por Cidinha da Silva*
Escrever textos opinativos sobre novelas ou aspectos delas, é um grande aprendizado. É vespeiro de abelhas bravas e vingativas. Você passa pelo inferno do desprezo, ora intelectualóide, ora esquerdizante e vai até outro inferno, do pessoal que compra a ideologia da novela e a assisti (ou diz que não assisti) sem laivo de criticidade. É um risco para a reputação da cronista, porque de uma ponta a outra há um corredor polonês inclemente, preparado para bater.
Mesmo a crítica mais participativa, aquela localizada no entremeio dos infernos, confunde papeis. São ditas coisas como “Muito bom o texto! Faça-o chegar à autora da novela!” Ora, faça-o você, se acha que vale o trabalho de movimentar-se nessa direção. A escritora escreve, põe o texto no mundo e ele anda com as próprias pernas. E quem quiser que o carregue, promova, critique, execre-o, com argumentos, por favor, principalmente no caso dos textos opinativos. Assim a autora se sentirá motivada a debater.
Ainda outra dimensão negativa, é que o texto sobre novelas publicado na Web é lido de maneira imediatista e grudada no tema abordado. É um texto sem asas, em que pese o fato de muitos leitores não aceitarem convites para ampliar o real. Parece que o peso da superfície livro é que continua a possibilitar vôos mais satisfatórios.
Pelo lado mais positivo, este tipo de crítica também encerra a percepção de que autora não consagrada joga nas onze. Ou seja, escreve, corrige, edita, escolhe ilustração, publica, divulga e deve fazer o texto chegar às mãos dos possíveis interessados.
A resposta aos textos novelísticos é também campo fértil para a manifestação dos donos da verdade. Gente que tem coisas prontas a dizer e que, pretensamente, pairam sobre a abordagem chinfrim da cronista, bem como sobre a percepção insignificante dos demais mortais. Um exemplo significativo, que não se refere à novela, propriamente, mas se adéqua de maneira perfeita ao perfil de dono da verdade exercido na Web, é a afirmação de que o espaço midiático e a repercussão conseguidas pela declaração de amor de Daniela Mercury à companheira, Malu Verçosa, é “um pouco exagerado demais.”
É de dar nó em pingo d’água! A coisa é “um pouco exagerada demais!” Diria que o sujeito inventou um pleonasmo torto precedido (contradito) por um quantificador de leveza linguística (a função inventada para o advérbio “pouco”, na frase). Tudo disfarce cínico da heteronormatividade para desqualificar a atitude da cantora, perfeitamente afinada com o respeito aos direitos humanos das pessoas LGBT no Brasil.
Existe uma versão ainda mais tosca dos donos da verdade, os fatalistas: "É a Rede Globo”! O que esperavam? O que assusta é vocês ainda esperarem alguma coisa das novelas.” Ou ainda, “É novela, quer o quê? Pára de chiar e muda de canal!” As variações são muitas, tem o cara que diz: “Se eu não gosto, desligo a TV, não fico revoltadinho e abro mil assuntos no Face.”
Tem também outro tipo, metido a descolado: “Eu queria entender porque a autora ainda se da ao desfrute de assistir a um programa de uma emissora notoriamente racista. Se por questões de análise social ou se por entretenimento, no meu caso nem um nem outro”. A escritora avisa que não há uma resposta precisa para essa neurose. De um modo geral, cronista é gente à toa, mete-se onde não é chamada e vive procurando assunto. Essa é a verdade singela que não dá para ocultar desde os tempos de Machado e Lima Barreto.
É candidato a rei também, o arauto da esquerda: “O povo ainda não entendeu que uma mídia corporativa burguesa não pensa no povo e cultura como seres humanos, só pensam no lucro... o pior é que o povo ainda dá audiência.” É dureza receber essas mensagens, ainda mais para a autora que não é noveleira. Ela apenas lê a telenovela quando a assiste.
Tem os comentários impossíveis de decodificar, seja por pretenderem uma ironia (fracassada), seja por serem vagos ao afirmarem uma coisa, ao mesmo tempo em que contrariam o que disseram antes. É confuso mesmo. Você lê, relê e não consegue perceber se a concordância (ou discordância) é com a afirmação da autora ou com a crítica a ela.
Outros comentários mostram porque a novela emplaca, explicitam o tipo de pensamento representado por ela, expresso na voz do público. Note-se um vernizinho intelectual, estratégia da comentarista para tentar se diferenciar da massa ignara, quando emite juízo de valor sobre a crônica a respeito do núcleo de moradores de favela da telenovela Salve Jorge: “A novela não é grande coisa mesmo, mas é ficção e não documentário. E quem acha que novela vai fazer pensar? A maioria dos jovens de favela e periferias não querem nada mesmo: vejo aqui, na região de Venda Nova, em Belo Horizonte, rapazes soltando pipas, fazendo rachas com motos... moças que não trabalham, só querem namoro, e olha que não se vestem mal, não... não sei onde acham dinheiro pra comprar; é cabelo chapado, shortinhos curtos, funk em volume ensurdecedor, etc, etc...”
Felizmente, predominam os comentários inteligentes, lúcidos, mas a gente que lê o mundo, destaca sempre o que precisa ser reconstruído, por isso a ênfase naqueles que deixam escapar visões de mundo que interessam muito à ideologia da novela.
Bom exemplo de comentário positivo é o que segue. “Desligar a TV é uma boa mesmo, mas não resolve o que se discute aqui: invenções e reforços dos estigmas racistas! Por favor, a idéia é questionar e combater violências, não fechar os olhos, as portas, as janelas, a TV, os ouvidos... Detesto novela, não as assisto, mas estou com quem questiona o que elas veiculam.”
*escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna quinzenal Dublê de Ogum.
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