por Nina Madsen*
Nunca deixa de me surpreender a insistente e, muitas vezes,
dramática convivência de avessos no campo da cultura e das mentalidades e de
tudo que a partir delas se produz para regular nossa vida em sociedade. É quase
como se os universos paralelos de fato se materializassem e coexistissem,
permitindo que diferentes tempos históricos passassem a avizinhar-se no
espaço-tempo presente.
Aplicando essa reflexão ao campo dos direitos das mulheres
especificamente, a feminista Emily Hicks propôs, na década de 1960, o conceito
de heterocronia, em oposição ao de sincronia, para dar conta desse fenômeno: a
incoerência dos avanços, ou o descompasso entre avanços, permanências e
retrocessos no campo dos direitos humanos e todas as suas derivações.
Pois a heterocronia me espanta sempre, como eu dizia. No
Brasil, parece-me chocante termos gente como Erika Kokay, Luiza Erundina e Jean
Wyllys de um lado, e gente como Bolsonaro, Eduardo Cunha e Feliciano de outro.
No mesmo Parlamento. Ao mesmo tempo. Representando cada qual milhares de
criaturas que convivem (serão vizinhos, familiares, amigos, colegas) e que
votaram no mesmo dia, quiçá na mesma hora, cada qual em um candidato, mas
também em um tempo histórico particular, em uma mentalidade diferente.
Aqui no estrangeiro, duas notícias me chamaram a atenção
esses dias. Primeiro, uma lei estadual pendente de sanção do governador do
estado de Indiana que, ao reconhecer o direito à livre manifestação religiosa,
na verdade, camufla a permissão para a prática deliberada da discriminação
contra LGBTs (leia mais aqui).
Soa familiar? No rádio, transmitem o governador desconversando ao ser
questionado: “Com essa lei, passa a ser legal em seu estado que um restaurante
se recuse a atender um casal homoafetivo, governador?”.
A discussão está quentíssima e a pressão para que a lei não
seja sancionada é enorme. Diversos estados, como Washington e Connecticut, já
anunciaram boicotes caso a lei entre em vigor (leia mais aqui).
Grandes empresas, como a Apple, também se manifestaram contra a proposta (aqui).
Já a outra notícia anuncia a abertura de uma nova clínica de
aborto no estado de Maryland, aqui do lado, com direito a outdoor e tudo.
“Aborto. Sim, a gente faz”, diz a campanha pra lá de corajosa.
“Nós não
queremos sussurrar sobre o assunto, nós não tememos chamar as coisas pelo
nome”[tradução livre], afirmou o presidente da clínica (leia a matéria completa
aqui).
O lugar, segundo a matéria do Washington Post, assemelha-se a um spa – procura
ser um espaço acolhedor, que recebe as mulheres com chá e muita informação
sobre o método adotado ali.
A iniciativa é uma aposta de inovação na abordagem
pró-escolha frente a uma onda pesada de retrocessos em todo o país em termos de
legislação (no estado de Ohio, por exemplo, tentaram recentemente modificar a
legislação sobre o aborto para proibi-lo a partir do momento em que batimentos
cardíacos são identificados no embrião).
Um pouco como o projeto para a legalização do aborto
recém-apresentado por Jean Wyllys e elaborado (em sincronia, dessa vez) com um
grupo de grandes feministas brasileiras. Uma aposta, um movimento, um
atrevimento.
Resistências. Persistências.
Resistências. Persistências.
Em um mundo onde heterocronia e sincronia operam o tempo
todo sem cessar, as resistências e as persistências parecem ser o que detém ou
amparam a queda frente a subidas quase impossíveis. Ganchos e fendas que mantém
os corpos alçados, tesos e prontos para subir mais um pouco, sempre mais um
pouco.
Nina Madsen. Escreve por gosto e necessidade desde que se lembra. Formada em Letras, caminhou pelos campos da educação até que se fez feminista e socióloga, por azar ou sorte. Desde janeiro de 2015, vive em Washington, DC – novo cenário de aventuras e leituras pelo avesso do mundo.
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