Antropólogo, fotógrafo, professor, fotojornalista, gremista e ator. Foram três horas de conversa e assunto que não acabava mais. O irriquieto “Luiz, com z , Robinson Achutti” só pausava entre um trago de cigarro e outro: “o problema é que falo demais...”.
Entre seus alunos, do curso de Artes Visuais da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), é recorrente ouvir a expressão “ando meio achuttiano” em referência ao seu estilo clássico – e dos melhores – de fotografar.
“Sou sempre cobaia de mim mesmo”, brinca quando digo que ele será o primeiro entrevistado da coluna Faço Foto. Achutti tem uma trajetória bastante heterogênea. Começou como repórter fotográfico no Coojornal em Porto Alegre em 1978, mesmo ano em que fincou raízes na faculdade de Ciências Sociais onde fez mestrado e doutorado em antropologia. Em 1996 ficou conhecido como o “pai da fotoetnografia” quando propôs uma nova utilização das imagens no terreno das Ciências Humanas.
Aos 35 anos ingressou como professor do Instituto de Artes da UFRGS onde segue até hoje. Para ele não servem categorias como fotojornalista, antropólogo ou artista. É uma honra abrir a maratona de entrevistas em texto e vídeo da coluna com Achutti que aos 53 anos de idade comemora 35 de carreira.
Por Ana Mendes
Por Ana Mendes
Em 1978, Achutti se torna repórter fotográfico |
Achutti: Me chamo Luiz, com z , Robinson Achutti, tenho 53 anos, nasci em Porto Alegre e sou gremista. É isso? Petista no momento, quer dizer, sempre fui. Signo capricórnio, não que eu acredite nessas coisas... e cor predileta: azul.
NR: Quero que tu me fale um pouco sobre o início da tua história com a fotografia.
Isso remonta ao meu avô que era fotógrafo não profissional em Santa Maria [RS]. Ele nasceu no final do século 19. E ali com 20 anos ele já tinha câmera e fotografava tudo que acontecia em Santa Maria. Quando eu era pré-adolescente passava as férias de julho com ele e, às vezes, ia pro laboratório que ele mantinha nos fundos de casa.
Ele se escondia lá, um laboratóriozinho todo enjambrado. E não sei, mas pelos 15 anos decidi que queria fazer um curso de fotografia. Meu pai não ficou muito contente e minha mãe ficou mais ou menos contente. Daí fui no Foto Cine Clube fazer um curso. Em paralelo, em 1975 comecei a fazer teatro e a primeira peça que fiz foi o Matadouro. Fiz as fotos do cartaz da peça para mandar pra divulgação e fiquei nessa, teatro e fotografia.
NR: E o curso de Ciências Sociais?
Em 1978 eu passei no vestibular e entrei nas Ciências Sociais. No primeiro ano da faculdade recebi um convite para ir no Coojornal substituir um cara e ser freelancer. Daí passei o dia com medo, "vou não vou..." e a Ondina [Fachel Leal, antropóloga], minha colega, disse “Vai, deixa de ser bobo!”. Daí eu fui e ali começou minha escola de fotojornalismo.
NR: Antropologia e jornalismo começaram juntos?
Sim. Estou na faculdade de Ciências Sociais e não tinha descoberto a antropologia ainda. Eu questionava os professores: “sou fotógrafo e faço Ciências Socias. Como junto as duas coisas?” Te confesso que, em 1978, nem tinha ouvido falar em antropologia visual. Já tinha gente falando sobre, óbvio, mas eu não. Estava focado na sociologia, só depois é que me bandeei para a antropologia. Então, tudo nasceu junto, né?
De Homem pra Homem - Vila Dique, Porto Alegre/RS, 1995 |
NR: Como é a utilização de imagens pela antropologia?
Na antropologia tem um campo chamado antropologia visual que é mais forte, digamos assim, no cinema etnográfico. Na fotografia, tirando algumas utilizações, era um campo muito tímido e pouco aceito. E a Ondina foi a primeira a usar um capítulo só de fotos numa tese de mestrado.
Quando entrei no mestrado ela ia ser minha orientadora e me incentivou desde o início. Foi clareza dela: “tu tem que tratar a questão da narrativa porque usar foto em trabalho de antropologia todo mundo usa”. O Malinowski [considerado um dos fundadores da antropologia social e fundador da escola funcionalista] e o Levi-Strauss, em 1934, usaram nos Tristes Trópicos. E nesse meio tempo eu tive aquela coisa meio ovo de Colombo (até provem o contrário eu que inventei) e criei a fotoetnografia.
Chamo de fotoetnografia quando o “foco” da documentação fotográfica é mais no que pega o espectro da antropologia e com o jeito de olhar da antropologia. E o que é? É sempre tentar ir mais profundamente. Buscar razões que estão lá embaixo. Eu sempre cito Geertz: “a cultura é a teia de significado que sustenta uma sociedade” então, tu tem que se oferecer para essa teia, investiga-la e trazer dali a riqueza e a particularidade de determinado grupo social-humano.
Em 1996 fiz o mestrado narrando a realidade das separadoras de lixo da Vila Dique no Rio Grande do Sul, não só por palavras, mas também imagens. E fiz de forma autônoma, porque não queria que a imagem fosse uma ilustração do texto como sempre. Queria um momento para o texto e outro para a imagem.
São dois vieses. Hoje pode parecer meio óbvio, mas havia muita resistência nessa época em que defendi o mestrado. Ainda tem gente que não engole, mas não tem como pensar o mundo de hoje e atuar no mundo de hoje só com a palavra escrita. É um absurdo.
"Chamo de fotoetnografia quando o ´foco´ da documentação fotográfica é mais no que pega o espectro da antropologia e com o jeito de olhar da antropologia"
NR: Existe um discurso por traz de qualquer imagem. E parece que a fotoetnografia exacerba isso por colocar diversas fotografias em sequência, não é?
A frase que me irrita quando ouço é “ todo mundo vê o que quiser numa fotografia”. Dá até para discutir se ela é muito aberta, mas pega o parágrafo de um livro: tu escreve uma coisa e o cara lê outra? Qual é a garantia de que a palavra é entendida completa e precisamente e a imagem não? Um grupo de fotos associadas é diferente de uma foto sozinha. E outra é um grupo de fotos fotografadas e pensadas para serem usadas em grupo. Cada uma tem que se valer sozinha, mas a soma delas faz um todo que também tem que ser importante. Não é aleatório, é uma construção.
Como o texto é uma construção, o cinema é uma construção. Tu vai fazer teu trabalho de campo e anota num cantinho, "entrevista não sei quem". Tu chega em casa e constrói uma narrativa tentando convencer o cara que vai te ler que tu foi lá e viu tal coisa e que analisa assim o fenômeno cultural daquele meio.
NR: Acho bem interessante essa (des)construção de olhar vinda de um fotojornalista. Porque o jornalismo ultimamente trabalha com a utilização de uma foto e nada mais.
Acho que o fotojornalismo em função das grandes agências está ficando cada vez mais ilustrativo e menos descritivo. O tsunami que ocorreu no Japão, por exemplo, em vez de fazer a foto do tsunami, não, o cara faz uma foto piegas de uma boneca que sobrou lá. Só está ilustrando uma avalanche absurda que recuou, matou gente e tudo a sua volta, incluindo a boneca. O tsunami, em si, o texto conta.
De toda maneira, os jornais e revistas nunca tiveram muito espaço, então é da escola do fotojornalismo tentar resumir o assunto em uma ou duas fotos. Para começar, a capa é uma foto só e todo mundo pensa só em capa.
E é por isso que o jornalismo, às vezes, morre só nas aparências, por falta de tempo e de espaço. Pega só um clichê do que está rolando. E não estou falando em desonestidade e reacionarismo do jornal, que é mais grave ainda e tem muito, a gente sabe, falo em condições normais.
E aí vem toda a tradição da fotografia documental que é o sujeito que pode se dar ao luxo, ou porque cansou do jornalismo, ou porque é rico, ou porque vive franciscanamente, ou porque foi patrocinado e diz: “o sonho da minha vida é fazer uma super série, um ensaio enorme sobre a amazônia”.
Então o cara vai morar na amazônia ou vai cinco vezes para amazônia e só termina de fotografar quando acha que já fez tudo que tinha para fazer sobre o tema amazônia. Muitas vezes o fotógrafo documental não quer descobrir ou analisar uma coisa, ele quer esgotar um assunto interessante esteticamente, com o qual vai se mostrar um fotógrafo interessante para os outros. Ele traz um tesouro visual sobre um tema que elegeu.
Última Foto, R.F.F.S.A, Porto Alegre/RS, 1993 |
NR: Está criticando a fotografia documental?
Não, eu não estava querendo fazer crítica porque adoro e me acho um fotógrafo documental. Estou comparando ela com o fotojornalismo. Muitos jornalistas quando estão em férias vão fazer uma série de fotos de um tema que os interessa: carnaval, candomblé, futebol.
Aí sim, numa lógica de se dar tempo e não se limitar na quantidade de imagens. E é a fotografia documental que mais se aproxima da fotoetnografia Eu mesmo fiz trabalhos de cunho documental, como, por exemplo, segui a vida do Iberê Camargo durante um ano. Agora vou começar outro.
NR: Qual é o próximo trabalho?
Vou começar um projeto que faz 15 anos está na minha cabeça. É uma ação em nome da memória, mas dessa vez não é um personagem, é arquitetura. São as estações ferroviárias do Rio Grande do Sul que com a privatização estão todas maltratadas, quebradas. É um retrato do descaso, entendeu? É que como o Brasil é muito chique, muito moderno, ele não precisa de trem, acaba com o trem e fica só com gasolina e carro, pneu, estrada, asfalto e o que simbolizava o trem deixa saquearem, roubarem, em ruínas.
Tudo bem Porto Alegre e Santa Maria [ficarem sem], mas na época pré-internet o trem trazia o jornal, trazia parente, comida, né? Imagina a malha viária ruim numa cidadezinha pequena? Tudo que acontecia era via trem. E quando o trem cessa? Acabou o trem, ele não para mais lá, a cidade definha, o comércio acaba.
Então, deve ter restado nessas cidadezinhas, que não sei quais são ainda, uma memória, algum velho que ainda lembra como era no tempo do trem, a estação deve estar lá porque eles não deixam derrubar, mas eles vão deixando ficar de um jeito...
“Não tem como pensar o mundo de hoje e atuar nele só com a palavra escrita. É um absurdo”
NR: Outro dia olhando o teu facebook, vi que postou “vou sair depois da chuva, levar minha analógica para passear”. Sinto uma certa nostalgia em ti.
Fui para a França e voltei quatro anos depois com as minhas analógicas e me disseram: “olha meu, tu trata de comprar uma máquina digital, senão tu não consegue mais trabalho em lugar nenhum.” Eu vivia de freelancer, né? Teve fotógrafo que chegou a ameaçar largar a fotografia, eu não.
Mais tarde é que descobri os caras da minha geração que pegaram o digital e continuaram fotografando como [se fosse] analógica, ou seja, tentando resolver tudo na hora, não deixando para depois.
É menos tempo no photoshop e na analógica também, já que não vai reenquadrar depois no ampliador, né? Isso é uma escola, tu resolve a foto na hora de bater. Photoshop só dá uma arredondada.
Estive em Campinas dando uma oficina e conheci um gurizão, o Pedro David (tem um trabalho fantástico documental-arte, vale a pena ver) e para o meu espanto o cara me disse que “um monte de coisa que eu faço é analógico, faço 4x5"l. Ele gosta do mundo analógico e resolveu não se contentar com o digital. Fiquei pensando... Será que a gente não tá matando o analógico antes do analógico morrer? O Pedro David não. Eu me animei. O cara de 25 anos está mil vezes mais analógico do que eu.
Iberê Camargo, Porto Alegre/RS 1994 |
NR: Vou ler um trecho de um texto teu: “O mundo é álbum de facebook. Assim é e não o contrário. A lomografia trata-se de atirar sem apontar, anotem aí! A esmo...”. Tem muitos fotógrafos profissionais furiosos com este momento da fotografia onde todos se intitulam fotógrafos. Tu acha que se vulgarizou a fotografia?
Não é coisa de velho não. Só tenho achado que existe uma banalização. É tudo meio parecido ou tudo se vende como novidade e depois que encontra uma norminha acabou, tem que vir outra. Sociedade de consumo exacerbada é isso! Então tudo é uma fórmula.
O mundo da imagem está assim, tudo é em massa e é pra hoje. Amanhã já não vale mais. É só um durante que existe, não existe passado e o futuro ninguém está ligando. Até aí tudo bem, afinal ficar vivendo em função do futuro é meio trouxa. Só existe o durante e o que eu tô falando aqui amanhã ninguém sabe, ninguém viu. É um pouco na velocidade da atualização do facebook.
E nesse oba oba que é sociedade capitalista, tudo vai assim, tudo vale um monte agora e não vale nada daqui cinco minutos ou então vale o que tem embalagem e o que tem dentro ninguém tem tempo de ver.
A lomo começou como uma brincadeira e agora é um movimento mundial. É mais uma forma de sociabilidade e as pessoas se encontram e fotografam sem olhar, de qualquer jeito, quanto mais distorcido melhor.
Mas à luz disso, pense um fotógrafo que tem 35 anos de fotografia e que não consegue se fazer fake numa estética contemporânea porque não sabe (e porque não gosta) e que, às vezes, é preterido em nome de outros caras, mais novos, com menos tradição?
Já teve circunstâncias em que senti as pessoas me aposentando: “ah, vamos fazer a turminha dos contemporâneos, o Achutti e aquelas fotos dele meio caretas, meio documental...”
Tu lê toda hora curadores geniais de São Paulo e Rio fazendo artigos detonando a fotografia documental. Ela vai ser resgatada, talvez agora porque o campo da arte vai lá e vai assaltar a fotografia documental e redefiní-la com pitadas artísticas e vão dizer que foram eles que inventaram, assim como eles fizeram com a fotografia como um todo.
Os fotógrafos faziam fotografia, aí com a crise da pintura (estou fazendo uma generalização, né?) vários artistas foram para a fotografia, adotaram como meio e técnica e reconceituaram a fotografia, e vieram com a tal foto arte, né? É como diz o francês André Rouillé “uma coisa é fotografia dos artistas, outra coisa é a arte dos fotógrafos”.
Achutti - A arte dos fotógrafos from Naíla Andrade Sarkar on Vimeo.
Trabalhos mais importantes:
1986 – Cuba
1988 – Nicarágua, as cores de uma luta
1988 – Fotos a cores de um país dito cinzento [sobre Alemanha Socialista]
1991 – Morte da Alemanha Socialista
1994 – Iberê Camargo, homenagem
2004 – Berlim Oriental
2005 – Um olhar sobre a Biblioteca Nacional da França
2008 – Palácio Piratini
Livros:
1997 – Fotoetnografia, um estudo sobre cotidiano, lixo e trabalho
1997 – Luiz Eduardo Robinson Achutti, fotografias
2004 – Iberê Camargo por Achutti
2004 – Fotoetnografia da Biblioteca Jardim
2008 – A matéria encantada, Xico Stockinger por Achutti
Ana Mendes, 26 anos, gaúcha de nascimento, errante de coração e profissão. Fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Trabalha como fotojornalista freelancer entre Brasília e Porto Alegre. A coluna Faço Foto, aqui no NR, debate o ofício de fotógrafos que trabalham com a temática social em fotos de caráter documental, jornalístico e artístico.
9 comentários:
Ana e equipe, muito bom ! Obrigado pelo espaço que me deram.
Assunto bem editado, perguntas inteligentes (demonstram que a entrevistadora é pesquisadora do assunto - dá pra perceber a posição política dela em relação ao tema). As respostas aprofundam um debate muito interessante e necessário. Ping-pong reflexivo, inspirador. A única falha foi não explicar o que é o Coojornal (o que ajudaria no perfil do Achutti). Belo trabalho. Belo Achutti. Cristina Ávila
Ótimo trabalho, Ana. A entrevista está ótima... aprofundou muito bem o assunto, tratou o tema com muita clareza; e ao Achutti, só parabenizações também.
Ótimo trabalho à equipe toda!
Abraços, Ana Flor
Ana, que bonito trabalho!
Parabéns aos realizadores!
Abração,
Julia Aguiar
Parabéns, Ana e equipe! Adorei!
Kátia Arruda
Parabéns à equipe que produziu e realizou este trabalho.Conheci um pouco mais deste "artista" chamado Achutti. A autenticidade é uma das suas inúmeras qualidades e ela está muito bem revelada no conjunto da sua obra.
Sandra Arruda
Obrigado a todos pelos comentários e sugestões. Estou muito contente com leitores tão colaborativos! Meu e-mail de contato é: anagrao@gmail.com
Bela Ana, parabéns pela tua linda caminhada na fotografia, pela esclarecedora conversa com Luiz Achutti, que não conheço pessoalmente, mas respeito e admiro seu trabalho, e pelo movimento que tens feito pelas artes visuais. Abração
Uma excelente aula de fotoantropoligiadocumental do Mestre Achutti
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