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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

O Galeano morreu e isso é uma merda enorme


por Ricardo Viel, de Lisboa

Era começo de 2004. Entre vinho e churrasco planejávamos uma improvável viagem a Argentina, até que Fernando disse: “E antes passamos pelo Uruguai para entrevistar o Galeano”. Todos achamos graça, menos ele. Falava sério. “O povo da Caros [Amigos] tem o contato dele, vou tentar”. Uns meses depois estávamos sentados no Café Brasilero, em Montevidéu, diante de Eduardo Galeano.

Pode soar exagerado, mas aquela conversa e aquela viagem mudaram a minha vida. Foi ali, e também por insistência do Fernando, que comecei a pensar que talvez eu poderia me dedicar ao jornalismo. Provavelmente, eu seria um péssimo advogado mesmo, mas ser jornalista se tornou um horizonte real.

As lembranças daqueles dias são confusas, embaralhadas. São, provavelmente, um acumulado das versões que fui contando, ao longo do tempo, sobre essa nossa viagem e essa nossa entrevista. Não tem importância nenhuma. O que importa é que guardo a recordação de um Galeano amável e gentil, que nos encheu de boas histórias e de afeto. Era uma entrevista, mas era sobre tudo um grupo (éramos quatro) a fazer perguntas a um escritor que admirávamos – e não há mal nenhum nisso porque nunca acreditamos que o jornalista pode ou deve ser imparcial.

“Como dicen los mexicanos, nos estamos viendo", foi o que ele, nessa primeira vez, disse ao se despedir da gente. E nos vimos, meses depois, em Curitiba. Mais abraços e palavras bonitas. E ainda o vimos uma vez mais, em Porto Alegre, naquele janeiro de 2005 que nos fez acreditar que o outro mundo estava mesmo muito próximo.

Eduardo Galeano continuou conosco. Nas muitas vezes que falamos sobre aquela entrevista; nos seus livros, que lemos e relemos; nos textos que mandamos aos nossos amigos e amadas. Nas lembranças, nas muitas lembranças.

Galeano foi uma espécie de embaixador dessa sonhada república da América Latina livre de fronteiras e preconceitos, esse espaço que alguns de nós – que muitos de nós – acreditamos ser possível de construir. Ensinou-nos a amar esse continente tão maravilhoso e desgraçado; mostrou-nos que a indignação não é incompatível com a poesia, o sonho e a beleza. Fez-nos enxergar o encanto das pequenas coisas e ver que as histórias banais, dos esquecidos (os ninguéns, os que custam menos que a bala que os mata), podem ser mais interessantes e grandiosas que a história oficial. Escreveu sobre futebol de maneira única, e disse o que todos nós tentamos dizer e não conseguimos.

A minha geração, a dos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre, teve Galeano como um de seus grandes porta-vozes. Com beleza e ternura – e com aquela capacidade de síntese invejável – ele expressou o que sentíamos, as nossas dores e amores.

Quando Saramago morreu – outro dos nossos mentores intelectuais –, Galeano disse que suas palavras continuariam vivas por meio dos seus livros, e isso era uma maneira de existir. Agora, chegou a vez do uruguaio partir. Os livros respiram, ele dizia. Seus livros continuarão respirando enquanto nós estivermos por aqui, enquanto tivermos a curiosidade de aproxima-los aos ouvidos, para escuta-los, e senti-los.

Tudo isso é verdade, mas também é verdade que a presença física, esse abraço que possivelmente nunca aconteceria (ou se repetiria), mas que poderia um dia acontecer, já nunca mais virá. Já não será possível dizer obrigado, pedir-lhe um autógrafo, ou escutá-lo falar as belezas que o caracterizam. Seus livros ainda respiram, e é esse o único conforto que resta num momento tão triste. Benedetti, Saramago, Gelman, Gabo e Galeano. São muitas mortes em pouco tempo. Muitas perdas para administrar. Certa vez perguntaram ao Luis Fernando Verissimo o que ele pensava sobre a morte. “É uma sacanagem, sou contra”, rebateu certeiro. Somos todos contra, Verissimo, ainda mais quando se trata da morte de uma figura como Galeano.

“Foi-se o Eduardo Galeano, que bosta”, escrevi ao Fernando assim que soube. Depois, já à flor da pele com a notícia, o agradeci por ter me empurrado para o jornalismo. Mas é isso, o resumo da história é este: o Galeano morreu e isso é uma merda enorme, uma sacanagem gigantesca.

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Ricardo Viel, jornalista, atualmente mora e trabalha em Lisboa, Portugal. Especial para o Nota de Rodapé

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