Essa opinião do sociólogo Ricardo Musse integra parte da matéria "o que pensam os intelectuais da esquerda" da revista Caros Amigos, edição de setembro. Essa análise é também o meu ponto de vista sobre toda essa canalhice política. Deixo aqui registrado, pois é crucial que tenhamos um olhar diferenciado sobre todo esse processo.
Ricardo Musse, doutor em filosofia e professor no Departamento de Sociologia da USP, nunca foi filiado ao PT, mas se diz militante do partido.
“Não há como deixar de considerar o governo a partir da crise política em que se deixou enredar. Foram 25 anos para chegar ao poder e pouco mais de 25 meses para colocar alguns de seus principais dirigentes no banco dos réus. Independentemente do poder econômico e político da oposição – de seus métodos e aliados no submundo –, houve um erro monumental na gênese desse fracasso, no mínimo por subestimar ou não identificar o adversário. O ‘grande organizador da derrota’ foi a tibieza em promover mudanças, a estratégia de continuidade na economia, na administração e na política. A fração petista no poder revelou-se alma gêmea do tucanato, desde a transição que virou coabitação até o neoliberalismo mitigado que abraçou como programa de governo. Há uma teia de causas e efeitos em tudo isso, um encadeamento nem sempre visível na mídia, que transforma a denúncia em espetáculo: a política econômica neoliberal só se mantém pela via da subordinação dos interesses populares ao poder econômico, pela mercantilização das consciências e da representação política, partidária, sindical etc. Hoje, o governo agarra-se à falsa expectativa de que agradando ao poder econômico não será destroçado, e dá-lhe cada vez mais do mesmo, ampliando a estratégia de capitulação que é a própria fonte do fracasso. Ao mesmo tempo busca o apoio das massas, ameaçando reeditar dinâmicas típicas da história do populismo no continente. A estratégia de ‘união nacional’, ensaiada desde o início do governo, a tentativa de se apresentar como ponto de confluência de movimentos opostos – do agronegócio e da reforma agrária, dos transgênicos e do ambientalismo, dos banqueiros e do setor produtivo, do capital e do trabalho – corre o risco ainda maior de desagradar a todos. Hoje, a nossa esquerda sofre de melancolia. Uma crise de legitimidade assola todas as instâncias do poder – o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a mídia, o Exército, as igrejas etc. – e a esquerda imobiliza-se em discussões estéreis – é ou não golpe, querem ou não o impeachtment, deve defender ou não Lula – e não vê a oportunidade histórica de mobilizar os trabalhadores e os setores populares, de apresentar uma solução de esquerda para a crise. Uma das virtudes da crise é a desmistificação de ilusões, em especial da expectativa de que o capitalismo não seja a própria barbárie. Mas tenho me angustiado muito com a imaturidade e fragilidade da esquerda – com as exceções de sempre, como o MST. Uma parcela da esquerda, as ‘boas almas’, vê a conjuntura como uma reiteração de sua previsão de que não se deve lutar pelo poder e de que convém entregar o galinheiro às raposas. Outra, ‘exibicionista’, comporta-se como caudatária do PFL e da mídia. Há ainda alguns que, mesmo tendo alertado para os equívocos da fração dominante no PT, vestem a carapuça e propõem uma atualização dos rituais medievais de autoflagelação em praça pública. Agora e sempre, a tarefa da esquerda é uma só: organizar e mobilizar os trabalhadores e os setores populares. Numa sociedade em que todas as relações estão assentadas no dinheiro, só há uma força capaz de se contrapor a isso: a ação política das massas. O PT, apesar dos desvio de sua antiga direção, ainda é o espaço partidário mais democrático e representativo dos anseios de mudança. É o resultado da ação social de milhares de militantes anônimos que dedicaram parte de suas vidas a mudar o país, um legado que não pode ser usurpado.”
“Não há como deixar de considerar o governo a partir da crise política em que se deixou enredar. Foram 25 anos para chegar ao poder e pouco mais de 25 meses para colocar alguns de seus principais dirigentes no banco dos réus. Independentemente do poder econômico e político da oposição – de seus métodos e aliados no submundo –, houve um erro monumental na gênese desse fracasso, no mínimo por subestimar ou não identificar o adversário. O ‘grande organizador da derrota’ foi a tibieza em promover mudanças, a estratégia de continuidade na economia, na administração e na política. A fração petista no poder revelou-se alma gêmea do tucanato, desde a transição que virou coabitação até o neoliberalismo mitigado que abraçou como programa de governo. Há uma teia de causas e efeitos em tudo isso, um encadeamento nem sempre visível na mídia, que transforma a denúncia em espetáculo: a política econômica neoliberal só se mantém pela via da subordinação dos interesses populares ao poder econômico, pela mercantilização das consciências e da representação política, partidária, sindical etc. Hoje, o governo agarra-se à falsa expectativa de que agradando ao poder econômico não será destroçado, e dá-lhe cada vez mais do mesmo, ampliando a estratégia de capitulação que é a própria fonte do fracasso. Ao mesmo tempo busca o apoio das massas, ameaçando reeditar dinâmicas típicas da história do populismo no continente. A estratégia de ‘união nacional’, ensaiada desde o início do governo, a tentativa de se apresentar como ponto de confluência de movimentos opostos – do agronegócio e da reforma agrária, dos transgênicos e do ambientalismo, dos banqueiros e do setor produtivo, do capital e do trabalho – corre o risco ainda maior de desagradar a todos. Hoje, a nossa esquerda sofre de melancolia. Uma crise de legitimidade assola todas as instâncias do poder – o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a mídia, o Exército, as igrejas etc. – e a esquerda imobiliza-se em discussões estéreis – é ou não golpe, querem ou não o impeachtment, deve defender ou não Lula – e não vê a oportunidade histórica de mobilizar os trabalhadores e os setores populares, de apresentar uma solução de esquerda para a crise. Uma das virtudes da crise é a desmistificação de ilusões, em especial da expectativa de que o capitalismo não seja a própria barbárie. Mas tenho me angustiado muito com a imaturidade e fragilidade da esquerda – com as exceções de sempre, como o MST. Uma parcela da esquerda, as ‘boas almas’, vê a conjuntura como uma reiteração de sua previsão de que não se deve lutar pelo poder e de que convém entregar o galinheiro às raposas. Outra, ‘exibicionista’, comporta-se como caudatária do PFL e da mídia. Há ainda alguns que, mesmo tendo alertado para os equívocos da fração dominante no PT, vestem a carapuça e propõem uma atualização dos rituais medievais de autoflagelação em praça pública. Agora e sempre, a tarefa da esquerda é uma só: organizar e mobilizar os trabalhadores e os setores populares. Numa sociedade em que todas as relações estão assentadas no dinheiro, só há uma força capaz de se contrapor a isso: a ação política das massas. O PT, apesar dos desvio de sua antiga direção, ainda é o espaço partidário mais democrático e representativo dos anseios de mudança. É o resultado da ação social de milhares de militantes anônimos que dedicaram parte de suas vidas a mudar o país, um legado que não pode ser usurpado.”
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