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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Quem lembra dos precatórios?

Com tantas notícias e escândalos de corrupção, trago um caso esquecido, porém um dos mais célebres da história do país. É mais um capítulo dos amigos Maluf e Pitta.
Quem lembra dos precatórios?

O “Escândalo dos Precatórios” gerou uma CPI em 1997, mas a falcatrua começou em 1995. A história foi badalada e a sacanagem com o dinheiro público cabeluda. Coisa para mais de 5 bilhões de reais (em valores atualizados). As fraudes com os títulos públicos aconteceram nas prefeituras de São Paulo, Guarulhos, Osasco e Campinas e nos Estados de Santa Catarina, Alagoas e Pernambuco. Os principais envolvidos são Paulo Maluf e Celso Pitta, ex-prefeitos de São Paulo, Divaldo Suruagy, ex-governador de Alagoas, Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, Paulo Afonso Vieira, ex-governador de Santa Catarina, e os peixes pequenos, mas não menos importantes, como Wagner Baptista Ramos, ex-coordenador da dívida pública municipal de São Paulo, considerado “o cabeça” do esquema que aquecia os precatórios. Após várias denúncias foi instaurada no Senado Federal uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), que no seu relatório final acusou dezessete pessoas (entre as citadas acima) e 161 instituições financeiras.
O jornalista Luís Nassif, que investigou o escândalo, explica: “A CPI começou em cima de um pequeno banco, o Vetor. Sabia-se da aprovação da emissão de títulos públicos para pagamento de precatórios, mas pelos valores me pareceu impossível um banco pequeno como o Vetor conduzir o processo. No decorrer das minhas investigações deu para perceber que era um enorme esquema que envolvia caixinhas políticas, subfaturamento, mercado de títulos estaduais e fundos off-shore”.
Antes do esquema malandro, vamos às explicações passa a passo. O precatório é um documento em que o Estado ou município reconhece uma dívida – dívida calculada pela Justiça e sem possibilidade de recurso ou contestação. Decorrem, por exemplo, mas não só, de ações por desapropriação de terrenos e processos trabalhistas. Funciona assim: quando um juiz anuncia uma sentença, por exemplo, condenando um Estado, envia um documento (um precatório) ao tribunal responsável e pede que esse tribunal determine ao Estado devedor a inclusão do pagamento desse precatório no orçamento dos anos seguintes. Aí entra a malandragem, de uma brecha legal da emenda constitucional nº 3, de 1988, que permite aos Estados e municípios a emissão de títulos públicos (letras financeiras do Tesouro Municipal ou Estadual negociáveis no mercado financeiro) com o objetivo de antecipar arrecadação de dinheiro para pagar os precatórios. Eis aí um dos caminhos da corrupção, já que as emissões desses títulos pelos acusados eram superiores ao necessário para quitar os precatórios. Um dos trunfos de Wagner Ramos para superfaturar a quantidade de títulos era embutir a correção monetária nos precatórios que seriam saldados: “Descobriram uma brecha na legislação que permitia manipular cálculos de dívidas pré-Constituição para justificar os precatórios. O Senado aprovou a primeira operação para a cidade de São Paulo, tendo Maluf como prefeito. Ele percebeu que era um negócio bom e resolveu terceirizar, chamando o Banco Vetor e seu assessor, Wagner Ramos. Para ser esquentado, o dinheiro passava pelos canais dos títulos estaduais, operações esquenta-esfria em bolsas, doleiros etc. Era um sistema de corrupção, que terminou abafado e sem ação nem do Banco Central nem da Receita Federal”, diz Nassif.
Para outro jornalista, Rogério Pacheco Jordão, autor das primeiras reportagens que denunciaram as irregularidades com os títulos públicos da prefeitura de São Paulo – "Como Pitta deu um prejuízo de R$ 1,7 mi para SP em único dia" e "Celso Pitta: rombo pode chegar a R$ 10 milhões", publicadas no Jornal da Tarde, o desfecho das investigações foi decepcionante: “Era uma CPI propícia a seguir o dinheiro. Sabe aquela coisa do garganta profunda que falava pro jornalista do Washington Post ‘follow the money’? Essa dos precatórios teve todas as chances e condições de seguir o dinheiro, mas não seguiu”. Nassif emenda: “Quando o quadro ficou claro, ocorreu uma ampla manobra de abafamento. O relatório final acabou terminando em meia pizza”.
Essa operação abafa é citada, mas em off, por pessoas que acompanharam a CPI. Segundo relatos, quando Lázaro de Mello Brandão, então presidente do Banco Bradesco S.A. depôs na CPI, o clima amainou. Segundo noticiário do jornal Folha de S. Paulo, os depoimentos de Lázaro e do seu vice, Ageo Silva, “dividiram a CPI do Senado sobre a suposta participação de grandes bancos nas irregularidades com títulos públicos”.
O relator da CPI, Roberto Requião (PMDB-PR), oito anos depois, em recente entrevista de capa a Caros Amigos, declarou: “Fiz a CPI dos Títulos Públicos e joguei para a platéia, joguei para a mídia, se não jogasse pra mídia, não teria aprovado meus relatórios. Mas não foi suficiente, pois o plenário do Senado aprovou relatórios duríssimos e logo depois o Fernando Henrique impôs a legalização dos títulos com o pretexto de que desestruturava o sistema financeiro nacional. ‘Esse roubo tem que ser relevado porque senão quebram os bancos.’ (teria dito FHC) Ele preferiu quebrar os Estados. (...) E aumentando os prazos de pagamento, empurrando o pepino para os Estados, para salvar o quê? Supostamente, para salvar os bancos. Que importância teria quebrar um banco ou outro no Brasil? O que não pode quebrar é o Brasil.”
Encerrado em 1997, o relatório final da CPI estimou em quase 240 milhões de dólares o estrago nos cofres públicos: Pernambuco emitiu 480 milhões de reais em títulos, mas pagou somente 25 milhões. Em Santa Catarina foram emitidos 605 milhões, dos quais 34 milhões quitaram precatórios. São Paulo foi de longe o caso mais absurdo: de 1 bilhão e 500 milhões de arrecadação com os títulos públicos, somente 300 milhões foram usados para quitar precatórios. Ou seja, 1 bilhão e 200 milhões foram aplicados em outras finalidades. Quais finalidades? Nem o Ministério Público sabe dizer, já que o dinheiro não é carimbado. O leitor fique à vontade para imaginar o destino dessa grana toda.
Com o relatório final da CPI nas mãos, o Ministério Público (esferas federal e estaduais) processou os envolvidos. Alguns caíram rápido politicamente, como Divaldo Suruagy, que renunciou ao cargo de governador em 1997. Paulo Afonso Vieira escapou da cassação, em votação na Assembléia Legislativa catarinense, porque faltaram dois votos para aprovar o pedido de impeachment.
Em São Paulo, o MPE propôs três ações civis públicas de improbidade administrativa. Ao todo, foram processadas 34 pessoas, físicas e jurídicas, dentre as quais vinte instituições financeiras, entre elas o Banco Bradesco e o Vetor. Celso Pitta e Wagner Ramos foram condenados, em segunda instância, à suspensão dos direitos políticos por oito anos, perda dos cargos e ressarcimento aos cofres públicos da quantia desviada (21 milhões corrigidos), mas eles recorreram em novembro de 2004 ao Superior Tribunal Federal.Em outro processo, Paulo Maluf também responde como réu e foi condenado, em sentença de primeira instância, a pagar uma multa equivalente a até cem vezes o salário de prefeito. O fato é que oito anos depois nenhum deles foi condenado definitivamente devido à morosidade da Justiça e à velha problemática de vários recursos judiciais que protelam durante anos a sentença final. Efetivamente, só tiveram seus bens bloqueados e as instituições financeiras (as menores) foram fechadas. Maluf, Pitta e Ramos, no processo criminal movido pelo MPF, se condenados, estão sujeitos a pena de um a cinco anos de prisão. As sentenças finais podem levar muitos anos e os acusados nem estar vivos. A justiça tarda, mas não falha. Será?


Thiago Domenici é jornalista

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