por Fernando Evangelista*
... E como ia dizendo, essa história de recolher giz, triturar tudo e espalhar pelas pás do ventilador de teto da nossa sala de aula, bem no dia da visita do governador do Estado, tinha tudo para dar errado.
Luciano teve a ideia e procurou dois cúmplices, Cristiano e eu. O plano foi traçado na escadaria do colégio, numa segunda-feira de novembro de 1988.
– Vai ser divertido.
– Acho arriscado.
– Que nada, é moleza.
Naquele ano, estudantes do colégio foram campeões brasileiros de xadrez e fizeram bonito na Olimpíada de matemática, conquistando uma medalha de ouro e outra de bronze.
Três dos integrantes da equipe de xadrez eram da nossa turma e por isso o governador passou na nossa sala, antes do evento oficial, para uma “saudação mais informal”.
A trupe oficial chegou, a regente deu as boas-vindas, o governador deu os parabéns para os “pequenos gênios do xadrez”, falou ainda sobre o trabalho em equipe, lealdade, honra e outras coisas bonitas e todo mundo bateu palmas e tudo bem ia bem até que alguém reclamou do calor.
– Liga o ventilador – ordenou a regente.
A partir daí, na minha memória, tudo acontece como se eu estivesse assistindo a um filme, daqueles da Sessão de Gala, quando existia Sessão de Gala, um típico filme B, exagerado nos closes e nas emoções.
Neste filme, o ventilador de teto aparece em primeiro plano, espalhando pó para todos os lados, lentamente. Corta. Closes em sequência dos olhos arregalados da madre superiora, da regente, dos alunos, das alunas e também da professora, que ainda não tinha aparecido nessa história. O governador permanece impassível, quase indiferente.
A câmera foca os alunos, de frente. Eu sou aquele lá no fundo da sala, à esquerda, pertinho da porta. Tenho medo desses homens engravatados, tenho medo da madre superiora, medo da regente e da neve falsa que continua a cair, devagar e sempre.
As meninas estão vestidas de saia bordô, camiseta bordô, casaquinho bordô, meias bordô e sapatos bordô. Os meninos estão também, de cima a baixo, de bordô - e tudo isso vai ficando branco, inclusive o hábito preto da madre, o cabelo da regente, os ternos dos assistentes do governador e o próprio governador parece, agora, bastante branco.
Não há trilha, só alguns gritinhos de espantos e tosses. Muitas tosses.
Luciano, mentor de tudo aquilo, está encolhido, quase desaparecendo, na pontinha da cadeira, queixo encostado à mesa. Cristiano, de cabeça baixa, parece petrificado. Me vejo outra vez: pálido, sem ar, arrependido. Por que me meti nisso?
Por respeito ao Luciano, provavelmente. O cara é o craque do time e, como todo craque, há meninas querendo namorar com ele. No fundo, todas as estripulias que a gente fazia se resumiam a três objetivos: chamar a atenção dos pais, afrontar professores e impressionar as meninas, principalmente impressionar as meninas. Aí a gente cresce, amadurece e... continua com os mesmos objetivos.
A neve continua a cair. Os homens do governador estão perfilados em frente à turma. Percebo que um deles me olha fixamente. É um olhar de acusação, de cão farejador, olhar de ameaça. Como ele poderia saber? Tento disfarçar, olho para os lados, mas me imagino com uma placa luminosa grudada na testa, dessas que piscam em vermelho à beira da estrada, em frente a hotéis sem categoria: Culpado!
Aquele homem sabia. Como ele poderia saber?
– Não imaginava que fosse ver neve hoje – disse o governador, quebrando o gelo, fingindo descontração.
Mas o governador é um homem sério, os homens do governador são sérios, a regente é séria e a madre superiora seriíssima. A turma, batizada-catequisada-quase-crismada, 100% católica, amedrontada por pecados e punições, também é séria.
Aquilo é sério pra cacete. É o suficiente para um processo de expulsão, no caso uma tripla expulsão.
– Senhores, foi um prazer – disse o governador, seguindo em direção à porta. Seus homens o acompanham, em fila.
Sentado na minha cadeira, lá no fundo, perto da porta, observo a marcha oficial e torço para que aquele homem-cão-farejador passe logo por mim e desapareça. Ele, porém, mantem o olhar e caminha na minha direção. Finalmente, ficamos frente a frente.
É muito mais alto do que imaginava. Ele me olha de cima a baixo e, sem mudar a expressão, sem levantar a voz, aperta o indicador de sua mão direita contra o meu peito magricelo e diz, marcando bem as quatro sílabas:
– De-sa-ca-to.
Que diabo significa aquilo?
O homem segue, cabeça erguida, mas a palavra gruda em mim. Ainda hoje, nas situações mais banais, a cena me vem à memória: o homem, o dedo, a acusação: “de-sa-ca-to”.
Apesar das investigações, pressões e centenas de ameaças, nunca ninguém descobriu quem tinha feito aquilo. E sabe por quê? Por uma razão bem simples e já citada: para impressionar as meninas, os mancebos (era assim que nos chamavam!) começarama reivindicar a autoria da ação.
Em menos de meia-hora, havia uns 40 culpados que, de peito aberto, contavam orgulhosos como tinha feito nevar na cabeça do governador, tudo nos mínimos detalhes.
Vendo aquela mentirada correndo solta, Luciano e Cristiano ficaram quietos. Eu, não, não gosto de mentira. E aí, para quem quisesse ouvir, confessei minha participação naquele ato subversivo. Eu, sim, eu mesmo, eu, mancebo desengonçado e rebelde, era um dos autores daquele feito.
Ninguém acreditou em mim.
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Fernando Evangelista é jornalista, mantém a coluna semanal Desacato.
Um comentário:
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