce o morro para fazer um lanche com os amigos, que o aguardam num barzinho do centro. Durante o trajeto, na Avenida Gustavo Richard, bem próximo ao Fórum, uma viatura policial para ao seu lado. Dois militares descem, um deles aponta a arma para o jovem, o manda colocar as mãos na cabeça e virar de costas.

Os militares exigem informações sobre um traficante. Seguindo as regras de quem mora em locais comandados pelo tráfico, Juliano diz não saber de nada. Os policiais insistem. Ele não fala. Então, irritados, a PM o joga na viatura e diz que ele terá que se explicar sobre os papelotes de cocaína.

 Cocaína. Qual cocaína? – ele quer saber.

O jovem mantém a calma, acha que tudo vai se resolver. Na delegacia, é levado direto para uma das celas, onde estão outros presos.

Um dos policiais liga para um repórter, velho conhecido. Em pouco tempo, a equipe de reportagem está na delegacia. São recebidos com sorrisos e abraços calorosos. Tomam um café e pedem para fazer imagens dos papelotes de cocaína. São dez papelotes, já cuidadosamente organizados na mesa do delegado.

Os militares dão as informações e destacam a importância da polícia no combate ao tráfico. O celular do repórter toca, é uma fonte comunicando a apreensão de uma grande quantidade de entorpecentes em outro ponto da cidade. Antes de ir embora, o jornalista pede para conversar com Juliano. Afinal, são as regras da profissão: é preciso ouvir o outro lado. É preciso ser imparcial.

O cinegrafista liga a câmera, o PM abre a cela e o repórter, com pressa, inicia a gravação:

 Em mais um excelente trabalho, a PM catarinense fecha o cerco ao tráfico de drogas e tira de circulação Juliano da Silva, mais conhecido como Morcego. Ele estava com 10 papelotes de cocaína. Vamos conversar com ele. Onde você ia levar essa droga?

– Não sei de nada, não senhor – responde o rapaz, cabeça baixa, voz quase inaudível.

O repórter fala algumas coisas e encerra a matéria. Com a câmera desligada, diz: “É sempre assim, nunca sabem de nada. Vai ficar em cana para refletir e aprender a lição”.

Já na manhã de sábado, o auto de prisão em flagrante chega às mãos do Juiz que, crendo como corretas as informações declaradas pelo delegado, mantém o flagrante e denuncia Juliano por tráfico de drogas.

O suposto traficante terá que aguardar o julgamento preso. O advogado, ao ver que Juliano não teria como pagar os serviços, decide não defendê-lo. Preso na delegacia há mais de cinco meses, Juliano recebe um advogado da defensoria dativa. Ainda não havia sido instalada a Defensoria Pública em Santa Catarina, último Estado da Federação a implementá-la.

Sem olhar direito para o rosto do jovem, o advogado, analisando o inquérito, orienta:

 Os caras te pegaram, o melhor é confessar. Confessa que a droga é sua, e como você não tem passagem pela polícia, como você já ficou preso cinco meses, eu consigo que tu saias em, no máximo, três meses. Você concorda?

– Mas a droga não é minha.

 Você é que sabe. A vida é sua. Eu tenho experiência e sei que, neste caso, é melhor confessar. Ele concorda com o advogado.

Exatamente um ano depois daquela sexta-feira, Juliano continua preso, à espera do julgamento.

Fernando Martins é jornalista, especial para o Nota de Rodapé

A woman in love


por Izaías Almada*

“Your eyes are the eyes of a woman in love...”

O CD do conjunto vocal Four Aces era a última paixão de Maneco. Raridade, aliás, só encontrável em algumas lojas de Londres ou Nova York ou por encomenda.

O repertório do grupo trazia-lhe doces recordações da adolescência vivida em Belo Horizonte. Mais do que isso: lembrava-lhe o seu primeiro amor, Isabela.

Na época, Maneco tinha dezesseis anos de idade, Isabela, catorze. Foi durante o baile de formatura do ginásio, onde o romantismo melódico dos Four Aces provocou contatos mais íntimos nos salões do Automóvel Clube. Podia-se mesmo arriscar, nestas festas, uma ida às sacadas do prédio para “tomar um pouco de ar”, como se costumava dizer. Ou para um beijo às escondidas.

Houve quem, no carnaval, despencasse de uma delas cheirando lança perfume. Tragédia em alta sociedade.

E foi numa dessas sacadas, no espaço estreito entre as cortinas de veludo verde-escur, a porta de vidros bisotê e os galhos de fícus a ocultar o prédio e as próprias sacadas da rua, que Maneco sentiu os seios de Isabela encherem-lhe as mãos pela primeira vez. Rijos, mas suaves, palpitantes, solícitos.

Os lábios entreabertos e os olhos revirados da namorada gritavam, em úmido silêncio, pelos desejos da mulher que ali desabrochava.

A woman in love...

*escritor e dramaturgo, Izaías Almada mantém a coluna mensal Pensando Alto. Imagem: quadro Estrolabio do pintor Pablo Picasso.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Dia de índio


por Ricardo Sangiovanni*

No tempo do mil-e-quinhentos, sertão se escrevia certão. Ou certam. Mas já era o que até hoje ainda é: aquela quentura dos infernos, aquela faltante fartura de tudo na seca.

Naqueles começos de Brasil, como até hoje não deixou de ser, mais fácil que domar o sertanejo a custa de bala era enredá-lo com arte de engano. Àquelas multidões de gente índia, falavam-lhes os capitães portugueses (ou portuguezes) da abundância de peixes e mariscos do mar que no litoral lhes aguardava, e mais da liberdade que havia lá à espera, para eles gozarem. E regalavam aos cabeças das tribos quaisquer trapos de roupa, mais umas ferramentas ruins que sobravam, mais as comidas secas que à mão houvesse.

E então pela via da paz – pois guerrear dava mais trabalho – desabalavam-se aldeias inteiras sob a batuta dos colonizadores, no encalço do litoral. Até chegar na beira da praia, que era quando os donos dos bacamartes davam voz de prisão ao povo índio arreganhando-lhes aquela podridão nojenta que tinham por dentes. E disparavam, e separavam os filhos dos pais, os irmãos das irmãs, as mulheres dos maridos, e levavam-nos cativos para trabalhar em suas recém-formadas fazendas. E nunca mariscos do mar, e nunca mais liberdade.

Falando assim, o leitor pensará que era empreitada fácil. Mas não: o caso é que, para convencer o gentio a caminhar pacífico aquele mundo de léguas, carecia um ardil: era preciso ter na equipe alguém persuasivo, capaz de parlamentar na língua do povo – alguém, via de regra, também índio, ou mestiço.

De sorte que numa entrada dessas – a que teve por chefes Francisco de Caldas e Gaspar Dias de Atayde, em Pernambuco – ofereceu-lhes seus préstimos (não se sabe a troco de que paga) certo Brasso-de-peixe (ou Braço-de-peixe, ou Braço-do-peixe), um principal dos guerreiros Tabajares (ou Tobajaras), para convencer as tribos que iam sendo encontradas no caminho a marcharem sem resistência guerreira.

Aliados aos lusos, os Tabajares do Braço guiaram os colonizadores certão adentro, e de lá voltaram com sete mil índios cativos – que eram os que haviam sobrado vivos, porquanto haverem preferido o convencimento à matança. Porque afinal não eram pedras nem metais preciosos, caro leitor, senão levas e levas de índios escravizados – o ouro vermelho – a grande riqueza que daqueles sertões se usava extrair.

Acontece que a cobiça lusitana era tamanha que, já perto do fim da viagem, os capitães deliberaram que a recompensa do Brasso e sua gente pelos serviços prestados seria serem tomados como escravos, igualmente aos demais que haviam ajudado a trazer.

Mas o Braço, que não era surdo nem burro, ouviu e entendeu a conversa dos lusos. E, bem mais ardiloso que eles, seguiu dando-lhes trela e guarida – já sabendo da traição em vista, ofereceu-lhes ainda por cima mais duzentos caçadores à guisa de escolta para o caminho de volta.

E esperou.

Esperou até a hora em que Caldas e Atayde, e os demais homens seus, de tão bem protegidos que se sentissem, descuidaram da vigília – e o ataque rompeu a calma da noite. A ordem de Braço-de-peixe a seus duzentos guerreiros – e mais aos homens de Assento-de-Passáro, outro chefe seu parente que chegou para acudir – foi flechar os portugueses todos até que não escapasse nenhum com vida.

Assim foi feito. E no restante daquela noite fez-se festa e foi servida carne branca. E a indiada de cativa tornou a ser livre. Livre (verdade que graças ao macunaímico Braço-do-peixe, cujo restante da história um dia ainda lhes terminarei de contar) para voltar para suas terras, livre para ir para onde quisessem na manhã daquele dia raro, aquele dia de índio.


*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Brasília



por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna

 Nunca na nossa vida houve uma mudança como aquela. Um dia, saímos do interior de São Paulo, onde vivíamos na maior pobreza e no mais profundo provincianismo puritano, e no outro chegamos a Brasília, onde tudo era novo e borbulhante.

Sim, porque, ainda que o ano fosse 1974, e a nova capital apenas um espectro do que é hoje, para nós, autênticos bichos do mato, era Manhattan. Cheguei com dezessete anos e muita disposição pra desbravar o mundo novo.

Pra começar, viramos classe média da noite pro dia. Isso porque meu pai, que até então havia sido pastor evangélico numa comunidade pobre em todos os sentidos, acabava de ser contratado em Brasília como professor, com um salário antes inimaginável. Nossa família de seis almas instalou-se num modestíssimo apartamento de três quartos, num bloco de três andares, sem garagem nem elevador. Mas quem se importava com isto, se o simples fato de vivermos num apartamento era visto e sentido como se tivéssemos sido finalmente promovidos a verdadeiros seres urbanos?

Aqui todo mundo tinha carro e telefone, nenhum vizinho demonstrava qualquer interesse pelo que se passava no apartamento ao lado, e pessoas separadas, homens e mulheres, refaziam sua vida numa boa, com seus novos pares, com a maior naturalidade. Um espanto.

E eu adorava tudo. Aqui provei pão de queijo pela primeira vez na vida e conheci uma confeitaria de verdade, que me deslumbrou com suas bombas de chocolate e tortinhas de morango e maçã. Fui também apresentada a um restaurante chinês, onde entrei com muitas reservas, morrendo de medo do que ia encontrar; o frango xadrez teve gosto de outro mundo. Filé com fritas, conheci na cantina da Câmara dos Deputados.

Podíamos, finalmente, comprar roupas e comer pizza com coca-cola de vez em quando. Passear no Conjunto Nacional era um grande programa, mas o Beirute e o Gilberto Salomão eram antros de perdição onde se bebia cerveja e se dançava, e que só fui explorar muitos anos depois.

Aqui ninguém entrava na sua casa sem ser convidado, nem aparecia sem avisar, e as portas dos apartamentos estavam sempre fechadas. Percebi que existia uma coisa chamada privacidade, que me seduziu para sempre.

Aqui fugi da escola, antes de terminar o segundo grau, e nunca mais voltei. E mesmo assim pude sempre ter bons empregos e até fazer carreira num organismo internacional, por estar no lugar certo, na hora certa.

Aqui me dei conta de que a armadura da religião podia ser desvestida, e era perfeitamente possível viver sem ela. O alívio que senti foi diretamente proporcional ao calor do fogo eterno que me ameaçava até então.

Em suma, aqui comecei a virar gente.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Sumidinhos


por Fernanda Pompeu  Ilustração Fernando Carvall

Tive que bater pernas – e anote que moro em Sampa – para achar alguém que consertasse o relógio carrilhão de propriedade da minha mãe. Para os mais jovens explico: o carrilhão soa horas e meias horas com badaladas. O exemplar foi comprado por meu bisavô Cassiano, nascido na época da carochinha, no Minuto Inglês no bairro carioca Estácio de Sá.

Por fim, em uma obscura galeria da Brigadeiro Luís Antônio, consegui um mago capaz de manipulá-lo. Um velho japonês, encurvado e seco. Numa simples olhada, disse o problema e o orçamento. Uma semana depois, mamãe sorria feliz com o som do carrilhão.

Fiquei pensando que afinal as pessoas morrem. O velho japonês não ficará para semente. E não deixará seguidores. Com a imposição de objetos cada vez mais descartáveis, relojoeiros, técnicos de máquinas de lavar e congêneres estão a meio passo da extinção.

Mas não só técnicos de coisas tangíveis correm perigo. Também os doutores da palavra entram na fila para o além. Por exemplo, está cada vez mais complicado encontrar revisores. E quando os encontramos, não nos atendem de tão assoberbados.

É claro que não me refiro a revisores de conveniência. Ou seja, a secretária que foi boa aluna em português, o colega que nunca desgruda de um livro, o autor do texto. Aliás, este último é o menos indicado. Pois por ter escrito, ele fica cegueta na hora de revisar.

Faço menção aos revisores que conhecem a língua como a quebradeira, o coco. Aquele pessoal que zela pela correção e elegância. Que manja de sintaxe e semântica. Os que saboreiam conjugar, concordar, ritmar.

Alguém lembrará: esse "desparecimento" ocorreu em massa com os bancários. Quando entraram as caixas eletrônicas e bancos onlines, a categoria murchou. Minha irmã, uma bancária aposentada, costuma dizer: "Os correntistas foram transformados em bancários. Esse é o melhor do mundo para o lucro dos banqueiros."

Alguém que goste de história dirá que sempre foi assim. Profissões desparecem e outras nascem. Citará o que ocorreu na Revolução Industrial, no século dezoito. Artesãos se tornaram operários. O feito à mão perdeu espaço para o feito à máquina.

Hoje com a revolução digital, numa aceleração espantosa, profissões e profissionais são descartados, ao mesmo tempo que centenas de ofícios surgem a cada manhã. As pessoas, notadamente as mais velhas, reagem ora com nostalgia, ora com depressão, ora com entusiasmo.

Eu estou na turma das entusiastas. Acredito que o reino da internet veio para incluir e potencializar interações. Macaqueando o slogan da loja de hamburger, amo muito tudo isso. Filha da Remington e da Olivetti tento me adaptar no máximo.

No entanto, isso não impede que me arrepie ao calcular quanto de experiência e conhecimento irão morrer. Assistimos ao velório da arte de consertar relógios, somar números, revisar palavras. É o momento em que o real esvanece para no futuro ressuscitar como mito.

*fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto

quarta-feira, 17 de abril de 2013

30 anos sem Clara Nunes

por André Carvalho    ilustração Kelvin Koubik "Kino"*

“Quando eu vim de Minas, trouxe ouro em pó”. Os versos do samba de Xangô da Mangueira, gravados por Clara Nunes em 1973, traduziam em poucas palavras sua trajetória artística. A “mineira guerreira” saiu da pequena cidade de Caetanópolis, no interior de Minas Gerais, para levar a todo o Brasil a imensa beleza contida em composições de artistas populares. Para milhões de brasileiros, trouxe “ouro em pó” em forma de música.

A vida e obra da cantora, nascida Clara Francisca Gonçalves em 12 de agosto de 1942, é um capítulo à parte na história da música popular brasileira. Superando dramas, obtendo vitórias, quebrando paradigmas e registrando para a posteridade belas melodias, Clara encantou, foi amada, idolatrada por multidões. Intensa, conheceu o sucesso em sua forma mais avassaladora. Fugaz, morreu de forma trágica, no auge, aos 40 anos de idade.

Sua biografia se fez amparada em várias escolhas acertadas, que a conduziram ao sucesso.Seria Clara Nunes um grande nome da música brasileira se tivesse interpretado somente boleros e músicas românticas, base do repertório do início de sua carreira? Conheceria os meandros do samba tão bem, e se consagraria como uma das maiores intérpretes do gênero, se não fosse conduzida pelas mãos do produtor Adelzon Alves?Sem Paulo César Pinheiro ao seu lado, teria ela diversificado o repertório, consagrando-se definitivamente como uma das maiores intérpretes da música brasileira? Seria tão adorada pelas gerações posteriores se não tivesse escolhido tão bem os compositores e registrado suas obras com tanto esmero? São questões que destrincham o que foi Clara Nunes e nos mostram porque, 30 anos após sua morte, seu nome permanece tão vivo.

De Carmen Miranda a Elizeth Cardoso

Cantar era umas das coisas que a pequena Clara mais gostava de fazer em Caetanópolis. Se tivesse ficado por lá, certamente, seríamos privados de conhecer seu canto doce.Ainda adolescente, mudar-se-ia para Belo Horizonte, onde daria seus primeiros passos na vida artística. Sua maior influência, a cantora que mais admirava, era Elizeth Cardoso, nome de destaque na história da música popular brasileira, que se tornaria sua amiga com o decorrer dos anos.

Elizeth Cardoso, no entanto, apesar de reconhecido talento, não era uma grande vendedora de discos. Fato é que, desde Carmen Miranda, nenhuma cantora repetira seu grande sucesso e causara a admiração que a “Pequena Notával” havia conquistado. Clara Nunes quebraria este paradigma. Após lançar três discos sem o menor destaque, cantando boleros e músicas românticas, adaptadas de sucessos internacionais, o ano de 1971 marcou a grande virada: Clara venderia discos como água a partir daí, alcançando a incrível marca de 18 discos de ouro conquistados. O responsável pela mudança: Adelzon Alves.

Os produtores

Os primeiros discos de Clara Nunes na Odeon foram um fracasso. A imposição da direção artística da gravadora, capitaneada por Carlos Imperial, era que ela gravasse músicas românticas. Após três bolas na trave, ela bateu o pé. Queria fazer um disco cantando samba, músicas regionais, algo mais brasileiro.

Pensou em convidar Hermínio Bello de Carvalho para produzir seu novo álbum – ele já havia produzido Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, além de ter descoberto e lançado Clementina de Jesus. Clara tinha adoração por ele desde quando, chegando ao Rio de Janeiro, impressionou-se com o musical Rosa de Ouro, produzido por ele (a cantora assistiu 13 vezes ao espetáculo). Carlos Imperial, no entanto, vetou o nome de Hermínio. A solução foi convidar Adelzon Alves, que possuía um programa de samba muito popular no rádio e conhecia muito bem o universo que a cantora gostaria de explorar – e se inserir. A aposta foi mais do que acertada.

A relação de Clara com Adelzon extrapolou o campo profissional: tornaram-se namorados. Ele a levava para conhecer as principais rodas de samba da cidade, subiam os morros e percorriam a cidade toda conhecendo compositores. Nestas andanças, conheceu a Velha Guarda da Portela e Antonio Candeia Filho, duas paixões que levaria para o resto da vida. O mundo do samba se curvava a ela e, com naturalidade, ela conquistava público, crítica e gravadora. Ninguém escapava aos seus encantos. A partir daí, sua carreira decolou e Clara não obteria, nos discos seguintes, nada menos que o sucesso retumbante.

A parceria fonográfico-amorosa chegou ao fim quando apareceu outro personagem de fundamental importância na vida e obra de Clara: Paulo César Pinheiro. Amor que vai, amor que vem, uma nova parceria se fez, mais uma vez envolvendo a música e a vida pessoal da cantora - desta vez, porém, o fogo da paixão veio antes. Os dois logo casariam e ficariam juntos até o fim da vida de Clara.

Em 1975, após quatro discos de grande sucesso produzidos por Adelzon Alves, Clara Nunes lançou “Claridade”. À princípio, Paulo César Pinheiro não assumiu as rédeas da produção dos discos da esposa, passando a bola para Hélio Delmiro neste disco. A partir do álbum seguinte, “O canto das três raças” (1976), no entanto, até seu último disco, “Nação”, lançado em 1982, foi ele quem conduziu a carreira da cantora.

Com o marido na direção, a carreira de Clara Nunes tomou um novo rumo. Assim como o disco lançado em 1971, “O canto das três raças” representou um novo marco em sua trajetória artística. A cantora provou ser uma excelente intérprete de composições dos mais diferentes gêneros – gravou modinha, capoeira, canção, marcha-rancho e samba.

Os compositores

Paulo César Pinheiro, além de produzir os discos de Clara, criou grandes clássicos que ficaram eternizados na voz da cantora. Ao lado de Mauro Duarte e João Nogueira, formou uma trinca de compositores que produziu alguns dos maiores sucessos de sua carreira. Da ponta de sua pena, foram traçados os versos dos sambas “Menino Deus”, “O canto das três raças” e “Portela na Avenida”, que trouxeram melodias de “Bolacha”, como era conhecido Mauro Duarte.

Com João Nogueira, compôs os sucessos “As Forças da Natureza”, “Guerreira”, “Banho de Manjericão” e “Minha missão”. O poeta ainda assinaria parcerias com Guinga, Eduardo Gudin, Maurício Tapajós, João de Aquino, Ivor Lancelotti, Sivuca, além da própria Clara, naquela que seria a única composição da cantora, “À flor da pele” (que tinha, também, Maurício Tapajós como coautor).

De Mauro Duarte, Clara Nunes ainda registraria outros sambas que alcançariam grande repercussão, como “Lama” e “Meu sapato já furou” (com Elton Medeiros). Já com João Nogueira, a relação também seria intensa, tendo gravado sambas do compositor desde seu primeiro disco “de samba”, de 1971 (na ocasião, registrou “Meu lema”, parceria com Gisa Nogueira, irmã do sambista, e “Morrendo de verso em verso”).

Clara Nunes travou uma grande amizade com o compositor do Méier, um “sambista de calçada”, como ele mesmo se definia. Ao seu lado, engajou-se no Clube do Samba, batalhando pela valorização do samba e dos sambistas no âmbito da cultura popular brasileira, cada vez mais ameaçada, já nos idos dos anos 70, pela indústria cultural. Clara era uma figura emblemática nesta luta, já que vendia muitos discos sem fazer concessões, era popular sem abrir mão da qualidade e do respeito às tradições musicais do país.

Outro compositor que marcou a carreira de Clara Nunes foi Candeia. Assim como João Nogueira, o sambista engajou-se na defesa da cultura brasileira com a criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, que representava uma resistência ao formato francamente comercial que as Escolas de Samba haviam adquirido à época. Clara nutria enorme admiração pelo compositor e o tinha como grande amigo. Em seus discos, era obrigatória a presença de ao menos uma composição do sambista no repertório – com “O mar serenou” obteve enorme sucesso, em 1975.

Uma obra de valor como a de Clara se faz com discos bem trabalhados, com produções caprichosas e músicas escolhidas a dedo, pepitas de ouro garimpadas em meio a infindáveis ofertas de composições. Além dos compositores citados acima, de fundamental importância para sua carreira, a mineira gravou os maiores nomes da música brasileira: Ataulfo Alves, Assis Valente, Chico Buarque, Cartola, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Martinho da Vila, Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Baden Powell, Vinicius de Moraes, Ismael Silva, Monarco, Bide, Marçal, Paulinho da Viola, Capiba, Sivuca, Wilson Moreira, Nei Lopes, Adoniran Barbosa, Elton Medeiros... A lista é grande e contempla os grandes baluartes da cultura popular do país.

Os instrumentistas

Quando Clara Nunes resolveu gravar um disco de samba, Adelzon Alves convidou o Conjunto Nosso Samba para acompanhá-la nas gravações. Não poderia ser apenas um repertório repleto de “brasas”, o arranjo, a roupagem, o “molho” deveria ser de uma autêntica roda de samba – não caberia o formato bateria-baixo-piano, que algumas cantoras arriscavam ao gravar o gênero, procurando dar um arranjo mais “sofisticado”.

O casamento foi perfeito: Carlinhos tocava o cavaquinho com afinação em bandolim de maneira única e o ritmo, conduzido pelo surdo de Gordinho, trazia o balanço de Nô, Barbosa, Stênio e Genaro, fazendo uma “cozinha” categórica para Clara Nunes brilhar. A sintonia foi perfeita e os músicos acompanharam a cantora em shows e gravações até o fim de sua vida.

Outros grandes instrumentistas passaram pelos estúdios da Odeon para gravar com Clara. Dino 7 Cordas, Hélio Delmiro, Wilson das Neves, Pedro Sorongo, Zé Menezes, Alceu Maia, Nelsinho do Trombone, Copinha, Raphael Rabello, Jorginho do Pandeiro, Sivuca, Jackson do Pandeiro, Luna, Elizeu, Marçal... Os nomes de peso mostram a força que a cantora tinha no meio musical brasileiro nos anos 70 – todos queriam gravar com ela.

Portelense

Bem relacionada com compositores e instrumentistas do meio do samba, Clara Nunes se aproximou da Portela. Adorava o ambiente informal, alegre, repleto de música da mais alta qualidade, que permeava os encontros da Velha Guarda. Tornaria-se portelense de coração, desfilando na avenida todos os anos, gravando sambas de compositores de lá e, honraria máxima que poderia receber, foi nomeada madrinha da Velha Guarda, ao lado de Paulinho da Viola, o padrinho.

Sucesso na rádio, na TV e no teatro

Para a Odeon, ter Clara Nunes em seu elenco de artistas representava a certeza do sucesso. Gravando um disco por ano, vendia centenas de milhares de exemplares a cada lançamento. Talentosa, belíssima e carismática, conquistava tudo e a todos. Aos produtores do rádio, lançava sucesso atrás de sucesso; às mulheres, ditava moda com suas roupas, penteados e acessórios; aos sambistas, apontava os nomes dos bambas do momento (e do passado), dava vida a composições esmeradas, tirando-as de baús e da lembrança de seus criadores e, assim, mantinha a força do samba junto àqueles que eternizavam tais versos e melodias em rodas espalhadas por todo o Brasil.

Não demorou a transpor fronteiras. Não bastava aos fãs ouvi-la. Todos queriam vê-la cantar. No Fantástico, passou a emplacar videoclipes de seus sucessos. Lançou o primeiro em 1974 e não parou mais, sendo presença constante na TV aos domingos, até sua morte.

Tendo conquistado a indústria fonográfica, o rádio e a televisão, faltava o teatro. E a estratégia desenvolvida por ela e Paulo César Pinheiro para atingir tal objetivo foi ousada: adquiriram um espaço e criaram o Teatro Clara Nunes, onde a cantora poderia apresentar seus espetáculos, lançar seus álbuns e divulgar a mais representativa música popular brasileira ao público sem atravessadores – sem empresários e produtores a impor, restringir e barganhar às custas de seu talento.

“Adeus meu sabiá, até um dia”

O Sabiá - um dos apelidos de Clara - voou alto e cantou suas ricas melodias por mais de uma década com enorme sucesso. A partir de 1983, no entanto, esse cantar não mais se faria ouvir. Clara morreria tragicamente, no dia 2 de abril daquele ano, por conta de uma má sucedida operação para retirada de varizes, que culminou com um choque anafilático fatal.

Paulo César Pinheiro, João Nogueira e Mauro Duarte - o trio de compositores mais ligado à cantora - deixaram, como testamento, uma singela homenagem a ela em forma de samba: “Um ser de luz”. Fato é que, trinta anos após sua morte, a obra de Clara Nunes permanece viva, forte e inspiradora.

“Um dia
Um ser de luz nasceu
Numa cidade do interior
E o menino Deus lhe abençoou
De manto branco ao se batizar
Se transformou num sabiá
Dona dos versos de um trovador
E a rainha do seu lugar

Sua voz então a se espalhar
Corria chão
Cruzava o mar
Levada pelo ar
Onde chegava espantava a dor
Com a força do seu cantar

Mas aconteceu um dia
Foi que o menino Deus chamou
E ela se foi pra cantar
Para além do luar
Onde moram as estrelas
E a gente fica a lembrar
Vendo o céu clarear
Na esperança de vê-la, sabiá

Sabiá
Que falta faz sua alegria
Sem você, meu canto agora é só
Melancolia
Canta meu sabiá,
Voa meu sabiá,
Adeus meu sabiá
Até um dia”
"Escute uma seleção de sambas gravados por Clara Nunes entre 1971 e 1982". Para saber mais, baixa a bibliografia.




*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre

Minicraque do Feliciano

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Caco Bressane, arquiteto e ilustrador, colunista do NR, mantém a série A Fábrica de Brinquedos Pau-brasil

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Sobre tomates


por Ricardo Sangiovanni*

Tomate em italiano diz-se pomodoro. Não é novidade, todo mundo que compra molho pronto de caixinha sabe. Pomodoro, pomo d´oro, pomo de ouro, o fruto avermelhado que o sol do Mediterrâneo doura.

Plural de pomodoro é pomodori – é assim na língua de Dante: “i” no final para o plural masculino, “e” para o feminino, via de regra. Mas entre os mais velhos do sul da Itália ouve-se dizer pomidori. Não é ignorância, senão sabedoria: por detrás do erro à primeira vista fortuito esconde-se uma renitente denúncia às violências que toda gramática impõe ao caminho comum do sentido: pois o plural de pomo d´oro era para ser, no mínimo, pomi d´oro, frutos de ouro. Mas não. É como se, entre nós, o plural de fruta-pão fosse fruta-pães. Então, na ausência da lógica na base da regra, os anciões tripudiam: estranho por estranho, melhor pomidori que pomodori.

Mas esse intróito todo foi para tomar coragem de contar a vocês que certa feita cultivei tomates. Adoraria poder contar tê-lo aprendido de pequeno, quando ainda usava calças curtas e suspensórios, respirando aquele arzão amarelado do terreno em que nonno Franceschino cultivava alguns pés de agrumes na carina Mormanno, encravada nas montanhas que separam a Calabria da Basilicata. Mas não: a verdade, se não é menos bela, é sempre menos cinematográfica, de sorte que não fui criado no campo senão num apartamento miúdo nesta Bahia transatlântica, nunca cultivei tomateiros na infância, tampouco meu avô, embora italiano, jamais me foi apresentado como “nonno Franceschino” – pois quando nasci ele já havia se transmutado no brasilianíssimo sertanejo vovô Chico.

Em todo caso, já tive sim a honra de cutivar tomates no sul da Itália. Não na calabresa Mormanno, mas numa horta pequena nos arredores da siciliana Catania.

Quando cheguei para dar uma mãozinha na lida, os tomateiros já estavam plantados, mas ainda em broto. Antes de tocar nas plantinhas, precisei demonstrar talento para a coisa limpando o terreno do mato ao redor de cada pé. Agachado, de joelhos na terra. Joelhos e mãos. Não sei se aprendi bem o serviço, mas pude entender de onde vem a saúde mental de quem cultiva a terra: cada toco de mato vale um pensamento dispensável; cada palmo de terreno limpo é metáfora de nossa própria mente, sempre tão necessitosa de ordem e de paz. Aquilo é uma beleza, serve para o sujeito achar o fio da meada no novelo das ideias, purgar o mal que eventualmente tenha feito a alguém, redimir-se, enfim, de todas as misérias.

Porque o mato consome o viço da terra, de maneira que a terra, estando limpa, cede mais viço aos tomateirinhos. No terreno limpo eles crescem mais rápido, mas não feito arvorezinhas: vão-se enramando pelo chão. Espalham-se em todas as direções, e desse jeito arriscam dissipar energia em uma porção de galhos fracos, que roubam vigor ao tronco central. E o que é pior: espalham-se rasteiros, suscetíveis às formigas e demais bichos da terra.

É quando os tomateiros pedem uma mão ao cultor da terra.

Fui então instruído, nessa fase, a enfiar cânulas (de bambu, mas pode ser qualquer pau) próximo ao caulezinho de cada pé. E, em seguida, a erguer cada um deles, e a encontrar seu galho mais forte, para então amarrá-lo docemente à estaca, dando-lhe direção, sustentação. É como erguer do chão alguém que nos pede ajuda – requer sobretudo crer que, dando uma mão àquela vida disforme, ela irá no futuro florescer e dar seus frutos de volta ao mundo, agradecida.

Mas para o tomateiro crescer forte, para que os frutos venham bonitos, precisa podar. E nas mãos de quem só aprendera a arrancar, a destruir o mato brabo, uma tesoura de poda parece arma perigosa. Com que critério afinal se escolhem os galhos certos a serem eliminados da massa de vida folhada de cada tomateirinho verde?

Pois – isso logo aprende-se – o certo é cortar os galhos de baixo, de baixo para cima, os que concorrem com o tronco principal. Dá pena quando são bonitos, mas é preciso: se não os cortamos, acaba que a planta não toma rumo e, crente de estar realizando todas, no fim não realiza nenhuma das promessas de vida que cada ramificação encerrava em si. O certo mesmo é cortá-los, pedindo licença a cada tomateiro para tal. Com ou sem palavras, o homem que cultiva a terra dialoga com cada planta, como se lhe tentasse identificar o talento maior, o rumo certo entre todos aqueles destinos possíveis que ela propõe quando jovem. Novamente não sei se aprendi bem o serviço, mas pude entender como o cultivo da terra poupa o homem da leitura de Freud (ou, melhor, ajuda-o a compreendê-lo melhor), como o ensina a conduzir e educar planta, bicho ou pessoa, respeitando-lhe a alegria vivaz de querer expandir-se para todos os lados, mas orientando-lhe a fazer escolhas à medida em que cresce, porque afinal não se pode ser tudo o que se quer nessa vida.

Ao longo do processo, é claro, não se pode esquecer de molhar os tomateiros – com pouca água a cada vez, mas cuidando para que o terreno esteja sempre úmido e fértil. Passados uns dois, talvez três meses, começam a despontar os primeiros ospomodori (ou pomidoro. Ou pomidori). E eu – agora já me fora delegada a função de gestor autônomo da horta – enchia, cheio de orgulho paternal, os cestos e baldes com os mais maduros, para comê-los em seguida n’alguma receita deliciosa do Mediterrâneo.

E por aqui vou encerrando, amigo leitor, porque já vai dando a hora do almoço e essa conversa de tomates me deu fome. E se toquei no assunto nesta semana sem ter falado de preços, de crises, de inflação, é porque não entendo muito dessas coisas. Perdão, caro leitor, mas isso é tudo o que sei sobre tomates.


*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador. Ilustração em imagem da agência GettyImages

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Ínfimo glossário contemporâneo 2


por Júnia Puglia Ilustração Fernando Vianna

Aborto – interrupção voluntária da gestação involuntária; é proibido, mas não adianta proibir, é feito assim mesmo, colocando em risco a vida de uma quantidade absurda de mulheres pobres; entendeu?

Bafômetro – engenhoca que mede, pelo bafo, a quantidade de álcool que habita o corpo da pessoa, mesmo que a própria não tenha bebido nada alcoólico, tadinha

Casamento civil – sociedade matrimonial cuja reputação andava em baixa, mas foi salva pelo movimento LGBT

CPI do Cachoeira – exuberante e copiosa cascata

Coreia do Norte – país asiático dirigido por uns sujeitos com cara de Playmobil que estão chamando os americanos para uma guerrinha nuclear; não tem a menor graça

Crossdressing – algo como “vestimenta contrária”, adotada por algumas pessoas que decidem concretizar a imagem de si mesmas que veem no espelho (ver “Laerte” abaixo); sacode neurônios até de quem os tem em mínima quantidade

Daniella Mercury – popstar baiana que dá show de coragem e integridade e ainda puxa o tapete de quem se ocupa da vida alheia

Dilma Bolada – minha Presidenta linda, chique, inteligente e competente

Elen Oléria – um sol brasiliense

Email – modalidade de comunicação digital em vias de extinção, por incrível que pareça a quem datilografava cartas com quatro cópias carbonadas há escassos 25 anos

Empregada doméstica – figura remanescente da escravidão, que foi extinta em 1888, pero no mucho (ver “madame” abaixo); definidora da sociedade brasileira como ela é; finalmente adquire o status de trabalhadora plena (!!!); o país tem com ela uma dívida incalculável

Família – papai-mamãe-filhinhos, papai-papai-filhinhos, mamãe-mamãe-filhinhos etc. etc. que se amem e se cuidem

Feliciano – furacão de estupidez, ignorância e grosseria que se situou no balcão de negócios da Câmara dos Deputados e não para de produzir catástrofes

Imunidade tributária – absurdo e abjeto privilégio de igrejas e instituições religiosas; por que elas e não você ou eu?

Lado a lado – um surto na teledramaturgia nacional; novela situada na década de 1900, mostrou as relações entre brancos e negros como elas são, com honestidade, clareza e sensibilidade; não podia ser mais atual; tudo que é bom dura pouco

Laerte – apenas o máximo

Madame – espécie em desespero com a possibilidade de ter que lavar as próprias calcinhas e assim detonar as unhas, entre outras terríveis ameaças que pairam no ar dos ambientes livres de escravas domésticas

Margaret Thatcher – amigona de Reagan e Pinochet; agora formam o Trio Parada Dura do sétimo inferno

Mimimi – mimimi mimimi mimimi

Nelson Mandela – meu grande e único herói

Relação homoafetiva – politicamente correto e muito pedante

Tomate – falsa leguminosa originária do México, essencial na culinária de muitos países; recentemente promovida a caviar no Brasil

TopBlog 2012 – prêmio brasileiro para blogs supermega duca

Yoani Sanchez – quem?

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

 Leia também: Ínfimo glossário contemporâneo 1
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