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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

domingo, 20 de março de 2011

Intervenção nossa de cada dia

 Os Estados têm suas razões para intervir na Líbia. Mas, e nós, cidadãos comuns? Que podemos pensar sobre a intervenção?

Agora é oficial: o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou na madrugada desta sexta-feira, 18 de março, o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia. A medida foi justificada pela necessidade de proteger a vida de milhares de civis que têm sido massacrados pelo aparato militar do ditador Muamar Gadafi.
Após o avanço dos rebeldes para regiões perigosamente próximas à capital, Trípoli, Gadafi ordenou a reconquista do território perdido e não teve pudores em utilizar caças para bombardear as posições rebeldes. Assim, recuperou o controle do oeste líbio, onde algumas cidades já haviam caído nas mãos dos opositores, e avançou rumo ao leste para atacar –exitosamente– as milícias em Bin Jawad, Ras Lanuf e Ajdabiya.
Enquanto os rebeldes perdiam terreno, o Conselho de Segurança da ONU deliberava sobre a pertinência de intervir no conflito líbio. Há semanas os inimigos internos de Gadafi vinham requisitando a imposição de uma zona de exclusão aérea. Desde o começo, porém, vêm se manifestando contra uma incursão terrestre de forças estrangeiras: queriam apenas que a comunidade internacional impedisse que os caças do ditador executassem bombardeios sobre a população civil e sobre as posições da resistência. Assim, teriam melhores condições de disputar o poder com o ditador e, eventualmente, vencê-lo.
Os primeiros mísseis dos EUA foram
disparados neste sábado

Por pouco a decisão da ONU não chega tarde demais. A resolução foi aprovada quando as tropas de Gadafi já estavam nos arredores de Bengasi –uma espécie de capital da sublevação– preparando a incursão definitiva sobre o bastião rebelde. A notícia de que o Conselho de Segurança irá impor, nos próximos dias ou horas, uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia fez Gadafi recuar em sua sede de sangue. Pouco tempo depois de divulgada a decisão, em Nova York, e enquanto os opositores do regime comemoravam a chegada de ajuda estrangeira num dos momentos mais críticos de toda a rebelião, em Trípoli o governo líbio decretou um cessar-fogo.
Então, Barack Obama subiu no palanque da Casa Branca para dizer que esta é a última chance de Gadafi encerrar de uma vez por todas a ofensiva militar contra os rebeldes — que, vale lembrar, começaram manifestando-se pacificamente mas, diante da violência que sofreram, acabaram pegando em armas contra o governo. O presidente dos Estados Unidos afirmou ainda que, caso não cumpra com as determinações da ONU, os termos da resolução serão impostos à força.

Intervenção respaldada
A decisão das Nações Unidas conta com o apoio da Liga Árabe, da União Africana e da União Europeia. Porém, não recebeu votação favorável de todos os países que compõem o Conselho de Segurança. Há um mês, todos concordaram que os crimes de guerra cometidos por Gadafi deveriam ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia. Mas, nesta sexta-feira, Brasil, Índia, China, Rússia e Alemanha preferiram ficar em cima do muro, relativizando os insistentes chamados de França, Estados Unidos e Inglaterra para agir na Líbia o mais rápido possível e com consentimento da ONU.
 2009, Obama e Kadafi em reunião
de chefes de Estado (Reuters)
Escolher entre intervir ou não intervir não é uma decisão fácil para quem acredita defender a liberdade, a soberania dos povos e os direitos humanos. Todos estamos carecas de saber que existem milhões de interesses particulares por trás de cada decisão de Estado. Um país pode tranquilamente disfarçar intenções econômicas com discursos refinados em defesa da democracia e da liberdade de expressão. Pode também camuflar escusas preferências geopolíticas sob a necessidade de lutar contra o terrorismo islâmico e garantir a o bem-estar do universo.
Enfim, existem “n” maneiras de enganar a opinião pública sobre a relevância de intervir militarmente num terceiro país. Para quem está de fora e não tem acesso aos bastidores da política internacional, é quase impossível saber quais as reais motivações que levam os países a apoiar (ou não) uma intervenção. Às vezes é –ou parece– mais fácil. Por exemplo, achamos que o Brasil está no Haiti porque quer um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, e também porque vê com bons olhos a ideia de expandir sua influência sobre o a América Central e o Caribe, região que tradicionalmente tem sido tratada como o quintal dos Estados Unidos. Tem muita gente que jura com os pés juntos que Washington decidiu invadir o Iraque e o Afeganistão neste começo de século não porque queria livrar os iraquianos de Saddam Hussein ou porque precisa desesperadamente capturar Osama Bin Laden: ali, a sede por petróleo e a constante ameaça de recessão econômica teriam falado mais alto. Será?

Ser ou não ser?
Deixando de lado as inescrutáveis razões de Estado, vem a pergunta: como um cidadão comum (eu e, talvez, você) deve se posicionar sobre a possibilidade concreta de intervenção militar em terras longínquas?
Minha primeira reação é sempre contrária. Exatamente porque não dá pra saber ao certo que tipo de interesses concretos existem por trás de quem defende o uso da força para resolver o problema dos outros. A história está cheia de episódios condenáveis, nos quais as forças armadas de alguma potência foram enviadas para determinados países por discordâncias econômicas e políticas que jamais justificariam o emprego da violência. Contudo, bastou dizer que se está defendendo os valores universais da liberdade que tudo se ajeita: a invasão é levada a cabo e a liberdade nunca chega ao povo que se queria libertar. Haiti, Iraque e Afeganistão são ótimos exemplos, no presente e no passado. A Iugoslávia e a Somália dos anos 90 também.
Apesar da desconfiança que devemos nutrir em relação aos que se dizem paladinos da felicidade, é extremamente complicado permanecer imóvel ao sofrimento alheio. Os genocídios no Sudão, Ruanda e Camboja, o apartheid na África do Sul, o holocausto nazista e os expurgos de Stálin merecem ou mereceram a repulsa internacional. Em alguns casos, e com razão, houve intervenções. O problema é que as operações militares quase nunca alcançam os resultados esperados. E, mesmo quando são alcançados e as injustiças são corrigidas, o invasor fatalmente pratica uma série de novas injustiças na consecução de seu nobre objetivo. Os civis sempre sofrem mais – e alguém sempre sai ganhando, pois os benefícios da nova ordem dificilmente são compartilhados entre todos.
No que se refere à Líbia, o observador interessado apenas no respeito aos direitos humanos –como eu e, provavelmente, você– poderá comemorar a imposição de uma zona de exclusão aérea. Pode ser uma garantia de que Gadafi deixará de bombardear covardemente seus opositores. Todavia, não há nenhum dispositivo que impeça massacres terrestres nas cidades reconquistadas. É óbvio que o ditador não terá piedade de quem se aliou aos rebeldes. Certamente, os democratas líbios estão vivendo agora seus piores dias, talvez os últimos, em Ras Lanuf e outras cidades perdidas para as tropas de Gadafi.
O que podemos esperar caso o ditador recupere o controle total do país? Caso percam a guerra, os rebeldes não mais encontrarão refúgio seguro em Bengasi, que ainda resiste, e estarão diante do dilema: exilar-se ou morrer — o mesmo com que se depararam os republicanos espanhóis quando foram derrotados por Franco em 1939. Muitos tentaram, mas não conseguiram escapar. Se por ventura Gadafi vencer a peleja, outros tantos ficaram presos à Líbia e poderão esperar o pior.

Eu, interventor
Isso justifica a intervenção? Parece extremamente complicado responder a esta questão sem se molhar. Ao responder “sim”, estamos de alguma maneira compactuando com todos os podres que nascem de uma operação militar do tipo. Ainda se existissem versões ideais de intervenção, se as missões de paz, de estabilização e de ajuda humanitária se limitassem a cumprir exclusivamente o propósito que trazem no nome… Mas a gente sabe que não é assim. Porém, se nos colocamos contra qualquer intervenção, é como se estivéssemos lavando as mãos para uma injustiça (massacres, opressões, vinganças etc.) que não nos afeta diretamente. Fica fácil dizer: “eles que se virem sozinhos”, assim, de longe, quando nem sequer há igualdade de condições na luta.
População comemora coalizão
entre EUA, França, Reino Unido,
Canadá e Itália (EFE)
Se eu, no Brasil, quisesse exercer o legítimo direito de escolher meus governantes, meus direitos civis, minhas prerrogativas constitucionais e meus direitos humanos, e fosse massacrado nas ruas por causa disso, por aviões de guerra e fuzis, enquanto manifesto pacificamente minhas ânsias por liberdade – será que eu concordaria com uma intervenção militar estrangeira contra o tirano que dia-a-dia me massacra?
Não é a toda que os rebeldes líbios entocados em Bengasi ficaram felizes da vida após o anúncio do Conselho de Segurança da ONU. Se eu fosse um deles, também ficaria: por mais que tenha consciência de que esse tipo de ajuda nunca vem de graça e que, dali algum tempo, possa me arrepender de tê-la recebido. Imediatamente, porém, a zona de exclusão aérea é um sinal de que não mais receberei mísseis na cabeça. Como um rebelde líbio, por mais íntegro e anti-imperialista que seja, pode não comemorar uma coisa dessas?
Apesar de condenar o governo de Muamar Gadafi pela maneira como vem lidando com a oposição, o Brasil se absteve de votar a resolução do Conselho de Segurança porque enxerga que o termo “uso da força”, constante do texto, extrapola a obrigação da ONU em assegurar a observância dos direitos humanos e do direito internacional. “Do nosso ponto de vista, o texto da resolução (…) contempla medidas que vão muito além desse chamado. Não estamos convencidos de que o uso da força (…) levará à realização do nosso objetivo comum – o fim imediato da violência e a proteção de civis”, escreveu a embaixadora brasileira nas Nações Unidas, Maria Luiza Viotti. “Estamos também preocupados com a possibilidade de que tais medidas tenham os efeitos involuntários de exacerbar tensões no terreno e de fazer mais mal do que bem aos próprios civis com cuja proteção estamos comprometidos.”
Ou seja, por mais que o governo brasileiro repudie as atitudes de Gadafi, um detalhe textual, com claras implicações legais, o impediu de apoiar e dar suporte ao fim das hostilidades contra civis na Líbia. É compreensível que ninguém, muito menos um governo, deva assinar algo com o qual não concorda, mas chama atenção o fato de que em nenhum momento a embaixadora diz que o Brasil é contrário a intervenções militares de qualquer natureza. Muito pelo contrário, a carta de Maria Luiza Viotti afirma: “Levamos em conta também o chamado da Liga Árabe por medidas enérgicas que deem fim à violência, por meio de uma zona de exclusão aérea. Somos sensíveis a esse chamado, entendemos e compartilhamos suas preocupações.”
O medo do Brasil parece ser que a zona de exclusão aérea descambe para uma ocupação terrestre, com todos os riscos que contém para a geopolítica do mundo árabe, para a suposta coerência da diplomacia brasileira e, obviamente, para os civis líbios. É um receio razoável, que todos nutrimos.
Abster-se, porém, é estar do lado de quem? Abster-se é lavar as mãos para um problema que nos é alheio e para um sofrimento que não nos diz respeito? Ou é confessar que compactuamos com todas as desconfianças possíveis e imagináveis em relação às intervenções militares?
Eis uma questão que, por enquanto, me abstenho de responder.

Tadeu Breda é jornalista, colunista do NR e vive em Latitude Sul (siga no Twitter @tadeubreda)

Um comentário:

Raphael Tsavkko Garcia disse...

A Resolução 1973, aprovada em 17 de março, por 10 a 0, com 5 abstenções, deixa clara a permissão aos Estados-membro da ONU de criar uma no-fly zone, ou seja, a proibição a qualquer avião líbio de sair do solo sob pena de serem abatidos. A resolução pode também ser interpretada como permissão para o bombardeio de aeroportos e de infra-estrutura usada para guardar aviões ou pistas usadas para pouso e decolagem.

E só.

A resolução, em momento algum, permite às forças dos EUA e aliados atacar palácios de Khadafi ou buscar derrubá-lo, assim como não permite o bombardeio de caminhões, carros e tanques militares em trânsito em qualquer parte da Líbia. Caminhões não voam, tanques não voam.

Os ataques "seletivos" que EUA e aliados vem fazendo contra instalações militares sem qualquer relação com a imposição de uma no-fly zone são, enfim, totalmente ilegais.

http://tsavkko.blogspot.com/2011/03/intervencao-militar-na-libia-resolucao.html

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