Antes das 7 da manhã ainda é possível pegar 90 km/h na Marginal Pinheiros. Não há outra razão numa via expressa senão correr. E os caras metem o pé mesmo, inclusive eu. Acordo mais cedo só pra desfrutar desse prazer cada vez mais raro numa cidade congestionada.
André Gorz já havia anunciado o “apocalipse motorizado” (isso em 1973!): “o carro, como uma mansão à beira-mar, é somente desejável e vantajoso a partir do momento em que a massa não dispõe de um”, já que, segundo o filósofo, é impossível democratizar um bem de luxo sem diminuir o gozo de quem faz uso dele. Mas o problema é que o carro no Ocidente tornou-se “vaca sagrada”, em vez de ser tratado como deveria: um “luxo antissocial”. Diante do caos, o que fazem as pessoas motorizadas? Saem de casa cada vez mais cedo, pois continuam querendo gozar do privilégio de ter um carro. Inclusive eu. Sei que depois de um determinando horário a coisa engrossa. 7 da manhã. 7 milhões de automóveis nas ruas da cidade. Uma imagem que a mídia adora: uma fila de 7 milhões de carros é o suficiente para dar a volta ao mundo. Preciso chegar no Jabaquara às 7h15. O sinal da escola toca às 7h20. Professor não pode atrasar. Talvez seja uma das profissões em que o atraso é menos tolerado. Por isso, tenho tudo devidamente cronometrado. Nem pensar em me dar ao luxo, um luxo matinal do qual todos deveriam ter direito, de cagar, tomar café e ler o jornal, ou tomar café e ler o jornal cagando, ou ler o jornal e cagar tomando café... Não importa a ordem. Só sei que nos finais de semana faço tudo isso simultaneamente, só pra esbanjar.
24 de março, 15 minutos para as 7, cruzo a ponte da Cidade Universitária e aos poucos vou entrando na Marginal, sem dar seta (porque há tempos a seta da esquerda não funciona), primeiro pela via local, depois a expressa, onde automóveis, motos e caminhões, em alta velocidade, disputam furiosamente cada metro de pista, cada segundo do relógio. E pensar que estávamos todos dormindo alguns minutos atrás...
Às vezes acelerar torna-se um fim em si mesmo: estou adiantado, mas se posso correr, por que não fazê-lo? Piso no acelerador pelo prazer de correr, de ver os outros carros ficando para trás, como se ultrapassar veículos somasse pontos numa corrida maluca sem fim. E sem sentido. Meio sonolento, chego mesmo a esquecer pra onde estou indo, ouvindo no rádio o repórter Luiz Carlos Gertel falando que o sol vai aparecendo aos poucos entre nuvens e que o trânsito já vai mal nos principais corredores da cidade... A mesma coisa de sempre.
Quando chego à pista 3 (são 7 ao todo), um Palio cola perigosamente na minha traseira, mas finjo não dar importância. Que me passe pela esquerda, se quiser: hoje estou zen. Mudo de estação. Sei que mexer no rádio ao volante é um ato repreensível, mas faço isso com frequência. Está falando agora o professor Mário Sérgio Cortella: “Pensar bem nos faz bem, então vamos pensar juntos...”. Quando me dou conta, o Palio já me passou, agora está na pista 1, à minha esquerda, colado na traseira de um Corsa, que por sua vez está colado em outra traseira, isso a mais de 70km/h, até que a fila deles breca abruptamente: não há tempo, o Corsa freia, arrancando fumaça do asfalto, e entra com tudo na traseira do carro da frente, que é jogado imediatamente contra o carro seguinte... o Palio, por sua vez, se enfia na traseira do Corsa – strike! –, outro dá de cara na bunda do Palio, o seguinte tenta em vão manobrar para a direita, e fica praticamente sobre duas rodas, mas acaba destruindo a lateral dos outros carros, levando consigo retrovisores, lascas da lataria, estilhaços de vidro, até se chocar contra outro carro que vinha pela pista 2 a toda velocidade... E quando parece que as coisas enfim se acalmam, um carro semidestruído, vindo de não sei onde, cruza a pista à minha frente e, cambaleando, para na pista 4.
Apesar de tudo, continuo avançando mais alguns metros e só paro quando percebo que estou arrastando alguma coisa. Ligo o pisca alerta. Vejo que outros carros estão fazendo o mesmo. Há um retrovisor enorme de camionete preso entre o chão e o protetor de carter do meu Peugeot.
Por trás de uma neblina de pneu queimado, vejo atrás de mim carros destruídos, air bags inflados, vidros estilhaçados. Motoristas descem dos veículos falando no celular; outros, perplexos, continuam segurando o volante... A princípio, ninguém preso nas ferragens ou seriamente ferido. Carros desviam do engavetamento pelas pistas da direita. Não sou médico. O resgate certamente está a caminho. Vejo que o melhor a fazer é dar o fora dali.
Numa metrópole como São Paulo, ficamos tão habituados às tragédias da civilização que acabamos desenvolvendo um mecanismo de defesa muito peculiar: a indiferença. Sabe quando a gente se esquece de um sonho e só vai se lembrar dele mais tarde, horas depois, às vezes dias depois? Pois foi isso que aconteceu nesse dia. Trabalhei a manhã inteira como se nada tivesse acontecido. Até que no almoço, entre uma garfada e outra, a imagem do acidente voltou, e junto dela pensamentos sombrios sobre o futuro desta cidade. Pensei nas pessoas acidentadas e, claro, me senti culpado. Sentindo raiva de tudo, e sobretudo de mim mesmo, terminei o almoço, paguei a conta, e fui buscar meu carro.
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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto.
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