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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 22 de março de 2012

lé com cré

Tem muito garoto e muita garota pensando que o mundo começou no dia em que nasceram. Creem que a luz e o verbo se fizeram no momento em que abriram o berreiro saudando a vida. Ao ouvirem a referência a um fato anterior à própria existência dizem: "Mas eu nem estava aqui". Verdade. No entanto é verdade também que há, ao menos, dois tipos de memória. A pessoal que começa a contar da primeira lembrança de cada um, e a memória histórica.

Esta última trabalha quando abrimos os ouvidos para a memórias dos outros. Sobretudo para a memória dos velhos, gente que está no planeta faz tempo. Ou quando lemos nos livros e no São Google, vemos no cinema e no You Tube histórias de eventos em épocas passadas. Ou quando lemos biografias de pessoas que conheceram muitas outras pessoas, e que já morreram faz décadas e até séculos.

Outra fonte maravilhosa de memória histórica é a literatura. Com ela ficamos sabendo como as pessoas conservavam os alimentos antes da geladeira, caminhavam antes dos sapatos, se divertiam e se entediavam antes da internet e das redes sociais. Descobrimos como a garotada, de zil anos atrás, fazia para driblar costumes e censuras severamente mais rígidos do que os de hoje.

Vindo para o Brasil de 2012, escuto alguns jovens dizendo que a ditadura militar é passado longínquo ou que a escravidão dos negros foi no tempo do onça. Aliás, já explico: tempo do onça é um tempo muito antigo. Mais antigo do que a mãe da minha bisavó que já usava essa expressão. Do tempo do onça também se enquadram coisas em desuso. Por exemplo, o mata-borrão e o ventilador de fusca.

Mas não precisa pegar uma lupa, nem ter neurônios de gênio para observar que a escravidão e as ditaduras (porque o país viveu mais de uma, é claro) ainda derramam suas memórias negativas no presente tão presente quanto este instante em que você lê a última frase deste parágrafo.

Faz menos de quinze dias, a estudante de dezenove anos Ana Carolina foi impedida de entrar na sua escola em São Luís do Maranhão. Motivo: ela não estava com os cabelos alisados. Ostentava sobre a própria cabeça seus cachinhos naturais. Quem impediu a entrada? A diretora do colégio.

Num telejornal, Ana Carolina contou que a diretora perguntou: "Por que você usa seus cabelos assim?". Ela respondeu: "Porque quero manter minha identidade como negra". A diretora riu. Acho que não preciso didatizar a origem histórica desse episódio. Não preciso lembrar que o país viveu séculos de escravidão e de autoritarismo político.

Por felicidade essa história não ficou no barato. A estudante denunciou a diretora por discriminação racial. Ana Carolina teve essa coragem por causa de outras pessoas negras, muito antes de ela nascer, terem lutado para que o racismo virasse crime. A diretora está isolada, por causa de outras pessoas negras e brancas terem lutado e seguirem lutando para que a escola seja democrática e não concentre o poder na mão de diretores.

Além da memória histórica nos ajudar a fazer sinapses interessantes, ela amplia nossa imaginação. Eu nasci um ano e dois meses depois da morte de Getúlio Vargas – aquele que se matou com um tiro no peito e levou multidões para o seu enterro. Pois de tanto ouvir e ler sobre Getúlio e sua época, consigo fechar os olhos e imaginar o Brasil anterior ao meu nascimento.

Vejo escolares enfileirados cantando o hino nacional. Vejo meu avô tenentista, que não conheci, amargando anos de prisão. Vejo o presidente subindo as escadas do Palácio do Catete e entrando no seu quarto pela última vez. Vejo-o escrevendo a carta de suicida em que diz: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".

Epa, epa! Então a história começa depois da vida? A memória pode ser o outro nome da eternidade?

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina.

13 comentários:

Sara Eduarda disse...

Minha mãe, que está por aqui há 85, quase 86 anos diz que no tempo da onça era bem melhor...A memória oral em família é algo precioso, pois assim desvelamos um tanto de expressões, apelidos, informações que não estão nos livros, mas na memória afetiva que preservamos da gente mais antiga. Pena que a paciência não seja uma virtude da geração workaholick. Perdemos tesouros qdo. fechamos os ouvidos pros mais velhos.

Anônimo disse...

hi fie, sempre instigantes seus textos.
eu não sabia, mas aparentemente "Onça" era o apelido do Marquês de Pombal, que reconstruiu Lisboa depois do avassalador terremoto de 1755. Muita gente morreu e os portugueses evitavam tocar no assunto por muitos anos. Quando alguém lembrava a catástrofe, logo alguém mudava de assunto: "Isso é do tempo do Onça"'.
http://www.marioprataonline.com.br/obra/literatura/adulto/benedito/verbetes/tempo_do_onca.htm

bjs e aguardo ansiosamente o próximo texto.

ma

Viel disse...

Bravo! clap clap

Anônimo disse...

sempre falando daquilo que eu gosto de ouvir... beijos! inês

Anônimo disse...

Delicia de texto. Quem diria: Getulio como pedagogo filosófico, espalhando no tempo eternidade e história, e fêpompeu recolhendo as migalhas da memória para aglutiná-las em algo continuo; eterno. jsavio

Anônimo disse...

meu neto me convocou para uma entrevista de trabalho de escola, sobre diferenças no exercicio da profissão quando comecei e agora.Eles vão entrevistar pessoas de idades diferentes.Foi ótimo conversarcom ele e mais tres, e mais que tudo, saber que a pauta era da professora de Filosofia!!Pelas últimas notícias que se sabe,os diretores/as de escola andam pisando feio na bola, nos quesitos racismo,opção sexual,responsabilidades.De quantos anos precisamos para superar 30 anos de ditadura militar?

caio poká disse...

Meu interesse pela memória histórica veio só depois do cursinho... Acho que foi durante a faculdade. Como cursei engenharia, fiquei enjoado de tantos números e letras em forma de equações e, pela primeira vez na vida, senti fome de leitura. Dois acontecimentos felizes me ocorrem agora (e por isso sou grato à invenção do livro - ou da escrita - e do LP/K7/CD - ou da música). Gostaria de mencioná-los porque foram alegres como uma nova e intensa amizade que se forma. O primeiro foi conhecer apenas recentemente as obras de Paulo Freire (falecido em 1997, quando eu tinha 15 anos). O segundo foi poder ouvir na minha adolescência (e ainda hoje) o álbum "Black" do Metallica (gravado em 1991 - eu estava com 9 anos). Foram duas coisas que eu fui descobrir apenas alguns anos depois e que realmente foram muito importantes. Sou muito grato pelas técnicas de registro que nós humanos criamos. Aliás, quem foi que disse que máquina do tempos ainda não existe? ;o)

Anônimo disse...

Texto lindo,como sempre, Fernanda

Ainda bem que você existe e ajuda a recuperar e preservar nossas história

bj

Luciane Oliveira disse...

Lindo texto! Vou ler com meus alunos que acabaram de nascer e entrar na faculdade e estão escrevendo suas memórias... Obrigada!

Anônimo disse...

Muito bom texto, Fernanda. Parabéns, viajei! Fredo Sidarta, SP

Anônimo disse...

Tanto meu pai como minha mnãe tinham pouca instrução escolar, mas liam muito; o jornal dizia presente todos os dias em minha casa ( a última coisa que meu pai fez em vida foi tentar ler um jornal, coisa que não conseguiu). Ambos eram grandes contadores de história. Histórias familiares e de seus amigos, acontecimentos que tinham vivenciado (meu pai participou da Revolução de 32,que eu conhecia antes de aprender na escola, assim como as histórias de Alexandre Herculano e tantas, tantas outras histórias). Sua crônica de hoje me fez lembrar disso. Talvez esse gosto deles, o de relembrar do passado (e não era coisa de velho, faziam isso desde que me conheço por gente) tenha despertado em mim o amor pela História, que fui estudar na USP, no início dos anos 70, péssimo momento da ditadura militar.Durante mais de 30 anos, fui professora de História. E foi a História que me ensinou que "O passado está contido no presente" (idéia que, exposta assim dessa maneira, atribuo, sem muita certeza, a Benedetto Croce). E me entristeço pensando que essas novas gerações jamais saberão o que estão perdendo - em conhecimento, referências, sensibilidade etc - ao dizer com tanto orgulho:
- Como vou saber se eu nem tinha nascido?
Parabéns a você, pelo belo texto. Parabéns a Luciane Oliveira pela iniciativa de discuti-lo em sala de aula.
Cida Costa

Anônimo disse...

Gostei demais querida. Terezinha gonzaga

Fernanda Pompeu disse...

Quem tem leitoras e leitores tão generosos como vocês, não precisa de mais nada!

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