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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 25 de abril de 2013

OU já era


por Fernanda Pompeu           ilustração Fernando Carvall*

Uma das melhores contribuições da cultura internet, creio, é fragilizar a dinâmica do isso ou aquilo, do fla ou flu, do feminino ou masculino, do pensar ou agir. Como se estivéssemos nos preparando para adotar comportamentos unissex, unirracias, unitudo.

Estamos começando a civilização do E. Do isto e aquilo. Leio jornal e portal. Visto saia e coturno. Uso email e sussurro no pé do ouvido. Quero desenvolvimento econômico e natureza. Tenho vida online e offline. Em suma, estamos no tudo ao mesmo tempo.

Mas não é fácil. Estou com cinquenta e sete anos. Fui educada na lógica das oposições. Do sólido ou do líquido. Da esquerda ou da direita. Do amigo ou inimigo. Do sim ou do não. De uma certa maneira, venho de um mundo confortável. No qual, você é ou não é. Ponto sem com.

Tendo sido configurada desse jeito, me custou - e ainda me custa - certo esforço para embarcar no universo líquido, onde os muros perdem vigas de sustentação. E tremem. Também não sou bobinha para acreditar que diferenças e conflitos ficaram para trás. É claro que não.

A sociedade humana segue classista, sexista, racista, injusta. O que mudou, a meu ver, são as formas de transformação. Agora, posso conjugar ativismo físico com ativismo online. Posso misturar maneiras de estar. Posso postar meu comentário (meu grafite mental) em quase-infinitos espaços.

Antes não. Para que minha expressão, opinião, protesto, aplauso fossem publicados, eu precisava de intermediários. Um veículo, um editor, um pistolão, uma panelinha. Entre o poema na gaveta e ele na página, havia uma paisagem de obstáculos. Em resumo: poucos vitoriosos para uma multidão de perdedores.

A cultura internet mexe com nossos neurônios. Ela faz a parede virar janela. Demonstra que a interação e o compartilhamento não são opções. São fatos. Impossível querer crescer, inovar, produzir, acontecer sem considerar a fala, o comentário, o medo, a coragem do outro.

O outro toca a campainha da nossa cabeça. Sem pedir licença, despeja suas necessidades, demandas e desejos. Ele acha que se expressar é direito inalienável. É um outro enxerido, caprichoso, cheio de si.

Paciência. Mas também esse cidadão digital nos lembra de um óbvio muitas vezes esquecido. Nos lembra que só existe escritor se houver leitor, mercado se houver consumidor, poema se houver sonho. Clique que segue.

Resumo da crônica: não sou eu OU ele. Sou eu E ele. Nós no líquido.


fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto

Um comentário:

Tito Glasser disse...

Saudações Fernanda,

Mais uma vez estou aqui como um líquido opaco ou uma mancha de sangue nesta sociedade que nos permiti tudo e ao mesmo tempo nada. Procuramos a ordem e por outro lado não sabemos a onde está o progresso, essas palavras foram jogadas em nossa bandeira, em nossa estória como brasileiros (as) que ainda procuramos a nossa origem.

Ótimo texto.
Beijos.

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