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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Neguinho, o pistoleiro

por Maria Shirts   ilustração Ligia Morresi

“Oi… Marcio?”

“Isso!”

“Boa noite!” saúdo o taxista do apllicativo, entrando no carro.

“Posso te dar uma dica?”.

“Pode, claro”, respondi, um pouco apreensiva.

“Nunca pergunte o nome do taxista antes de entrar. Sempre diga ‘você veio buscar quem?’. Porque o cara pode tá agindo de má fé e vai falar que é o taxista quando ele não é, sabe”.

“Ahn…” me limitei a grunhir, um pouco perplexa com a paranoia do motorista.

“Hoje em dia a gente nunca sabe moça. E aí, vamo pra onde?”.

“Vamo lá pra Vila Romana. Acho que você pode ir aqui por dentro, pela Vanderlei, sabe?”.

“Ah esse caminho né bom não. Por dentro é escuro, vai que uma moto segue a gente…”

“Bom, moço, então faz o caminho que o senhor quiser”.

“To falando pro nosso bem senhora. Hoje em dia tem um monte de motoqueiro ladrão. Você nunca foi assaltada por um motoqueiro?”.

“Já….” respondi, agora já um tanto arrependida.

“Pois então. Esses dias um colega meu matou um filha da puta desses”.

“Como assim moço? Que horror”.

“Foi a reação dele ué”.

“Mas ele não ficou em choque de matar uma pessoa?”

“Ficou. Mas é o que dizem né, depois do primeiro…”

“Hein?”

“Sabe como é moça. Quem mata um pega gosto”.

“Na verdade não, não sei não”.

“O meu amigo neguinho que falava isso. Trabalhou pro meu pai lá na Mooca, quando a família tinha negócio no bairro. Na verdade ele começou a dormir lá porque era meio desabrigado, não tinha casa, mas era boa gente sabe. Aí meio que cuidava da loja, tipo vigia, sabe? Um dia entrô um cara lá pa roubar o caixa e assustou, de certo, quando viu o neguinho. Diz que o ladrão partiu pra cima, era ele ou o cara”.

“Eu hein”.

“Pois é… aí o neguinho matou o bandido na facada. Vomitou a noite inteira, ficou mal, disse que nunca mais ia conseguir dormir. Precisou remédio pra derrubar o hômi. E olha que ele era grande. Ma nunca tinha relado o dedo em ninguém sabe”.

“Sei…”

“Fia, eu sei que o hômi pegou um gosto pela coisa. Ma um gosto. Que depois disso ele virou o maior matador de aluguel que a Mooca já viu”. “Como assim moço?”.

“Assim ué. Matava com prazer. Tinha vez que ele matava sem receber, quando os cara assaltava loja de amigo dele”.

“Geeente… que horrível”.

“Tem quem goste né”.

“Tem?”

“Ô…”

“Mas e aí moço, que fim deu o neguinho?”

“Morreu”.

“Do que?”

“Matador de aluguel. Encomendaram a morte dele”.

“….”

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Maria Shirts, internacionalista e pedestrianista, mantém a coluna Transeunte Urbana. Ilustração Ligia Morresi, especial para o texto

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Ínfimo glossário contemporâneo 3


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Aborto proibido – Tema de interesse obsessivo e bandeira política dos religiosos fundamentalistas, mais importante que o racismo, a miséria e a injustiça; e as mulheres que se lasquem!

Aécio – Nem antes, nem depois; Never!

Água – substância essencial para a existência e a manutenção da vida, que anda sumida, no estado mais populoso do país; será este o início de vigorosos movimentos migratórios de paulistas para Bahia, Pernambuco, Ceará e Paraíba?

Aranha – goleiro negro alvo de ofensas racistas, que desobedece Pelé, exige respeito e não volta para a casinha, sendo, portanto, tratado como encrenqueiro e mal humorado

Argentina – país vizinho que não cansa de surpreender com sua retórica trágica e sua capacidade de submergir e emergir, exercidas sem trégua

Arruda – erva daninha corrosiva; precisa ser urgente e definitivamente erradicada

Beijinho no ombro – hino das peruas poderosas cheias de atitude – vai encarar?

Casamento – palavra que define a união de duas pessoas: homem com mulher, mulher com mulher, homem com homem e o que mais se inventar; há quem insista numa reserva de mercado para a categoria “homem com mulher”, mas reservas de mercado são sempre desastrosas; segundo o oráculo global Dráuzio Varela, quem se incomodar com as variações deve consultar um psiquiatra

Ciclovia – via para o trânsito exclusivo de bicicletas, muito apreciada por paulistanos em Londres e Amsterdã

Classe média – em forte crescimento no país, apesar do ódio que lhe dedicam os ideólogos do PT; a turma mais antiga tem reclamado da chegada dos pretos, mas acaba de receber o baita reforço de Eike Batista, recebido de braços abertos

Desocupação – sórdida atividade de, por meio da violência extrema, enxotar moradores provisórios informais e recuperar a posse formal de edifícios abandonados, para que continuem abandonados; exercida com sangue nos olhos

Dilma – candidata que, ao ser sabatinada e entrevistada, gosta de responder e argumentar – onde já se viu?

Distrito Federal – unidade da federação que detém altos índices de renda e escolaridade, mas onde elegemos cada estrupício, que nem te conto

Ebola – mais um flagelo africano, com potencial devastador, que já matou milhares de nativos; possibilidades de cura começaram a surgir após a contaminação de meia dúzia de caucasianos

Eduardo Jorge – candidato a Presidente que fez a viagem de volta de Woodstock a pé; acabou de chegar, trazendo novidades incríveis

Estado Islâmico – incompreensível para meus minguados neurônios

Família – (ai que preguiça!) célula-mãe, célula-pai, célula-mães, célula-pais da sociedade; tem aí um pessoalzinho muito oferecido, preocupado em proteger e cuidar da sua, da minha e de todas, mas, de minha parte, dispenso a ajuda

Fome – privação alimentar; o Brasil livrou-se dela, mas ninguém deu importância, exceto quem a conheceu bem

Fundamentalismo – opção religiosa baseada no ódio e no desprezo pela humanidade

Horário eleitoral – tortura cotidiana, francamente patética, que dá uma ótima ideia da indigência do atual sistema político

Jandira dos Santos – apenas uma vítima a mais dos abortos clandestinos; ninguém se importa; esta tem nome e sobrenome

Lésbicas, gays e demais letrinhas – grupo populacional com incontrolável poder de suscitar a fantasia e a libido de religiosos fundamentalistas machos pra caramba

Luciana – gaúcha faca-na-bota, que enquadra entrevistadores obtusos e concorrentes cínicos

Marinar – ato de temperar o eleitorado com palavrório, incertezas e lágrimas

Mobilidade urbana – sonho dos moradores das nossas metrópoles, mas ai de quem ousar inverter a lógica atual

Pastor – profissional extinto no ramo pecuário por obsolescência da função; título utilizado por líderes de congregações evangélicas; mais recentemente, adorno incorporado ao nome próprio para fins eleitorais

Petrobras – petróleo brasileiro usado para incontáveis e inconfessáveis fins

Racismo – não existe no Brasil, certo?

Rio de Janeiro – cidade onde o nosso melhor e o nosso pior se encontram; uma hora dessas, um dos lados vai ganhar o embate; tremo quando penso nisto

Rússia – país dos czares, do caviar e da vodka; quando esses três elementos se misturam, sobra pra toda a vizinhança

Sexo e as Negas – inacreditável e imperdoável pisada na bola

Sincericídio – ser sincero/a e subir na frigideira

Sutiã – peça de roupa íntima feminina que sustenta e acomoda os seios; nos anos setenta, foi alvo da fúria feminista, mas não perdeu a pose; atualmente, a modalidade “com bojo” é denunciada como “propaganda enganosa” pelo nobre deputado federal Gilmar Fernandes, que, não tendo encontrado nada mais relevante em que ocupar o mandato, propõe a sua proibição

Ucrânia – país de frio inclemente e Rússia fungando no cangote; sai dessa!

Uruguai – o menor dos países vizinhos, onde o casamento homossexual, o aborto e a maconha estão legalizados; seu Presidente recebe pedidos de visto de residência no sítio onde cultiva brócolis e cria galinhas poedeiras, pitando cigarros de fumo de rolo feitos à mão

Venezuela – o bicho-papão da vez: “se você não votar no DEM ou no PSBD, mamãe vai te mandar pra Venezuela!”

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Discoteca de músico: Cesinha Pivetta

por Marcos Grinspum Ferraz   Ilustração de Victor Zalma*

Um defensor engajado do samba tradicional e da cultura popular. É assim o Cesinha Pivetta (no retrato de Marcos Hermes), jovem cantor e compositor paulistano que lançou este ano seu primeiro disco solo, “Nossa Bandeira”, e que desde 2007 é um dos cabeças do Samba do Bule – grupo que se reúne para pesquisar e tocar sambas, e que promove mensalmente uma concorrida roda no Teatro Popular União e Olho Vivo, no Bom Retiro (São Paulo). Quem já assistiu de perto o Bule ou um show do Cesinha – e quem ainda não, deveria – percebe logo sua paixão pela música de raiz brasileira. E assim é feito seu samba, com intensidade.

Seguindo com a proposta de reunir nesta “Discoteca de Músico” artistas dos mais variados estilos, convidei o Pivetta, que conheço desde os tempos de colégio, para fazer aqui as escolhas de discos e clipes que marcaram sua vida. Depois de Tim Bernardes, Rashid, Bruna Caram, Gabriel Basile e Flora Poppovic, ele é o sexto entrevistado da série, que mensalmente traz um artista respondendo às mesmas cinco questões. A ideia é ter, no fim do processo, uma espécie de discoteca/videoteca virtual feita pelos músicos, voltada para o público que quer conhecer mais os artistas ou mesmo que busca sugestões do que ver e ouvir.

E por ser tão mais ligado às linguagens musicais tradicionais, Cesinha subverteu um pouco as regras do jogo aqui na coluna – na parte audiovisual – o que foi muito bem-vindo. Como bom bamba, se saiu bem do impasse de não saber dizer quais os videoclipes que o marcaram positivamente durante a vida. E, ao meu ver, o bom é saber que há de tudo na nova geração da música brasileira: quem faça rock, rap, pop, reggae, música eletrônica, funk, quem misture tudo e também quem se dedique a não deixar a chama do samba tradicional morrer. Vale a pena conhecer o som de Cesinha Pivetta, do Samba do Bule, de Lello di Sarno, do Nervos de Aço e tantos outros.

Um disco brasileiro que marcou sua formação musical

“Partido em 5”. Esse é o registro puro de uma roda de samba. Marcou profundamente pra mim pois ouvi ali o que diversas vezes havia vivido perambulando por aí. Velha, Casquinha, Wilson Moreira, Anézio e Joãozinho da Pecadora contaram com a participação de mestre Candeia e não utilizam recurso especial nenhum para a gravação, ao vivo, de uma sequência de sambas de partido-alto que fui reconhecendo e nunca soube de onde vinham. Neste disco figuram também Luna e Marçal, dois monstros na cozinha que são referência para qualquer amante de batucada como eu.

Um disco gringo que marcou sua formação musical

“Bob Marley and the Wailers, Live” – ‘Nossa, isso é legal também!’. Essa foi minha primeira reação ao escutar esse disco. Sempre fui muito restrito ao samba e em certo momento também ao próprio pagodão, mas em alguns momentos me deixei levar pela música gringa por influência dos colegas, primos... Em casa jazz e blues já tinham o gosto de minha mãe, e sempre passou legal pelos meus ouvidos, fazendo também parte da minha formação. Mas foi quando ouvi Bob que descobri algo que me fizesse querer entender melhor a língua inglesa, que sempre rejeitei. Vi ali um sujeito parecido com bambas do nosso samba, falando e mostrando sua simplicidade e quem sabe, daí, a transformação, a busca de um mundo mais justo.

Um disco lançado nos últimos anos que te marcou profundamente

“Lamento do Samba”, do Paulo César Pinheiro. Este disco me fez ver o samba de uma maneira diferente. Estes versos para mim se tornaram mantras: “O segredo da força do samba/ É a vivência do seu fundamento/ O que faz ser eterno um bom samba/ É a beleza que tem seu lamento.” O samba “Nomes de Favela”, que só conheci com o lançamento deste disco, em 2003, considero um verdadeiro hino.

Um videoclipe que marcou sua formação

“Brincadeira de Criança”, do Molejo. Falar de clipe pra mim é muito difícil, pois nunca tive o costume de acompanhar MTV, etc. Mas lembro bem deste clipe, ele me marcou, talvez negativamente (tinha pesadelos) mas duvido que alguém não se lembre!



Um videoclipe lançado nos últimos anos que te marcou profundamente

Olha....impossível eu conseguir um clipe que tenha me marcado profundamente na última década... não lembro nem de um que tenha visto... Então resolvi inverter tudo aqui sem saber se vale ou não. Vai um curta metragem bem mais velho que a última década sobre partido alto.



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Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo mantém a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura, música e afins. llustração de Victor Zalma, especial para a série

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Vício de linguagem

por Celso Vicenzi*

Se você é do tipo que encara de frente os desafios, que presta atenção em pequenos detalhes, planeja antecipadamente, gosta de fazer planos para o futuro, sem adiar para depois, costuma seguir a grande maioria e não vê razão para preocupar-se, leia novamente a frase, agora com mais atenção, e repare como costumamos ser redundantes no dia a dia, falando ou escrevendo. Raros são aqueles capazes de manter uma comunicação, principalmente informal, sem cometer nenhum deslize com os vícios de linguagem, como as redundâncias, que são repetições inúteis, porque nada acrescentam ao que a palavra já expressa.

Quem encara, só pode fazê-lo de frente. Detalhes são sempre pequenos, todo planejamento é antecipado e ninguém faz planos para o presente ou passado – sempre para o futuro. Da mesma forma, quem adia algo, é para depois. Maioria nunca pode ser pequena, assim como minoria nunca será grande, logo, os reforços (grande, pequena) são dispensáveis.

O que não se deve dispensar é o uso correto da linguagem, que é a roupagem de toda a comunicação oral e escrita. Também não há necessidade de tornar-se obsessivo em relação ao uso culto da língua, salvo se você for um profissional que a utiliza para ganhar o pão de cada dia, como, por exemplo, um professor de português, um escritor, um jornalista.

Por preguiça, por (mau) hábito ou desconhecimento, certo é que não passamos incólumes, vez ou outra, de escorregar em uma redundância. É fácil lembrar das óbvias, como subir para cima, descer para baixo ou recuar para trás.

A redundância é um vício de linguagem, enquanto o pleonasmo – parecido – é uma figura de linguagem, utilizada para reforçar e dar expressividade à oração. O recurso é muito utilizado em letras de músicas, algumas antológicas, como por exemplo, do rei Roberto Carlos (“Detalhes tão pequenos de nós dois...”), ou de Jorge Benjor (“Chove chuva...”). E também entre grandes escritores e poetas. Vinicius de Moraes, em um de seus poemas mais famosos, o Soneto de Fidelidade, escreveu: “E rir meu riso...”.

Mas, na linguagem do dia a dia, melhor tomar cuidado para não piorar mais, reincidir de novo, abusar demais, porque, regra geral, não é de bom tom repetir outra vez o que é desnecessário.

Sei que é difícil, porque até mesmo em jornais, revistas, na tevê e no rádio ocorre cotidianamente. Ou você nunca leu e ouviu que há um consenso geral sobre a descoberta de novos indícios de uma quantia de dinheiro recebida em mãos numa negociata suja em que o principal protagonista é figura por demais conhecida de todos?

É fato verídico em boa parte do Brasil. E agora que nova eleição se aproxima e você vai comparecer em pessoa à urna, mostre que está atento(a). Às redundâncias e ao futuro do país.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Retrato do Brasil pós-racial


por Cidinha da Silva*

Estranho país era aquele! Havia um rei eleito pelo esporte mais popular do reino que não defendia seu povo. Ao contrário, quando um membro do povo era atacado, estranhamente, ele argumentava com olhos marejados, que ataques deveriam ser ignorados. Falar dos problemas e exigir justiça não traria nada de bom, apenas amplificaria os problemas e os tornaria mais insuportáveis. Bom mesmo era silenciar e seguir como burro de cabeça baixa e olhos vendados.

Naquele país, técnico de futebol chamava a não-aceitação do racismo institucional nas arquibancadas dos jogos de “esparrela” e "armação" do jogador agredido. Denunciante virava algoz e era perseguido pela imprensa. Denunciada tornava-se celebridade com direito a participação em programas de auditório com cabelo repaginado, acolhimento dos profissionais do entretenimento televisivo e bastante tempo para explicar e justificar seu crime, além de conquistar simpatia e cumplicidade do público ávido para inocentá-la e para deixar as coisas como sempre foram. Estudava-se um convite para que a jovem denunciada por atos racistas colaborasse no roteiro de novos episódios da série televisiva “As negras como as vemos.”

Naquelas terras de pretos, durante o passado escravista, uns poucos brancos protegiam os negros rebelados, algumas vezes por compromisso com o humano, noutras por interesses econômicos. Agora os tempos eram outros. Os negros herdeiros dos negreiros, posicionados em universidades e outros lugares sociais de destaque miravam os fatos midiáticos com o objetivo de projetar seus negócios, de enraizá-los no seio da elite, de fazer reverberar a marca da comercialização do ensino em corações e mentes.

Assim, na contramão da história escrita pelos vencidos, os herdeiros do imaginário negreiro aliavam-se aos herdeiros dos vencedores do passado, cuidando da retaguarda enquanto os generais se recompunham e se armavam. Triste país, aquele.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum. Ilustração: Djanira da Mota e Silva, sem título, 1959. Óleo/tela. Foto: Pedro Oswaldo Cruz

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Calangada


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

 Chega email da amiga que está passando o mês em Manaus. Diz que faz um calor de rachar, mas lá a suadeira é tanta que fica impossível passar qualquer creme na pele – quem precisa deles, com aquela umidade toda? A cútis agradece, linda e reluzente.

A inveja me consome. Enquanto ela se desfaz em água amazônica, nós aqui vamos sendo espremidos numa centrífuga, até liberarmos a última gota de líquido. Nem quero saber o que vão fazer com o nosso bagaço. Lábios, mãos e pés são as almas de Caetano esticadas no curtume, não importa quantas vezes por dia sejam hidratadas com cremes e loções.

Quando desembarquei na capital da República, quatro décadas atrás, achei muito interessante que todo mundo usava óculos escuros, coisa que lá no interior era chique no úrtimo, reservada para ricos e autoridades. Logo me dei conta de que sem eles seria impossível manter os olhos abertos neste excesso de céu arreganhado, com o tal astro-rei-sol reinando absoluto, como devem reinar os reis e rainhas, e só eles, por mais inspirador que seja o cargo de Presidente (Dilma Bolada, Soberana das Américas, não vale).

Todo ano tem o mês de setembro, com a mesma ladainha. Eu até já falei disto aqui, e os candangos se identificaram muito. Mas candangos não são calangos.

Seres admiráveis são os calangos, verdadeiros senhores deste território. Não se impressionam com nada disto. Pedras e calçadas escaldantes, terra solta fervente, grama, árvores e arbustos esturricados e eles lá, correndo de um lado pro outro, como quem tem a sexta-feira toda comprometida com visitas, reuniões, almoço de trabalho, compras e chopp no fim da tarde. Acabo de surpreender uma espécie de assembleia da categoria, num estacionamento próximo. Era hora do “coffee break” lá deles. Eu vinha caminhando, tentando aproveitar cada centímetro de sombra, quando vários cruzaram a calçada chispando, rumo ao asfalto, e depois em grupo para determinado ponto no meio da vegetação seca. Eram cinco, se não me engano.

Não estavam nem aí para a minha bisbilhotice. Esperaram pacientemente que eu desistisse de observá-los. Assim que me afastei, retomaram a correria frenética. Seria um comício eleitoral o que estavam organizando? Uma carreata? Ou uma reunião de calangos com candidatos, para se conhecerem melhor e apresentarem suas reivindicações específicas? Será algum deles candidato, entre os milhares de candangos que buscam assento na Câmara Distrital? Sei não. Só sei que, nas atuais circunstâncias de temperatura e umidade, devem ser as únicas criaturas energizadas dessas paragens. E nem sinal de chuva.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hippie de BR

por Carlos Conte   ilustração Marcelo Martins Ferreira

Nas últimas férias, dei carona para um sujeito chamado Gnomo. Gnomo é seu nome de estrada. Três anos na estrada, pegando carona e caminhando pelas BRs com sua pequena mochila e seu mostruário hippie feito de pano e canos de PVC.

– Valeu pela carona, brother! – tirou do próprio pulso uma pulseira de linha de bordado adornada com uma pedra azul e me deu. – Presentinho do Gnomo pra lembrar do brother da estrada!

Agradeci, amarrei no pulso e acelerei rumo ao sul. Saímos de Salvador com o sol nascendo. Nosso destino: Vitória.

– Vou terminar um Filtro dos Sonhos antes de chegar em Vitória. Peguei umas penas de arara no zoológico de Recife. O guardinha não queria deixar. Mas eu voltei lá depois quando ele não tava olhando. Vou fazer um Filtro dos Sonhos pra você com essas penas de arara. Curte?

Mesmo sem saber o que era um Filtro dos Sonhos, aceitei. Era a maneira de me retribuir, já que estava completamente liso. Penas de arara colhidas do chão não afetaram minha consciência ecológica a ponto de recusar. “Se ele tivesse arrancado da arara, recusaria”, pensei. Mas Gnomo era um sujeito pacífico. Sua matéria-prima vem da coleta. Na primeira parada, enquanto eu abastecia o carro e tomava um café, ele se ocupou catando coisas no mato atrás do posto de gasolina. Voltou com uma sacola cheia de materiais:

– Olha só, brother, achei umas coisinhas legais: pedra, semente, corda, arame, cipó... Seu Filtro dos Sonhos vai ficar massa: vai ser de galho de chorão! As pessoas jogam muita coisa boa no lixo. O que eles jogam fora eu uso na minha arte – orgulhou-se.

Encontrar Gnomo me fez lembrar de uma andarilha que pedia carona na viagem de ida. Fiquei mal por não ter dado carona pra ela. A mais de 100km/h, não deu tempo. Pedir carona exige estratégia e ela estava no lugar errado! Gnomo me explicou detalhadamente: tem que escolher um trecho de velocidade reduzida, de preferência trevo ou ponto de lombadas, e é preciso que o acostamento seja largo e longo, na verdade um recuo é o ideal para o carro conseguir desviar-se da pista sem provocar acidente.

– Você foi um anjo no meu caminho, Carlão! Carona de 2 dias não é toda hora que aparece!

Fiz questão de dar carona para ele porque, de certo modo, me sentia em débito. Quando vi a menina, já tinha passado por ela e logo atrás de mim vinham carros e carretas a toda velocidade... Acostamento estreito. Não teve jeito. Segui viagem. Agora era a vez de Gnomo e eu precisava dar essa carona, como se minha viagem ganhasse muito mais sentido com um estradeiro de verdade ao meu lado. Faz tempo que sou fascinado pela vida na estrada: desde que li On the Road pela primeira vez, Dean e Sal cruzando os Estados Unidos com uma mochila nas costas, ou o relato zen de Os Vagabundos Iluminados; desde que ouvi falar dos sadhus, monges andarilhos indianos que vivem de doações, de sol e de água; ou o relato de Che Guevara pela América Latina explorada e miserável; desde então, a viagem me fascina e não me canso de ir atrás de outros relatos de viagem: a desobediência civil de Thoureau, as andanças de Rousseau pelos bosques suburbanos, as perambulações opiáceas de De Quincey pela Inglaterra. E Gnomo, de certa forma, era a realização desse modo de vida (pelo menos no que diz respeito à simplicidade e ao nomadismo). Gnomo, meu copiloto. Mais de mil quilômetros ao lado do Vagabundo Solitário Gnomo, que sempre que encontrava oportunidade exaltava as qualidades de sua arte. “Arte hippie”, ele dizia.

Mas o encantamento durou pouco. Romantismo. Idealização. Os livros também falam do “lado B” da vida andarilha. Os beats nunca esconderam isso. A vida na estrada é dura, como se pode imaginar, e Gnomo estava definitivamente na pior. Em vários sentidos. Pra começar, estava duro. Convidei-o para almoçar: ele fez um prato gigantesco – “vai saber quando vou almoçar de novo?”. Contou-me seus infortúnios: a ex-mulher voltou para o Chile e levou o cachorro; a única filha está em Pernambuco sendo sustentada pelos avós; as vendas andam mal... Em Salvador, vendeu pouco e bebeu muito. “É a fase...”, lamentou-se. Agora precisava encontrar uns amigos em Belo Horizonte: fixar-se por um tempo, trabalhar bastante, juntar mercadoria e só então seguir viagem de novo. Por ora, seu mostruário hippie tinha pouco a oferecer aos fregueses, algumas pulseiras e brincos... Era preciso fazer uma parada estratégica até a temporada de fim de ano, quando as praias se enchem de gringos e paulistas. Mas enquanto dezembro não vem, trabalhar, esperar... Gnomo não escondia sua aflição. Ele sabia que estava na pior.

Em Teixeira de Freitas, pequena cidade perto da divisa com o Espírito Santo, paramos para dormir. Gnomo já havia anunciado que deixaria suas coisas no carro e iria se ajeitar na rodoviária, o lugar mais iluminado e seguro da cidade. Para ele, numa boa. Já estava acostumado a fazer isso. Mas eu não conseguiria dormir tranquilo pensando em Gnomo na rodoviária. Afinal de contas, éramos parceiros de viagem e aquilo não estava certo. Paguei 20 reais pelo pernoite dele, assim como paguei a carne de sol do jantar e a cerveja. Gnomo se encostava em mim sem nenhum grilo, resignado. Se não fosse em mim, seria em outro. Se não fosse em ninguém, seria pedindo, como um sadhu indiano. Mendigando. Virei umas pingas e fui me deitar, pensando em Gnomo. Pensava também como seria fazer como ele: escapar de tudo e viver na estrada, dormindo ao relento, conhecendo lugares novos, vivendo da natureza e da bondade dos outros. Mas havia as dificuldades, os “perreios”... E cheguei à conclusão de que Gnomo vivia num “perreio” eterno, embora ele não se importasse muito com isso. Talvez ele se importasse um pouco. Não sei... talvez eu me importasse muito mais do que ele.

Dia seguinte, cruzamos a fronteira de estados, Gnomo foi dormindo quase todo o caminho embalado pelo som de Gil: “O sonho acabou/quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”.

O tempo na estrada vai rápido. 100km ficam cada vez mais curtos. “É logo ali...”, dizem os caminhoneiros, “É logo ali, só mais uns 100km...”. Para falar com caminhoneiro, é preciso se referir a grandes distâncias. Sempre que falava que tinha saído de São Paulo dias atrás, percebia que me olhavam com alguma consideração, porque sabem que essas BRs são sofridas pra cacete, ainda mais pra um carro de passeio. O lema dos carreteiros é “Veículo leve que saia da frente!”. Se não estiver alerta, eles passam por cima mesmo.

Entramos em Vitória quando anoitecia. Parei em frente à praia e anunciei a ele o fim da carona.

– Agora vou pra catedral, onde os brothers se juntam pra vender. Valeu pela carona, Carlão! Foi foda! Te agradeço de coração...

Antes de ir, me pediu umas moedas para o ônibus, pegou suas coisas e seguiu adiante, enquanto fiquei encostado no carro olhando para aquela imagem pequena, cheia de dreads que foi ficando cada vez mais escura e pequena até desaparecer no meio do tráfego. Dia seguinte, tentaria entrar clandestinamente no trem que vai pra Belo Horizonte. Mais um dia de viagem, nessa viagem tão incerta e fugidia que era o seu próprio modo de vida. Fiquei triste e admirado vendo Gnomo partir. Só mais tarde me dei conta de que sua sacola de “materiais” de coleta tinha ficado no banco traseiro. E o Filtro dos Sonhos prometido, feito de galho de chorão e penas de arara, vai ficar para a próxima.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Fim das contas

por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

Para que tanto investimento na prolongação da vida, se ninguém quer ficar velho? É só uma provocação... Graças aos avanços na ciência e no conhecimento sobre como funcionam nossos corpos e mentes, estamos vivendo um momento de grande virada na perspectiva de tempo que nos cabe viver. E me parece justo querermos ser velhinhos saudáveis, lúcidos e lépidos, capazes de aproveitar tudo que a vida pode oferecer até o momento final – porque este vai chegar mesmo, não tem jeito. A questão é que envelhecer tem um preço, frequentemente alto, como tenho observado, pois continua sendo impossível determinar o futuro, em qualquer etapa da vida.

Bem, mas no ponto em que me encontro, da maturidade, ou da meia-idade, como já quase nem se diz, posso olhar pra trás com uma distância que me coloca a infância e a juventude em perspectiva. À parte o espelho, que, como sabemos, insiste em refletir o que ele mesmo decide sobre a nossa aparência e os nossos corpos, esse distanciamento me conta coisas muito interessantes. A primeira e mais importante delas, que me parece um consenso entre cinquentões, é que eu teria me poupado muita ansiedade e energia emocional se, aos vinte e cinco anos, tivesse podido desfrutar da serenidade e da ironia de agora. Ficamos todos querendo, né, inclusive porque a outra coisa que vem com o tempo é a constatação de que cada momento vivido teve a sua função naquilo que somos hoje.

As contas que fazíamos são outro dado importante. Lembra quando gastávamos horas de sono calculando quantos centímetros de afeto havíamos recebido em troca dos metros oferecidos? Ou quando tínhamos a expectativa de receber quarenta quilos de atenção da família e só entregavam quinze? Ou nos sentíamos em falta com alguém por não suportar mais do que dez minutos ouvindo sua conversa, quando a pessoa havia nos aturado horas a fio contando as peripécias das férias? Ou quando esperávamos afagos e reverências em troca do investimento material e afetivo em alguém? Ou quando contávamos as horas de espera por um encontro amoroso, para depois mandar a fatura? E como nos achávamos maravilhosos quando as contas eram positivas a nosso favor? E como doía cada vez que constatávamos prejuízo na contabilidade?

Quanto a mim, acabou, já deu. Zerei a planilha da contabilidade afetiva, por desistência de lidar com esses cálculos chatos, difíceis, sofridos e inúteis, que não dependem só de mim e me consumiam uma energia preciosa. Tudo o que entra passa a ser lucro. E não porque eu seja uma flor de pessoa, mas porque quero me poupar aborrecimentos. Quem sabe assim, se eu chegar a ficar velhinha – saudável, lúcida e lépida, por favor! –, possa rir demais e lamentar de menos.

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

De pássaros e mortes

1964 + 50
Histórias de pessoas de carne e osso  e também de personagens de papel  que viveram na roda viva da ditadura militar. Episódios quinzenais toda quinta-feira.

 (Episódio 17)

 por Fernanda Pompeu   ilustração Fernando Carvall

Antes de ser uma designer internacional de moda, ela foi costureira  dessas que se debruçam sobre a máquina Singer e tratam agulha e linha com dedos de anjo. Antes de abrir uma loja de roupas no badalado Ipanema carioca, ela nasceu em Curvelo  uma das portas de entrada do sertão mineiro. Antes de se tornar persona non grata para os militares da ditadura, ela era a mãe de três filhos  duas moças e um rapaz.

O itinerário de sucesso de Zuzu Angel se tornou trágico quando, um ano depois do desaparecimento de seu filho Stuart Angel, ela leu uma carta escrita pelo preso político Alex Polari. Nela, Alex conta ter testemunhado o assassinato do jovem de 26 anos nas dependências do Cisa  Centro de Informação da Aeronáutica, na Cidade Maravilhosa. Angel era quadro de direção do MR-8, um dos vários pequenos grupos de resistência armada.

Diz a carta: "Consegui com muito esforço olhar pela janela que ficava a uns dois metros do chão e me deparei com algo difícil de esquecer: junto a um sem-número de torturadores, oficiais e soldados, Stuart, já com a pele semiesfolada, era arrastado de um lado para outro no pátio, amarrado a uma viatura e de quando em quando obrigado, com a boca quase colada a uma descarga aberta, a aspirar gases tóxicos que eram expelidos."

A partir da leitura da carta, Zuzu Angel se tornará incansável e irredutível na denúncia do assassinato do filho e na procura de seu corpo. Enterrar ou cremar corpos amados é direito básico e inalienável do ser humano. Somos  até aonde eu sei  a única espécie a fazer isso. Trata-se de um ritual de homenagem e encerramento.

Que digam, com lágrimas e propriedade, familiares e amigos dos desaparecidos na ditadura militar e nas favelas e periferias de hoje. Mães de Stuarts e Silvas se igualdam no pranto. Zuzu Angel (1923 1976) se tornou símbolo da mãe à procura do corpo do filho por tenacidade própria, mas também por suas circunstâncias. Já explicou o filósofo espanhol Ortega y Gasset: "Eu sou eu e minhas circunstâncias."

Inteligente e bem relacionada, ela soube tirar partido da dupla nacionalidade do filho (brasileira e americana), chegando a entregar um dossiê para o então secretário americano Henry Kissinger. Também mobilizou algumas celebridades de Hollywood. Estas a conheciam pela excelência de seu corte e costura. Mas tudo isso foi em vão, pois as autoridades brasileiras negavam inclusive a prisão do rapaz. Seu rosto continuava impresso em cartazes de Procurados.

Zuzu estampou seu protesto e sua dor nos tecidos em que trabalhava. Se antes eles eram cheios de cor e de alegres motivos tropicais, agora vinham com pássaros engaiolados, anjos amordaçados e balas de canhão. Há quem diga que com essa ação, ela inaugurou a primeira coleção de moda política da História. Quem passasse por ela dando bom dia, ouviria: você pode ajudar a encontrar o corpo do meu filho?

Contam também que numa viagem aérea, minutos antes da aterrissagem, ela tomou o microfone de uma comissária e passou o seguinte recado aos atônitos passageiros: "Vocês vão descer no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, Brasil. Saibam que neste país torturam e matam jovens estudantes."

Firmeza e insistência cessaram na manhã de 14 de abril de 1976. Na saída do túnel Dois Irmãos, na Estrada da Gávea, o carro de Zuzu bateu na mureta de proteção e capotou. Ela morreu na hora. Um tempo antes, ela havia deixado uma carta com o compositor Chico Buarque, na qual avisava: "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho." 

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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Nas mesmas mãos de sempre


por Pedro Mox*

Depois do papelão sofrido diante da Alemanha, a seleção brasileira voltou a reunir-se, contra seu adversário das quartas de final, a Colômbia, em Miami. Venceu o jogo por um a zero. Também ganhou do Equador, ontem, pelo mesmo placar. Em tese, vida nova; ou não, se levarmos em conta as expectativas criadas pela Copa e, sobretudo, pelo fim desastroso vivido pelo nosso onze. Muito falou-se em mudanças no futebol do país, reformulação na Confederação Brasileira de Futebol, adequação e profissionalização...

O visto na prática, contudo, não foi nada disso – o que era, convenhamos, previsível. Mudar nunca foi muito o forte da CBF. No máximo, mudar para permanecer o mesmo, como o ideário abordado em O Leopardo, clássico de Luchino Visconti.

Paulo Vinicius Coelho, da ESPN, publicou em seu blog texto com o seguinte título: Em vinte anos, seleção teve mesmo número de técnicos da Alemanha em um século e da Espanha em 45 anos. A lógica de demitir treinadores, comum em nossos clubes, repete-se na seleção: desde a campanha do tetra, em 1994, tivemos dez mudanças de treinadores, sendo que quatro (contando o retorno de Dunga) tiveram duas passagens. Já a Alemanha, desde a copa dos EUA, teve cinco treinadores; nenhum repetido. Joachim Löw, campeão no Brasil, está desde 2006 no cargo; antes de assumir o Nationalelf foi assistente de Klinsmann durante dois anos. Tal trabalho de longo prazo inexiste no futebol de resultados aqui encontrado.

Na cartolagem a situação se inverte: de 1980 para cá, a CBF foi comandada por apenas quatro homens, com destaque ao reinado de Ricardo Teixeira: assumiu em 1989 e só saiu em 2012 – ou melhor, renunciou em meio a escândalos de corrupção. Passada a turbulência, leva uma vida sossegada em Miami. José Maria Marin herdou o cargo, e vai presidir a entidade até o final deste ano.

Para fazer um candidato (inscrever uma chapa) é necessário apoio de ao menos seis clubes e oito federações. No último pleito, realizado em abril deste ano, uma segunda chapa sequer existiu. A candidatura única de Marco Polo Del Nero – apoiado por Marin – elegeu-se com impressionantes 46 votos a favor e dois em branco. Na prática, será  uma troca de cadeiras.

Votam nas eleições para presidente da entidade máxima do futebol brasileiro presidentes das 27 federações estaduais e dos 20 times da primeira divisão. Portanto, não é estranho que a mesma falta de oxigenação encontre-se nas federações: Eduardo José Farah assumiu a Federação Paulista de Futebol em 1988, seguido por Del Nero desde 2003. (Del Nero é também atual vice da CBF). A Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, desde sua fundação em 1978, teve três presidentes. A federação catarinense está sob a batuta de Delfim de Pádua Peixoto há mais de 25 anos, enquanto o ex-presidente da federação paranaense Onaireves Rolin de Moura ocupou o cargo por 22 anos.

A própria posição da confederação ao final do mundial deixou claro que sua preocupação é a seleção brasileira, não o futebol brasileiro. Assim, enquanto deveria zelar pelo esporte e pelos que o praticam/admiram, aparenta mais disposição para arrumar seu 17º patrocinador. Além disso, divulga o calendário do próximo ano com sequer um mês de pré-temporada. Vale lembrar que a entidade, até 2009, nem mesmo responsabilizava-se pela organização da Série B, que ficava a cargo da Futebol Brasil Associados.

A escolha do atual treinador foi, portanto, natural. Não pelo aspecto futebolístico, mas político: alguém com uma posição mais crítica a respeito do esporte dificilmente se encaixaria nos moldes conservadores da Confederação. O futebol brasileiro está nas mesmas mãos de quem sempre esteve, por isto seria demais esperar qualquer mudança radical antes do anúncio de Dunga. As preocupações destes homens, infelizmente, nem sempre dizem respeito ao melhor para o futebol.

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*Pedro Mox, jornalista e fotógrafo, especial para o NR

O meu candidato é o dos outros

por Celso Vicenzi*

O meu voto é o dos outros. Milhões de outros – com esperança de que sejam maioria – que sonham com uma pátria mais justa e solidária. Não penso em votar em candidaturas que, eventualmente, melhorem a minha condição de cidadão de classe média. Ou que possam fazer mais pela minha profissão, pelo meu estado, pela minha região ou cidade. Há quem vote assim e é um direito. Mas, num país com as desigualdades sociais do Brasil, o voto de quem vive melhor deveria ser mais solidário, menos egoísta e desumano.

Os meus candidatos serão aqueles com currículo e história de vida comprometida com as transformações sociais, com ações voltadas à independência e soberania do país, com igualdade de acesso aos bens gerados pela nação. Seria ótimo – e inteligente! – se boa parte dos integrantes das classes média e alta, antes de pensarem em si, apoiassem aqueles que menos têm e há séculos são alijados da distribuição de renda num dos 10 países mais ricos do mundo.

Voto pensando nos milhares de moradores em situação de rua e nos milhões que sonham com a casa própria. Meu voto vai para os 72% de trabalhadores que produzem a maior parte da riqueza e, no entanto, recebem em troca não mais do que dois salários mínimos. Desses, 41% têm renda de no máximo um salário mínimo. Quase a metade da força de trabalho vivendo com muito pouco, pressionada por toda uma existência a usufruir do mínimo, no limite da sobrevivência.

Quero votar com os 80 milhões de brasileiros que agora têm acesso à saúde bucal (em 1998, 30 milhões nunca tinham ido ao dentista) e que ganharam 4 milhões de próteses nos últimos quatro anos. Gente que tinha poucos motivos para sorrir e quando o faziam, ficavam expostos ao escárnio e à ridicularização.

Não peçam o meu voto para candidaturas que vão ampliar ou manter um modelo político e econômico excludente, responsável por classificar o Brasil entre as 10 nações mais desiguais do planeta. Não apoiarei candidaturas que, sob nomes pomposos do economês, irão implementar políticas de arrocho contra o trabalhador, aumentar o desemprego, diminuir as ações sociais, investir contra conquistas históricas dos Direitos Humanos e trazer dogmas religiosos para o centro da agenda republicana.

Não voto em candidaturas que, num país onde há muito preconceito, discriminação e racismo, são contra as políticas de ações afirmativas (cotas para negros, por exemplo) sob o argumento da justiça e da igualdade que nunca garantiram para a maioria da população. Dados do Ministério da Saúde apontam que 53% dos homicídios no Brasil atingem pessoas jovens, das quais 75% são negros e negras, de baixa escolaridade. Não voto em quem apregoa meritocracia como sinônimo de justiça, sem levar nunca em conta a desigualdade de acesso às oportunidades.

Não voto em quem critica o Bolsa Família, que, com algo em torno de 0,5% do PIB, diminuiu a mortalidade infantil, melhorou a alimentação do povo e ajudou a colocar os filhos dos pobres nas escolas. Segundo o Relatório Mundial da Saúde, o Bolsa Família reduziu em 28% a pobreza no país (quase um terço!) e foi responsável direto pela diminuição de 65% das mortes causadas por desnutrição e por 53% dos óbitos causados por diarreia em crianças menores de cinco anos. Eu voto contra os preconceituosos que dizem que Bolsa Família é para sustentar malandro, porque desconhece ou omite que 75% dos beneficiários trabalham e 12% já deixaram de receber voluntariamente, por terem melhorado de vida.

Eu voto com os outros. Com aqueles 50 milhões de brasileiros que, até recentemente, não tinham atendimento médico, porque moram em pequenas localidades do país ou nas periferias das grandes e médias cidades. Voto por mais educação e formação profissional para combater a violência. Por mais acesso à cidadania e menos políticas repressoras no combate à criminalidade e atos infracionais. Por uma educação mais inclusiva e humanista, menos voltada a atender o mercado de trabalho, que questione os privilégios, as desigualdades e as distorções desse modelo consumista de sociedade, predador da natureza, gerador de poluição, doença e morte.

Eu voto com os outros, sim. Outros que desejam a manutenção do emprego, melhores salários e aumentos acima da inflação para quem ganha salário mínimo. Segundo o IBGE, em 10 anos houve um crescimento de 65% na geração de empregos, e o salário mínimo teve aumento real de mais de 70%. Voto em quem se propõe a prosseguir nessa direção. Meu voto é o dos outros, de milhares de outros, que sempre foram explorados, no campo e na cidade, enquanto enriquecem uma pequena parcela da população brasileira. Voto por reforma agrária, por uma reforma política e fiscal, por impostos que onerem mais a classe rica e menos os assalariados, por mais distribuição de renda, pelo estado laico, pela igualdade entre sexos e a valorização da mulher, pelo respeito aos Direitos Humanos, por mais creches, por educação de qualidade em tempo integral, pela demarcação das terras e respeito aos direitos indígenas, pela soberania do país, por políticas públicas que garantam melhores condições de vida à maioria da população.

Voto por uma política de transporte público de qualidade, pela redução do desmatamento e por mais apoio à agricultura familiar. Meu voto se une ao voto dos que desejam o fortalecimento do SUS e das políticas públicas de saúde, daqueles que querem mais investimentos em pesquisas para fortalecer a independência e a soberania nacional, pela democratização da comunicação e por uma regulamentação do setor, semelhantes as que já existem em vários países. Meu voto é amplo, geral e irrestritamente popular.

Em síntese, meu voto pertence ao povo brasileiro, que luta para emancipar-se e construir uma sociedade mais justa e fraterna.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres. Ilustração é obra da artista plástica Gertrudes de Arruda

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Direito ao esquecimento

por Thiago Domenici*

A revista Retrato do Brasil publicou em agosto matéria de minha autoria "Esquecer ou não, eis a questão" sobre um tema dos mais espinhosos: o chamado “direito ao esquecimento” na internet. A Justiça da União Europeia decidiu que usuários têm esse direito nos buscadores de internet como, por exemplo, o Google, Yahoo e Bing!.

Na matéria explico que também fora da rede o tema gera grande debate ao envolver questões como liberdade de expressão e de imprensa. O que motivou a decisão judicial na Europa foi um ação do espanhol Mario Costeja González. Em 1998, o diário espanhol La Vanguardia publicou, em sua versão impressa, anúncio relativo a um leilão de um imóvel de 90 metros quadrados localizado na cidade de Barcelona. O texto detalhava uma dívida dos donos do imóvel – no caso, Mario e sua ex-mulher – com a seguridade social. A divida acabou quitada antes da realização do leilão, mas a informação que revelava o nome dos ex-devedores, tornou-se um problema quando o mesmo jornal disponibilizou seu acervo digital na internet. Desde então, quem pesquisasse o nome deles no Google, por exemplo, seria remetido ao link da página do periódico com a informação desabonadora.

Com a decisão favorável ao espanhol validada em maio desse ano, válida, vale esclarecer, somente para os mecanismo de buscas, o Google criou um formulário on-line para esses pedidos. Segundo matéria mais recente do El País já foram mais de 90 mil “solicitações de esquecimento.” Na matéria que fechei em meados de julho, eram 70 mil pedidos. A seguir nessa toada, o Google vai se afogar em pedidos de esquecimento. Mas tem um grande problema nessa decisão: a sentença obriga o Google a fazer julgamentos difíceis sobre o direito do indivíduo a ser esquecido e o direito público à informação. Tanto é que o buscador já removeu links e depois teve que voltar atrás na decisão.

Além disso, o assunto esquentou no Brasil como mostra uma matéria do site Consultor Jurídico. Nela, detalha-se uma decisão judicial que negou pedido similar num processo movido por um juiz do Espírito Santo, que exige a remoção de uma matéria envolvendo seu nome das buscas do Google. Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a versão brasileira do Google não é obrigada a excluir links em resultados de pesquisa a pedido de um usuário. Como se percebe, um entendimento contrário ao do Tribunal de Justiça da União Européia.

Confesso a vocês que formar um entendimento a respeito desse assunto é coisa complexa. Daí que vou sugerir a reflexão de todos que chegaram até aqui a partir de um texto da Eliane Brum. Lá pelas tantas, ela diz: “Há várias implicações nessa decisão do tribunal europeu. Sem contar o debate complexo que tem oposto os direitos à informação e à liberdade de expressão ao direito à privacidade. Mas há uma, subjacente, que me interessa mais: a construção da memória depois da internet. Ou, sendo mais específica, não apenas se é possível ser esquecido, mas um pouco mais: é possível morrer?”

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Thiago Domenici, jornalista, editor e coordenador do NR.

Sobre palavras e coisas

por Ricardo Sangiovanni*

Põe as duas mãos na parede, cidadão. Abre as pernas, cidadão. Mais, cidadão. Documento, cidadão. Tira tudo da moto, cidadão. Fuma maconha, cidadão? Vou te levar preso, cidadão. Você está surdo, cidadão? - vocifera um soldado a um morador de um bairro pobre do Rio de Janeiro, num vídeo na internet.

Não sei se senti mais agonia por me colocar no lugar do homem, ou se pela centena irritante de vezes que o militar rugiu cidadão enquanto aviltava a cidadania do rapaz.

Sei que não deveria, para não parecer ingênuo, me espantar com esse tipo de manobra do vernáculo. Mas quando vejo esse soldado dizer cidadão - ou o papa católico exortar os jovens a serem revolucionários; ou o polemista liberal repelir discussões sobre liberdades civis - não fico imune ao espanto: estão sempre lá as benditas das palavras, usadas como se pudessem servir a qualquer propósito, sorrateiramente contradizendo até seus significados conhecidos.

Nisso não há novidade, dirão os especializados em dissecar o espanto de nós tolos: o vínculo entre o que se diz e o que se faz já não existe desde, sei lá, Maquiavel. Concordo até; mas as dicas do mestre florentino eram para políticos na gestão do Estado, não para gente comum na gestão da vida.

O que enxergo, cá com minha miopia, é uma naturalização alvoroçada desse divórcio entre as palavras e as coisas - entre "retórica" e "prova": parece que isso está se espalhando mais rápido entre nós comuns, se trivializando na medida em que nos ocupamos mais e mais em alimentar nossas próprias imagens públicas, potencializadas nas redes virtuais. Mas esse divórcio, como ensina o historiador Carlo Guinzburg, nada tem de natural: nossa ideia comum do que seja retórica hoje - "mera retórica", "retórica vazia" - não tem lugar na retórica original, lá de Aristóteles: a arte era de persuadir, sim, mas do que fosse verdadeiro.

O uso leviano das palavras, calculando antes o que possam agregar à imagem de quem as profere (as profana), é por fim adubo no terreno fértil das timelines, onde seguem brotando preconceitos - contra pobres, negros, mulheres, homossexuais - arados por gente espantosamente apta a sustentar que não, imagina!, não é classista, racista, machista, homofóbica.

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Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A menina linda

por Cidinha da Silva*

Era daquelas meninas bonitas até no berçário de recém-nascidos. À medida em que foi crescendo tornou-se uma bebê linda, menina linda, mulher linda. Todo mundo pasmava, reconhecia e elogiava. Pode-se dizer que ela se acostumara a ser bonita desde pequena e acolhia os elogios com naturalidade e simpatia.

Um dia formou-se professora de artes e foi estagiar em escola pública. No primeiro dia de aulas não cabia em si de alegria. Teria uma professora negra muito boa de diálogo como orientadora e um montão de crianças negras e mestiças, mais umas tantas crianças brancas, sorriam para as atividades desenvolvidas pela nova professora nova.

Ao final do turno, as mais afetivas foram beijá-la e ela retribuía o carinho pensando consigo que se empenharia para que todos os dias fossem únicos e mágicos como aquele. A última criança da fila, uma menina vivaz, penteada como bailarina russa, perguntou baixinho: professora, posso te falar uma coisa? Lógico que sim, querida, conta! Ela respondeu enquanto se agachava para ouvir a menina, que tocou levemente um de seus dreads, curiosa, como são as crianças e confessou: você é muito bonita apesar da sua cor.

Um balde de chumbo caiu sobre sua cabeça, o sorriso desapareceu, uma ruga tomou conta da testa e ela não desabou no buraco aberto no chão porque a professora titular se aproximou tocando o ombro da criança e desfocando a cena. Disse entre serena e triste: a professora já ouviu, Ruth. Pode ir, até amanhã.

Por que tem que ser assim? Por que a felicidade da mulher negra precisa ser guerreira, sempre? A colega mais velha, tarimbada, lia pensamentos nesses casos. Não tem que ser, minha irmã. Não tem que ser o que? Ela pergunta quase chorando. Não precisa ser guerreira na sala de aula, aqui você é professora. Mas como não? Você ouviu o que ela me disse? Sim, como não ouviria? Eu estava tão animada, agora toca a transformar o incidente em situação pedagógica, mudar todo o meu planejamento. Não precisa. Precisa, sim. Estou dizendo que não. Só se você quiser, se tiver forças para isso. Se não quiser, continue seu planejamento. Haverá um momento não doído para você em que será possível conversar com a Ruth e com a turma. Sem que ela se sinta exposta, de uma forma que ela possa ser tocada para a transformação. Quer um conselho? Continue linda e seja um ótimo exemplo para essa meninada. Com calma você achará um jeito de incluir essa história no curso de uma atividade e potencializá-la para que a turma cresça. São crianças! Elas têm tempo e você também.

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escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Volta!


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Minha querida,

Desde a nossa conversa de ontem, não me sai da cabeça a frase que li na traseira de uma van, à minha frente no sinal vermelho: “viva sem dor”. Era propaganda de analgésico, que em sua tolice atropelava o momento amargo e desolado que eu estava vivendo. Já faz um tempão, mas ficou marcado pela ironia. Como viver sem dor, se ela é parte do pacote? Como identificar a alegria e o prazer sem o contraponto da dor e do sofrimento? Como entender a luz sem a treva? Simples assim.

Queria ter a capacidade de dizer ou fazer algo que te buscasse lá no fundo desse abismo oceânico e te fizesse flutuar de novo. Que te devolvesse a deliciosa capacidade de olhar à volta e, em dois minutos, produzir comentários demolidores sobre o senso comum e a mediocridade, seus e de todos nós, porque, na sua grandeza, você se sabe tão limitada e pequena quanto a humanidade inteira. Que te reconectasse com o riso e o prazer, como quando ríamos sem parar de qualquer bobagem, sob as árvores à beira do lago do clube náutico.

Mas não tenho. Espero muito que alguém tenha, e consiga derreter essas grossas camadas de desamor, incompreensão e tristeza. Nem mesmo sei o que te dizer, só sei como me sinto quando penso em você: com o coração espremido. E tenho pensado muito.

Aqui, do lado de fora de você e de mim, há um lugar enorme e complicado, difícil de ser decodificado, inóspito, povoado de gente mesquinha e superficial. E com muita dor sobrando pra todo lado. Mas tem crianças, mixiricas, passarinhos, arroz com feijão, céu azul, livros, ipês floridos, chocolate, maçãs, chuva, doce de leite com coco, pijama molinho, tênis surrados, filmes, amigos, torta de frango. Tudo esperando por você. Volta pra cá!

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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Um álbum, uma vida


por Celso Vicenzi*

A fotografia é uma invenção do século 19, que fascinou pela possibilidade de reproduzir, fielmente, quaisquer objetos, paisagens ou pessoas. No começo, como sempre, acessível a poucos. Para além dos registros domésticos, as imagens fotográficas prestaram inestimável contribuição ao estudo da geografia, da antropologia e da sociologia – entre outras ciências. Com o passar dos anos, ganhou novas funções, entre elas, a de obra de arte e a de registro jornalístico.

Do século 20 até os dias de hoje, parte das pessoas que viveram no planeta possuíam pelo menos uma ou algumas fotos. No passado, antes da era da televisão, era comum, durante as visitas de parentes e amigos, apresentar o álbum de retratos da família. Toda uma história de vida resumida em algumas poucas páginas a marcar datas importantes, como o casamento, o nascimento dos filhos, o batizado, alguns aniversários (não todos!), uma ou outra foto do ingresso na escola ou da formatura. Ou ainda, em trajes militares, como reservista. Fotos posadas em uma charrete, no dorso de um cavalo, em uma bicicleta ou, ainda, em raros automóveis. Às vezes, algum fenômeno climático, como enchente ou neve. E, já entrando nos anos 60, uma ou outra foto de viagem em férias.

Uma vida inteira podia ser resumida em um álbum com poucas dezenas de fotos. Para algumas gerações, todas em preto e branco. Mais tarde, num colorido que o passar dos anos foi desbotando cada vez mais.

Quantas fotos um adolescente é capaz de registrar, atualmente, em apenas um dia? Em uma semana? Certamente, mais do que algumas gerações registraram ao longo de toda uma vida. Nossos avós – para os que têm mais de 50 anos –, talvez não mais do que duas ou três dezenas. Dos bisavós, com sorte, sobrou uma imagem solitária, que olhamos com certo espanto. Tanto quanto eles, os bisavós, olhavam para a estranha câmera, quase a duvidar sobre o que sairia daquele registro para a posteridade.

Atualmente, conseguirá uma criança ou adolescente que viva até a fase adulta localizar, em meio a milhões de fotos, aquelas que guardam algum significado para suas vidas? A frase já foi atribuída a John Lennon, mas é do escritor, jornalista e cartunista norte-americano Allen Saunders: “Vida é o que acontece com a gente enquanto estamos fazendo outros planos”. Talvez se pudesse dizer, diante de tanta ansiedade em registrar o dia a dia em imagens, que a vida é isso que acontece enquanto tiramos fotos em vez de prestar mais atenção aos ciclos da natureza e às pessoas à nossa volta. Porque a vida, essa não tem volta. Passa rapidamente e finda num clique.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
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