Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.
(Episódio 10)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Lá em casa, quando eu era criança, não havia exatamente uma biblioteca. Modestamente tínhamos uma estante de livros. Eram todos do meu pai, comunista e sindicalista. Logo que aprendi a ler, passei a prestar atenção nos títulos. Puxo de memória: Que fazer?; O 18 Brumário; Capitães da Areia; O Capital; Ganhando meu Pão; O que é o Materialismo Dialético; Assim Foi Temperado o Aço; A Comuna de Paris, Aladim e a Lâmpada Mágica - este último reservado para quando nós, os filhos, começássemos a ler de verdade.
Quinze dias depois do Golpe de 1964, meu pai foi preso. Minha mãe passou um tempo sem saber para aonde o levaram. Ficou compreensivelmente apavorada. Existia uma histeria civil pró-golpe, com mulheres e carolas fazendo marchas em nome de Deus, da Pátria, da Família. O demônio da hora era o comunismo. Da mesma forma que hoje dizem que tudo é culpa da Copa, cinquenta anos atrás era culpa de Cuba e de seus simpatizantes brasileiros.
Meu pai adorava o partido comunista e adorava Cuba. Minha mãe adorava meu pai. Eu adorava os dois. Nesse adora, adora, o fato é que vi mamãe - junto com uma amiga - pegar todos os livros da estante e levá-los para o quintal da casa. Um parêntesis para descrever o quintal (tinha um pé de jabuticaba, antúrios à vontade, uma pilha alta de tijolos - onde eu e meu irmão, Júlio, brincávamos jogos sem fim).
Fiquei observando as duas mulheres. Elas empilharam os livros na terra batida, umedeceram os volumes com álcool, ao mesmo tempo que minha mãe gritava: "Pra longe, pra longe! Não quero nenhuma criança aqui!" Mas eu fiquei paralisada. Em choque vendo os livros de papai arderem. Perguntei o porquê. Mamãe respondeu: "Os livros são perigosos. Seu pai já está preso, mas a polícia pode voltar aqui".
Não voltou. Passados dois meses, mamãe descobriu onde meu pai estava. Começou a fase das visitas dominicais à cadeia. Mas isso é assunto para outro episódio. O que também me lembro é que, na noite que sucedeu à cremação dos livros, peguei meu boneco de pano - o Zequinha - e cortei ele em pedacinhos. Nunca havia contado a morte do Zequinha para ninguém. A verdade é que a cena estava debaixo do tapete da memória. Não sei a razão da lembrança. Mas agora que recordei, decidi contar para vocês.
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
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