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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Ruth e Zilda

As irmãs Ruth e Zilda moravam bem perto da minha casa. Ruth era uma linda mocinha de uns quinze anos, alta, de olhos verdes e pele cor de canela. Esbanjava alegria e energia, um furacão de voz grave e gargalhadas demolidoras. A irmã devia andar pelos dez anos, era bem negra, com trancinhas e uma luz intensa nos olhos.

A mãe delas começou a frequentar a nossa igreja, e Ruth algumas vezes ficava cuidando de nós, filhos do pastor, enquanto meus pais iam a algum culto durante a semana. Era muito bom ter uma babá linda e divertida, que ignorava todas as instruções da minha mãe e inventava as brincadeiras mais loucas. De vez em quando, fazia uns fantásticos mexidos de sobras de comida quando já estávamos dormindo, e nos acordava pra comer com ela.

Além de serem alegres e carinhosas com a gente, chamava-me muito a atenção que elas não tinham a expressão derrotada ou ressentida de todos os outros negros da minha infância. Eram altivas e tinham uma evidente alegria de viver. E isto era insuportável pra quase todo mundo. Lembro-me do incômodo que causavam entre os adultos, por serem “atrevidas”, e “não entenderem o seu lugar”. Além disso, a beleza e sensualidade de Ruth eram ameaças constantes às famílias.

Durante um bom tempo, minha grande transgressão de criança consistiu em fingir que ia brincar na rua, em frente de casa, que era a distância permitida, e fugir para a casa delas, onde rolava pipoca com limonada e muitas risadas. Fui pega no pulo, e terminantemente proibida de voltar lá. Tudo bem que Ruth fosse nossa babá eventual, mas eu “fugir” pra ir brincar com elas por iniciativa própria era um absurdo.

Pouco tempo depois, elas se mudaram da nossa cidade. Da Zilda, nunca mais ouvimos falar. Quanto à Ruth, soubemos, muitos anos depois, que estava casada com um alemão e morava em São Paulo. A notícia veio acompanhada de comentários do tipo “quem diria que aquela negrinha ia agarrar um alemão, e ainda se casar com ele”.

Contavam-se detalhes sobre os terríveis conflitos familiares – que ninguém ali havia presenciado – causados pela escolha do rapaz, que, ao que consta, apaixonou-se por ela e enfrentou a ira da família com muita coragem e determinação.

Se a vida não é fácil pra ninguém, como eu acredito, ela sempre proporcionou doses multiplicadas de dificuldades para os negros, dificuldades tanto maiores quanto mais “atrevidos” e menos conformados eles forem com seu destino “automático” de “seres humanos de segunda classe”. Isso está mudando, sim, mas ainda falta muito.

Nunca soube como Ruth se sentiu ao enfrentar a situação do casamento, mas tenho certeza de que, por mais difícil que tenha sido, sua bendita altivez garantiu-lhe um lugar num mundo que lhe era totalmente adverso. Deste momento tão distante, mando-lhe um beijo saudoso e cúmplice.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

13 comentários:

coresentrenos disse...

Oxalá, para a parte Ruth que existe em todos nós. Bendita transgressão que toda criança carrega.Que tenhamos a cúmplicidade de viver e não ter a vergonha de ser Feliz.
bjos

Pastora Leila Müzel dos Santos disse...

Chorei amiga! A tua linda babá foi minha grande amiga na juventude. Nos encontramos poucas vezes depois... e ríamos a valer da situação. Sempre feliz a nossa Rute! Foi-se, mas deixou as mais lindas memórias para aqueles que tiveram o privilégio de tê-la por perto. Foi uma mulher brilhante!

Shirley disse...

Junia, delícia de memórias e reflexões que vc compartilha nesse escrito. Tive muitas amigas negras (sempre tive uma atração espontânea, apesar dessa branquitude que me insiste; nunca me pus no meu lugar). E muitas vezes tive que, dentro de minha própria família, enfrentar o racismo e ouvir: "essa daí vale a pena, tem alma branca", dentre outras muitas barbaridades.
Acabo de ler o livro que ganhei de vocês, A Resposta, e tá tudo ali. Muito emocionante pra mim todo esse tema. Um beijo cúmplice!

Anônimo disse...

Que emoção, meu Deus ! Visitei a Rute em Sao Paulo: conheci os filhinhos dela e do alemão e...nunca mais soube dela. Sempre penso que ela continua viva e se lembrando da gente.Só não sabia que você tinha tão boas lembranças dela.Quem sabe ela está lendo sua crônica hoje ?
Seus escritos são fantásticos,mesmo !!!!
BEIJOS DA MUMMY DIRCIM

Anônimo disse...

Linda e oportuna, Junia! Na semana em que se comemora o dia internacional pela eliminação da discriminação racial, conhecer a história de uma mulher como a Ruth - e tantas outras como ela - nos faz ver como são fundamentais para questionarmos o Status quo e avançarmos em direção a um mundo que de fato valoriza a diversidade. Em que ninguém nasce com lugares pre determinados no mundo em função de sua cor e sexo! Um viva às pequenas revoluções! Beijo, Ana Carol

Anônimo disse...

Pelo comentário da Leila, parece que a Ruth já se foi desse nosso mundinho besta. Outro beijo saudoso e cúmplice pra ela!
Júnia

Elezer Jr. disse...

Júnia, especialmente para mim, que também tive o privilégio de conviver com a Ruth, a Zilda e tantos outros amigos que enfrentaram (e enfrentam) o mesmo preconceito, este texto foi particularmente comovente. Lembro-me delas com muito carinho também. E lembro com amargura a desfeita sofrida junto com o Betinho, outro dos amigos negros daquela época, que foi barrado quando nosso time foi convidado para jogar num campeonato promovido pelos Mormons. "Se o Betinho não entra, não jogamos." E não jogamos.
Parabéns por mais esta crônica, e obrigado pelo show de memórias de valor!

disse...

Ju, são histórias como essa sua que ainda me fazem acreditar que ainda há esperança para a humanidade! Obrigada! Tâ

Anônimo disse...

Suas palavras me emocionaram, querida. Há tanto a fazer ainda... E, ao mesmo tempo, tudo é tão simples. Olhar o outro, enxerga-lo, reconhecê-lo, respeitá-lo. Por que é tão difícil? Me pergunto todos os dias... Vamos seguir lutando, girando a roda e dando a nossa pequena contribuição ... Beijos, Marcia

Bel Clavelin disse...

Madame Puglia,

enfrentar o racismo no dia a dia não é mole não. Ainda bem que Ruth manteve-se viva, ousada. Com estima elevada, alegria pra encarar a vida e dar a volta no racismo sem perder a sua dignidade. Bom te ler!

Anônimo disse...

Adorei a história e me fez reviver muitos episódios da minha vida, da infância aos dias de hoje, que ainda pulsam. Vivi a história da Rute às avessas e sei bem como é complicado. Registro meu respeito e carinho por tod@s @s meus/minhas amig@s negros, mulatos, índios e brancos, que foram tão importantes para eu ser quem eu sou hoje. Myriam

Anônimo disse...

Que linda história e que bem escrita! Adorei Junia e também me fez reviver coisas. Eu como espanhola branca casada com um descendente de indígenas brasiguaio tive que escutar muita bobagem de um lado e do outro. O mais engraçado foi quando me falaram que ele com certeza estava querendo se aproveitar de mim para obter a nacionalidade espanhola. Nunca estive no interesse dele e pelo contrário eu estou solicitando a nacionalidade brasileira. Que coisa boa para as pessoas perceberem as bobagens que falam.
Susana

Anônimo disse...

Realmente conhecer a Ruth Maas foi previlégio de Deus. Cantar, pregar, falar de um amor supremo, curtir a família e os amigos, era seu maior prazer. Falar alemão corretamente, ter vivido alguns períodos na Alemanha. Ter morado muito bem em Campinas SP. Ser amada pelo alemão seu marido e por seus dois filhos, foram suas grandes temporadas entre as dores de uma enfermidade que a levou muito cedo. Ela lutou com um cancer de mama, até findar, mas, quem com ela andou, aprendeu ter prazer por viver em Cristo, e superar a dor, o racismo e as diferenças. Saudades da Ruth!!!!!!!!!!!! Elizabeth Santos

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