por Carlos Conte ilustração Caco Bressane*
Conhecem o último corujão da Lapa? Fica na rua Guaicurus, próximo ao Mercado, aonde eu ia com a minha avó fazer compras quando criança. De dia, o comércio popular fervilha, os estudantes indo e vindo, as padarias cheias, as lotéricas cuspindo filas de gente para as calçadas, os taxistas pitando e vendo TV no ponto. Mas é o sol baixar um pouco, as persianas vão se fechando, as portas metálicas ficam semicerradas, o povo nervoso quer espaço para voltar para casa, árvores escurecem o passeio e, daí pra frente, as almas descem às ruas pra dar suas bandas. Só permanecem abertas as pizzarias delivery e o bar do Silvinho, o último corujão do bairro da Lapa, certamente um dos últimos fecha-nunca da cidade.
A censura aos bares andou degolando muita gente nos últimos tempos. As multas são tão altas que a maioria vai à falência. Quando batem as dez da noite, todos os donos de bar de São Paulo tornam-se figuras preocupadas, ansiosas, com medo de servir. Põem a conta na mesa sem o cliente pedir, oferecem uma saideira, porque os vizinhos... ai, os vizinhos... lamentam-se. Só no Silvinho que não. Lá não existe Lei do Psiu e às dez a noite está apenas começando.
É por volta das sete e meia que as portas se levantam e só vão se fechar lá pelas seis da madrugada. Não se ouve falar de reclamação ou problema com a polícia. Pelo contrário. Os policiais acenam das viaturas fazendo ronda. E o Silvinho acena de volta. Seu sócio, o Lagarto, tem cara mesmo de lagarto, ou de crocodilo, com seu papo gordo e sua barriga inchada. Todos ali têm barriga inchada, como se estivessem de oito meses, a ponto de explodir.
Parece que o bar inteiro está assim: a ponto de explodir. A impressão é de que alguma coisa grave pode acontecer a qualquer momento. Respira-se sujeira nesse bar. O ar é impregnado de futum de fossa, de catinga de bueiro. Enquanto os barrigões se encostam, alguém bebe sozinho, triste. Dois bêbados, um deles usando um uniforme de funcionário da CET, o outro de jaqueta de couro, gastam todas as suas moedas ouvindo Zé Ramalho na jukebox. Na frente, alguns carros de luxo estacionados. Seus donos são sujeitos simpáticos, quase sempre calvos, morenos, cinquentões, que conversam entre si em roda, mas também interagem com o restante do pessoal. São os policiais civis, todos sabem. Os caras têm grana mas preferem beber no Silvinho. Não sei por que o bar do Silvinho virou o reduto dos policiais civis do bairro da Lapa. E dos bandidos também. A legião de jogadores ali tem salvo-conduto para entrar e sair quantas vezes quiser pela porta do salão dos fundos, onde ficam as maquininhas caça-níqueis, proibidas por lei. Também não se sentem constrangidos os que, em dupla, em trio ou em bando entram no banheiro para cheirar. Todo mundo sabe que é o motoboy da rua Fábia quem passa a farinha.
Um vendedor de frutas deixa o carrinho na calçada e pede Cynar com 51. Pedreiros e pintores tomam sua sopa em silêncio. Do balcão dá pra ver os caldeirões soltando vapor. O meu preferido é o caldo de piranha, que dizem ser afrodisíaco. Todos os vícios andam por lá. O bar do Silvinho é o refúgio da boêmia assustada da cidade. Bolos de dinheiro entram e saem pela porta a todo instante. Maços de notas de dez vão e vêm, maceradas pela agitação nervosa da noite.
Ali eu sempre encontro o Otávio, um amigo do meu falecido avô. Quando termina o expediente na cantina, onde trabalha há décadas como garçom, desce em direção ao Silvinho, mas fazendo o pinga-pinga de sempre nos botecos do itinerário. Chega com as mãos no bolso, de camisa branca de manga comprida, os cabelos amarelados penteados para trás com gel, a cara cheia de rugas. Cumprimenta um por um, conhecendo ou não, mostrando sua boca vazia de dentes, porém cheia de afeto. Tem dias em que o Otávio parece uma alma penada.
Enquanto isso, os jovens, não menos decadentes, ficam em pé na entrada, curvados, ou encostados nas paredes, de moletom, boné e calça jeans, bebendo litrão. A maioria dos bandidos (assaltantes, traficantes) está entre eles. Todos se conhecem. Há amigos de infância nessas rodas. Mesmo os estranhos são bem recebidos, porque podem ser conhecidos de alguém, não se sabe... Em lugares como o bar do Silvinho não se veem muitas confusões, porque pouca gente se arrisca a ver no que vai dar... De vez em quando o Silvinho ou o Lagarto é obrigado a tocar dali um beberrão inconveniente, e ainda assim o faz com naturalidade e delicadeza, que nem se percebe. Não tem brigas. Não tem gritos. Há um entendimento superficial, um acordo velado, nos cumprimentos, nas saudações, mas é impossível não sentir, no meio do vapor dos caldeirões e da fumaça dos cigarros, no último corujão da Lapa, vestígios de pólvora, sangue e crime.
* Carlos Conte, sociólogo e cronista, mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Caco Bressane, arquiteto e ilustrador, especial para o texto
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