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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Calangada


por Júnia Puglia     ilustração Fernando Vianna*

 Chega email da amiga que está passando o mês em Manaus. Diz que faz um calor de rachar, mas lá a suadeira é tanta que fica impossível passar qualquer creme na pele – quem precisa deles, com aquela umidade toda? A cútis agradece, linda e reluzente.

A inveja me consome. Enquanto ela se desfaz em água amazônica, nós aqui vamos sendo espremidos numa centrífuga, até liberarmos a última gota de líquido. Nem quero saber o que vão fazer com o nosso bagaço. Lábios, mãos e pés são as almas de Caetano esticadas no curtume, não importa quantas vezes por dia sejam hidratadas com cremes e loções.

Quando desembarquei na capital da República, quatro décadas atrás, achei muito interessante que todo mundo usava óculos escuros, coisa que lá no interior era chique no úrtimo, reservada para ricos e autoridades. Logo me dei conta de que sem eles seria impossível manter os olhos abertos neste excesso de céu arreganhado, com o tal astro-rei-sol reinando absoluto, como devem reinar os reis e rainhas, e só eles, por mais inspirador que seja o cargo de Presidente (Dilma Bolada, Soberana das Américas, não vale).

Todo ano tem o mês de setembro, com a mesma ladainha. Eu até já falei disto aqui, e os candangos se identificaram muito. Mas candangos não são calangos.

Seres admiráveis são os calangos, verdadeiros senhores deste território. Não se impressionam com nada disto. Pedras e calçadas escaldantes, terra solta fervente, grama, árvores e arbustos esturricados e eles lá, correndo de um lado pro outro, como quem tem a sexta-feira toda comprometida com visitas, reuniões, almoço de trabalho, compras e chopp no fim da tarde. Acabo de surpreender uma espécie de assembleia da categoria, num estacionamento próximo. Era hora do “coffee break” lá deles. Eu vinha caminhando, tentando aproveitar cada centímetro de sombra, quando vários cruzaram a calçada chispando, rumo ao asfalto, e depois em grupo para determinado ponto no meio da vegetação seca. Eram cinco, se não me engano.

Não estavam nem aí para a minha bisbilhotice. Esperaram pacientemente que eu desistisse de observá-los. Assim que me afastei, retomaram a correria frenética. Seria um comício eleitoral o que estavam organizando? Uma carreata? Ou uma reunião de calangos com candidatos, para se conhecerem melhor e apresentarem suas reivindicações específicas? Será algum deles candidato, entre os milhares de candangos que buscam assento na Câmara Distrital? Sei não. Só sei que, nas atuais circunstâncias de temperatura e umidade, devem ser as únicas criaturas energizadas dessas paragens. E nem sinal de chuva.

* * * * * *

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Infelizmente assembléia de calangos não indica a chegada da tão esperada chuva. Estou aguardando as cigarras, aquelas que fazem uma berração danada nos meus ouvidos e, pra variar, de vez em quando, alçam vôo e entram no meu quarto. Estou esturricada. Venha, chuva, por favor, por pena de nós.
Calangos, continuem correndo pelo asfalto fervente, e elegendo seus possíveis candidatos em assembleias mudas. Deixem a gritaria para as cigarras,porta-vozes de São Pedro.
Bela ilustração do Fernando. Beijos da Mummy Dircim

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