“Um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre” (Plínio Marcos)
Preservar a cultura brasileira que brota espontânea, autêntica e livre, escondida e marginalizada pela indústria cultural é trabalho árduo. É batalha para pessoas que acreditam no poder da arte popular como instrumento de emancipação social e política. É compromisso para aqueles que desafiam regras, imposições, censura e perseguições, mas não arrefecem até que a beleza contida em versos, melodias, traços e cores prevaleçam. Quem compra essa briga, quem encara esse desafio é, de fato, herói. Proibido, maldito. Herói maldito. Abram alas para o maior de todos os heróis malditos: Plínio Marcos, dramaturgo, ator, escritor, diretor, jornalista, palhaço. Defensor incansável da cultura popular. Sambista.
Plínio Marcos foi o dramaturgo que mais incomodou a ditadura militar. Sua linguagem do submundo, das “quebradas do mundaréu”, dava voz a marginais e marginalizados. Autor de clássicos que passaram décadas proibidos pela censura, como Barrela e Navalha na Carne, tinha um texto duro e expunha, de forma latente, a realidade de uma camada social que não existe aos olhos de quem não quer vê-la. Ao expô-la, colocando-a dentro dos palcos, incomodava. Em tempos onde a mão de um censor pesava mais que a caneta do artista, incomodar significava ser proibido. Maldito.
Mas a paixão pelo samba e a necessidade de apresentar ao público histórias e músicas de compositores desconhecidos, provenientes das Escolas de Samba da capital paulista – anônimos, gênios de pouca popularidade –, não podia ser calada. E Plínio Marcos cantou e contou as histórias “dessa gente que só berra da geral sem nunca influir no resultado”.
Acompanhado pelos Pagodeiros da Pauliceia, promoveu espetáculos em teatros de São Paulo. Destas apresentações, nasceram dois espetáculos, que posteriormente foram registradas em LPs: Balbina de Iansã, em 1971, e Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu, em 1973 (este último, relançado em CD em 2012, pela Warner Music). Os sambistas ainda atuariam em outra peça, Jesus Homem, em 1981.
“Não posso aceitar o mundo sem a participação cultural de um povo onde me criei. Não posso aceitar o mundo sem berimbau, caipirinha, bumba meu boi, sem feijoada, sem farofa, sem macumba” (Plínio Marcos)
Apaixonado pela produção realizada pelos sambistas da terra da garoa, Plínio Marcos batalhou intensamente pela valorização destes artistas populares. Isto não o impediu, entretanto, de valorizar os batuqueiros cariocas. Em 1964, teve censurada, poucos meses após o golpe militar, a peça Nossa gente, nossa música, que reunia compositores como Elton Medeiros e Haroldo Costa. Depois, em 1977, escreveria, contando com a ajuda de pesquisa de seu grande amigo José Ramos Tinhorão, a peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus amores. Finalmente, em 1988, começou a escrever uma peça em homenagem a Francisco Alves, o Chico Viola, mas não deu continuidade ao projeto.
Apesar deste flerte com o samba carioca, eram os compositores da Pauliceia que o cativavam. Eram aqueles anônimos, legítimos poetas do povo, que Plínio Marcos buscava exaltar. Hoje, apesar do esforço do “herói maldito” do Brasil, a maioria dos brasileiros segue desconhecendo estes sambistas.
Quem são os Pagodeiros da Pauliceia?
Geraldo Filme. Natural de São João da Boa Vista, veio para São Paulo ainda na infância, indo residir no bairro da Barra Funda, reduto de samba da capital paulista. Participou ativamente do carnaval paulistano, tendo composto sambas para cordões e Escolas de Samba como Paulistano da Glória, Unidos do Peruche e Vai-Vai.
Geraldão da Barra Funda, como era conhecido nas rodas de samba, frequentou o Largo da Banana, os festejos de sambistas em Pirapora do Bom Jesus e as rodas de tiririca – prima paulista da capoeira baiana e da batucada carioca.
Em 1980, lançou seu único disco solo, Geraldo Filme, pela gravadora Eldorado. Dois anos depois, ao lado de Clementina de Jesus e Tia Doca, lançou O Canto dos Escravos. Com Plínio Marcos, participou dos espetáculos Balbina de Iansã e Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu.
Zeca da Casa Verde. José Francisco da Silva, classificado por Plínio Marcos como um dos mais inspirados melodistas de São Paulo, nasceu, viveu e morreu na capital paulista. Integrou a Ala de Compositores de Escolas de Samba como Camisa Verde e Branco, Morro da Casa Verde e Rosas de Ouro, onde marcou época, sendo considerado um dos maiores baluartes da agremiação.
Zeca da Casa Verde traz a herança dos sambas rurais, das congadas, onde seu pai, Zé Maquininha, era rei. O compositor participou das três peças em que Plínio Marcos apresentou os sambistas de São Paulo: Balbina de Iansã, Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu e Jesus Homem.
Toniquinho Batuqueiro. Nascido em Piracicaba, Antônio Messias de Campos, desde menino, teve contato com manifestações culturais do interior paulista, como o “samba de toco” – praticado com o tambu, instrumento de percussão feito a partir de um tronco de árvore – e o cururu. Em São Paulo, participou das rodas de samba de engraxates na Praça da Sé feitas com os instrumentos de trabalho destes sambistas, batucando com a escovinha na caixa de madeira.
O sambista compôs sambas de enredo e de quadra para a Rosas de Ouro, Unidos do Peruche e Unidos de Vila Maria e, em 1995, fundou a Embaixada do Samba Paulista, tendo sido eleito, no mesmo ano, o primeiro “embaixador”. Em 2009, aos 80 anos de idade, lançou seu primeiro e único disco de carreira, pela série “Memória do Samba Paulista”. Suas belas melodias, carregadas de influência de samba rural, no entanto, já haviam sido registradas nos discos Balbina de Iansã e Nas quebradas do Mundaréu, lançados nos anos 70.
Talismã. Poeta carioca que fez história no samba paulista, Octávio da Silva integrou a Escola de Samba Unidos de Rocha Miranda, na capital fluminense, antes de vir para o Camisa Verde e Branco, em 1967, pelas mãos de Inocêncio Tobias, figura lendária da agremiação da Barra Funda. Além de exímio compositor, era artista plástico e possuía grande habilidade para fazer esculturas em papel machê – os carros alegóricos feitos por ele nos carnavais tiravam sempre nota máxima.
Autor do hino do Camisa Verde e Branco, compôs, também, o samba enredo que é considerado o hino do samba paulista, “A Biografia do Samba”, que levou a agremiação ao título no carnaval de 1969. Integrou, ainda, as Escolas de Samba Rosas de Ouro, Morro da Casa Verde, Mocidade Alegre e Unidos de Vila Maria, tendo contribuído com incontáveis sambas de enredo e de quadra para o Carnaval paulista. Com Plínio Marcos, participou de Balbina de Iansã e Jesus Homem.
Silvio Modesto. Outro carioca que veio para São Paulo fazer samba – ainda nos anos 60 – e não voltou mais, é o único sambista vivo que atuou com Plínio Marcos nos Pagodeiros da Pauliceia e nas peças de teatro. Além de cantar e atuar como ator em Balbina de Iansã, também participou de Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus amores.
Figura de grande importância para o Carnaval de São Paulo e do Rio de Janeiro, compôs vários sambas de enredo, tendo emplacado na avenida mais de 20. Ritmista, acompanhou grandes nomes do samba em apresentações e discos – o sambista estava presente na última gravação ao vivo de Cartola. Em 2005, lançou seu único disco de carreira, Oficina do Samba.
Jangada. Sambista e jornalista, compositor e carnavalesco. Marco Aurélio Guimarães é natural do Rio de Janeiro e veio para São Paulo trabalhar nas redações de jornais. Depois de ter passado por várias Escolas cariocas, como a Unidos de Lucas – da qual foi fundador –, Vila Santa Tereza e Independentes do Zumbi, atuou de maneira enfática no Carnaval paulistano, integrando diversas agremiações e tendo ajudado, inclusive, a criar o primeiro regulamento oficial de um desfile, em 1968.
As melodias magistrais de Jangada foram registradas no álbum Balbina de Iansã. O sambista, um mestre do jornalismo esportivo, também atuou, com Plínio Marcos, no espetáculo Jesus Homem.
Escute o samba "Ditado antigo", de Toniquinho Batuqueiro, com o próprio autor. A gravação é do álbum Nas quebradas do mundaréu.
André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês. Ilustração de Kelvin Koubik, colunista do NR, é artista visual e músico de Porto Alegre
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