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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

O dia em que fizemos nevar na cabeça do governador (Parte 1)

por Fernando Evangelista*

A ideia foi do Luciano:

– Vamos pegar giz e triturar.

– Giz? Pra quê?

Ele explicou. Cristiano achou a coisa muito arriscada, eu também achei, mas a gente topou, a gente sempre topava as maluquices do Luciano. Ele tinha moral, era o artilheiro do nosso time.

Na escola, com aquele esquema de notas e competições, se aprende que para ser respeitado é preciso ser “o mais” em alguma coisa: ou o mais inteligente ou o mais valente ou o mais bonito ou o mais cdf ou o mais engraçado e, num colégio de freiras, também vale ser o mais católico. Luciano era o mais habilidoso – fazia gols em todas as partidas e de todos os jeitos.

Estávamos na escadaria do colégio. Era uma segunda-feira de novembro de 1988, por volta do meio-dia. O plano seria executado ainda naquela semana e coincidiria com a visita, em carne e osso, do excelentíssimo governador do Estado.

–  Combinado?

Sim, claro, vamos nessa. E foi cada um para a sua casa, cabeça erguida e olhar atento, imitando a pose destemida dos fora da lei que a gente via no cinema.

Naquele ano, a equipe de xadrez do colégio sagrou-se campeã nacional nos jogos de Pernambuco, título inédito, que rendeu prêmios e viagens para os vencedores. Três desses jogadores estudavam na nossa sala; três nerds inteligentes e antipáticos que andavam sempre juntos e não falavam com mais ninguém. E, pela primeira vez, a Olimpíada Brasileira de Matemática fora conquistada por uma catarinense, ela também estudante do colégio, só que do período vespertino.

Como prova de reconhecimento oficial do Estado, o governador iria cumprimentar, pessoalmente, os gênios do xadrez e a menina prodígio da matemática. As homenagens ficaram agendadas para a sexta-feira, no período da manhã, no ginásio principal da escola.

Antes, porém, a pedido do próprio governador, ele passaria na nossa sala para uma saudação informal. O plano foi pensado para aquela sexta, mas começaria na manhã de quarta, bem cedo, antes do sinal.

Corredores ainda vazios, com duas sacolas de feira, nós três recolhemos giz em todas as salas do primeiro andar, em todas as salas do segundo e em todas as salas do terceiro. Exceto o encontro inesperado com a Irmã Veronice, na curva do corredor, correu tudo bem.

– O que é isso? – ela quis saber, olhando para as nossas sacolas.

– Maçãs – respondi. – A senhora quer uma?

Ela não quis.

Fomos embora antes das aulas começarem. Passamos a manhã triturando giz no quarto do Cristiano, num edifício rosa de três andares, pertinho do colégio. Era giz que não acabava mais e aquilo desencadeou em nós espirros em série. Achamos engraçado, a gente achava tudo engraçado naquela época.

Na quinta-feira, colocamos o pó dentro de sacolas plásticas de supermercado e essas a gente socou dentro das nossas mochilas, que ficaram redondas e pesadas. O plano foi concluído no fim da manhã, ao meio-dia.

Luciano improvisou uma escada, com mesa e duas cadeiras, no meio da nossa sala de aula. Cristiano subiu e foi colocando montanhas de giz triturado nas hélices do ventilador. Eu fiquei na porta, à espreita de algum inimigo. Não apareceu ninguém, nem a Irmã Veronice.

No dia D, sexta-feira, depois de duas aulas seguidas de matemática, a Madre Superiora e a regente apareceram para dar a notícia:

–  O governador chegou.

Descobri naquele instante que governador nunca anda sozinho, está sempre rodeado de assistentes – um segura a pasta, outro segura o discurso, um controla o tempo, outro controla a multidão, quando há multidão, e assim por diante. Os homens do governador, de terno-gravata-e-sapatos-encerados, entraram porta adentro – e de repente a sala ficou apinhada de sobrenomes importantes.

Com fama de autoritário e antipático, o governador chegou feliz, distribuindo cumprimentos e sorrisos, como nos bons tempos da campanha eleitoral. – Fiz questão de vir aqui, pessoalmente, para dar os parabéns à equipe de xadrez, vencedora do prêmio nacional.

Aplausos orgulhosos da turma. Os três alunos se levantaram e, orientados pela Madre Superiora, agradeceram. Mais aplausos. O governador, ex-aluno do colégio, falou rapidamente sobre honra e outras coisas bonitas. E já estava quase indo embora, quando alguém reclamou do calor.

– Liga o ventilador – ordenou a regente.

Nunca, até então, eu tinha ficado paralisado de medo. E quando digo paralisado não é força de expressão, não. Fui dominado por uma terrível sensação de arrependimento. Luciano escorregou a bunda pela cadeira, tentando sumir ou se desintegrar. Cristiano permaneceu de cabeça baixa, fingindo ler alguma coisa no caderno.

“Vai dar merda”, foi a única coisa que pensei. E deu.

(Continua na terça-feira que vem).

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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato

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