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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hippie de BR

por Carlos Conte   ilustração Marcelo Martins Ferreira

Nas últimas férias, dei carona para um sujeito chamado Gnomo. Gnomo é seu nome de estrada. Três anos na estrada, pegando carona e caminhando pelas BRs com sua pequena mochila e seu mostruário hippie feito de pano e canos de PVC.

– Valeu pela carona, brother! – tirou do próprio pulso uma pulseira de linha de bordado adornada com uma pedra azul e me deu. – Presentinho do Gnomo pra lembrar do brother da estrada!

Agradeci, amarrei no pulso e acelerei rumo ao sul. Saímos de Salvador com o sol nascendo. Nosso destino: Vitória.

– Vou terminar um Filtro dos Sonhos antes de chegar em Vitória. Peguei umas penas de arara no zoológico de Recife. O guardinha não queria deixar. Mas eu voltei lá depois quando ele não tava olhando. Vou fazer um Filtro dos Sonhos pra você com essas penas de arara. Curte?

Mesmo sem saber o que era um Filtro dos Sonhos, aceitei. Era a maneira de me retribuir, já que estava completamente liso. Penas de arara colhidas do chão não afetaram minha consciência ecológica a ponto de recusar. “Se ele tivesse arrancado da arara, recusaria”, pensei. Mas Gnomo era um sujeito pacífico. Sua matéria-prima vem da coleta. Na primeira parada, enquanto eu abastecia o carro e tomava um café, ele se ocupou catando coisas no mato atrás do posto de gasolina. Voltou com uma sacola cheia de materiais:

– Olha só, brother, achei umas coisinhas legais: pedra, semente, corda, arame, cipó... Seu Filtro dos Sonhos vai ficar massa: vai ser de galho de chorão! As pessoas jogam muita coisa boa no lixo. O que eles jogam fora eu uso na minha arte – orgulhou-se.

Encontrar Gnomo me fez lembrar de uma andarilha que pedia carona na viagem de ida. Fiquei mal por não ter dado carona pra ela. A mais de 100km/h, não deu tempo. Pedir carona exige estratégia e ela estava no lugar errado! Gnomo me explicou detalhadamente: tem que escolher um trecho de velocidade reduzida, de preferência trevo ou ponto de lombadas, e é preciso que o acostamento seja largo e longo, na verdade um recuo é o ideal para o carro conseguir desviar-se da pista sem provocar acidente.

– Você foi um anjo no meu caminho, Carlão! Carona de 2 dias não é toda hora que aparece!

Fiz questão de dar carona para ele porque, de certo modo, me sentia em débito. Quando vi a menina, já tinha passado por ela e logo atrás de mim vinham carros e carretas a toda velocidade... Acostamento estreito. Não teve jeito. Segui viagem. Agora era a vez de Gnomo e eu precisava dar essa carona, como se minha viagem ganhasse muito mais sentido com um estradeiro de verdade ao meu lado. Faz tempo que sou fascinado pela vida na estrada: desde que li On the Road pela primeira vez, Dean e Sal cruzando os Estados Unidos com uma mochila nas costas, ou o relato zen de Os Vagabundos Iluminados; desde que ouvi falar dos sadhus, monges andarilhos indianos que vivem de doações, de sol e de água; ou o relato de Che Guevara pela América Latina explorada e miserável; desde então, a viagem me fascina e não me canso de ir atrás de outros relatos de viagem: a desobediência civil de Thoureau, as andanças de Rousseau pelos bosques suburbanos, as perambulações opiáceas de De Quincey pela Inglaterra. E Gnomo, de certa forma, era a realização desse modo de vida (pelo menos no que diz respeito à simplicidade e ao nomadismo). Gnomo, meu copiloto. Mais de mil quilômetros ao lado do Vagabundo Solitário Gnomo, que sempre que encontrava oportunidade exaltava as qualidades de sua arte. “Arte hippie”, ele dizia.

Mas o encantamento durou pouco. Romantismo. Idealização. Os livros também falam do “lado B” da vida andarilha. Os beats nunca esconderam isso. A vida na estrada é dura, como se pode imaginar, e Gnomo estava definitivamente na pior. Em vários sentidos. Pra começar, estava duro. Convidei-o para almoçar: ele fez um prato gigantesco – “vai saber quando vou almoçar de novo?”. Contou-me seus infortúnios: a ex-mulher voltou para o Chile e levou o cachorro; a única filha está em Pernambuco sendo sustentada pelos avós; as vendas andam mal... Em Salvador, vendeu pouco e bebeu muito. “É a fase...”, lamentou-se. Agora precisava encontrar uns amigos em Belo Horizonte: fixar-se por um tempo, trabalhar bastante, juntar mercadoria e só então seguir viagem de novo. Por ora, seu mostruário hippie tinha pouco a oferecer aos fregueses, algumas pulseiras e brincos... Era preciso fazer uma parada estratégica até a temporada de fim de ano, quando as praias se enchem de gringos e paulistas. Mas enquanto dezembro não vem, trabalhar, esperar... Gnomo não escondia sua aflição. Ele sabia que estava na pior.

Em Teixeira de Freitas, pequena cidade perto da divisa com o Espírito Santo, paramos para dormir. Gnomo já havia anunciado que deixaria suas coisas no carro e iria se ajeitar na rodoviária, o lugar mais iluminado e seguro da cidade. Para ele, numa boa. Já estava acostumado a fazer isso. Mas eu não conseguiria dormir tranquilo pensando em Gnomo na rodoviária. Afinal de contas, éramos parceiros de viagem e aquilo não estava certo. Paguei 20 reais pelo pernoite dele, assim como paguei a carne de sol do jantar e a cerveja. Gnomo se encostava em mim sem nenhum grilo, resignado. Se não fosse em mim, seria em outro. Se não fosse em ninguém, seria pedindo, como um sadhu indiano. Mendigando. Virei umas pingas e fui me deitar, pensando em Gnomo. Pensava também como seria fazer como ele: escapar de tudo e viver na estrada, dormindo ao relento, conhecendo lugares novos, vivendo da natureza e da bondade dos outros. Mas havia as dificuldades, os “perreios”... E cheguei à conclusão de que Gnomo vivia num “perreio” eterno, embora ele não se importasse muito com isso. Talvez ele se importasse um pouco. Não sei... talvez eu me importasse muito mais do que ele.

Dia seguinte, cruzamos a fronteira de estados, Gnomo foi dormindo quase todo o caminho embalado pelo som de Gil: “O sonho acabou/quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou”.

O tempo na estrada vai rápido. 100km ficam cada vez mais curtos. “É logo ali...”, dizem os caminhoneiros, “É logo ali, só mais uns 100km...”. Para falar com caminhoneiro, é preciso se referir a grandes distâncias. Sempre que falava que tinha saído de São Paulo dias atrás, percebia que me olhavam com alguma consideração, porque sabem que essas BRs são sofridas pra cacete, ainda mais pra um carro de passeio. O lema dos carreteiros é “Veículo leve que saia da frente!”. Se não estiver alerta, eles passam por cima mesmo.

Entramos em Vitória quando anoitecia. Parei em frente à praia e anunciei a ele o fim da carona.

– Agora vou pra catedral, onde os brothers se juntam pra vender. Valeu pela carona, Carlão! Foi foda! Te agradeço de coração...

Antes de ir, me pediu umas moedas para o ônibus, pegou suas coisas e seguiu adiante, enquanto fiquei encostado no carro olhando para aquela imagem pequena, cheia de dreads que foi ficando cada vez mais escura e pequena até desaparecer no meio do tráfego. Dia seguinte, tentaria entrar clandestinamente no trem que vai pra Belo Horizonte. Mais um dia de viagem, nessa viagem tão incerta e fugidia que era o seu próprio modo de vida. Fiquei triste e admirado vendo Gnomo partir. Só mais tarde me dei conta de que sua sacola de “materiais” de coleta tinha ficado no banco traseiro. E o Filtro dos Sonhos prometido, feito de galho de chorão e penas de arara, vai ficar para a próxima.

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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto

Um comentário:

Bruno disse...

Um verdadeiro nômade, rumo incerto, loucura ou necessidade? No mínimo corajoso.

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