por Carlos Conte ilustração de Rafael Gentile*
O supermercado estava vazio, meu coração também. Esqueci completamente o que tinha ido fazer ali. Sabe quando você entra na cozinha e demora alguns segundos, às vezes minutos, para se lembrar o que o levou até lá, e aí, quando enfim cai a ficha que você foi pegar água, simplesmente água, você já abriu a geladeira, mastigou uns pepinos em conserva, tomou Coca, afanou uns bombons de licor e se certificou de que o estrogonofe embolorou?... Sim, a água! Apenas água. Fui ao supermercado provavelmente fazer alguma coisa bem simples, mas esqueci.
Debruçado no carrinho, abri um saco de amendoins fritos, uma lata de cerveja, e fui andando pelos vastos corredores vazios para ver se a memória refrescava. Que nada! O que me veio à mente, de imediato, foi aquele programa que passava na Band, apresentado pelo Ricardo Corte Real, chamado Supermarket, em que dois casais disputavam o prêmio – um ano de compras com tudo pago! – procurando pistas escondidas nas prateleiras de um supermercado, numa espécie de caça ao tesouro televisionada para promover algumas marcas. Andei à esmo, sem encontrar nenhum apresentador, nenhuma pista que me ajudasse a esclarecer aquele meu pequeno mistério cotidiano.
Tudo bem. Sempre há coisas para comprar. Ainda mais quando seu cartão-alimentação está carregado. Já notei que sinto um prazer especial em usar o cartão-alimentação, como se não fosse o “meu” dinheiro que estivesse sendo gasto, mas um “bônus” ofertado mensalmente pela empresa. Mais uma bobagem da minha cabeça, eu sei, mas essa é uma sensação inevitável. Quando eu era pequeno, ao ver meu pai pagando alguma conta usando cheque ou cartão, tinha a mesma sensação: não estávamos gastando “nosso” dinheiro, mas de algum trouxa qualquer, tipo o governo, ou sei lá o quê... Pagar com cartão, e não com dinheiro vivo, era o mesmo que comprar “de graça”. Tudo bem: tinha apenas 6 anos e não conseguia fazer abstrações. Hoje faço abstrações, mas a sensação permanece. Será que ainda tenho dificuldade para fazer abstrações? Quanta coisa tem num supermercado! Estamos tão acostumados que raramente nos surpreendemos. Certa vez, num free shop do Chuí uruguaio, assim que passamos pela porta automática e avistamos aquele mundo fantástico das mercadorias que se abriu diante de nossos olhos, meu amigo Pedro Gongom soltou uma de suas pérolas: “Carlão, me encontre daqui meia hora: vou ver do que estou precisando!”. Com 150 mangos no Sodexo, fui atrás do que eu estava precisando. Mas o que era mesmo?...
Bananas. É sempre um acerto comprar bananas, pois evitam câimbras no futebol e são muito gostosas com sucrilhos. Sim, sucrilhos, do tigre, mas sem açúcar porque açúcar, todos dizem, faz mal pra cacete a ponto de deixar o sujeito cego e outros males irreversíveis. Granola não é tão gostoso quanto sucrilhos mas dizem que não tem nada melhor pra ir ao banheiro, pois é rica em fibras. (Qualquer dia conto a história do Vavá, um cara fanático em Elvis, que dizia que o que matou o rei do rock foi uma veia de sua cabeça que estourou enquanto fazia força sentado no trono... “Falta de fibra!”, ele dizia). Para não ter o mesmo fim, pus um saco de granolas no carrinho. Melhor prevenir do que remediar. Depois não posso me esquecer do papel higiênico para acompanhar as granolas. Uma coisa puxa a outra. Destino curioso: será que o rei morreu mesmo sentado no trono? O finado Vavá sabia das coisas.
Entrei na fila dos frios. Deixei o carrinho guardando lugar e fui buscar outra cerveja. Só aposentados e pensionistas do INSS às 4 da tarde na fila dos frios. Que maravilha! Dou risada sozinho. Só tragédia: uma teve que tirar uma pedra dos rins do tamanho de uma azeitona – que exagero! Mas tem gente que adora exagerar doença, como se isso fosse motivo de orgulho, vê se pode! Eu me matando pra manter a saúde com meus coopers quase diários, comendo granola, e espalhando pra todo mundo que agora eu sou um cara 100% saúde, e a turma da fila contando vantagem pra ver quem é que vai pior. É rim, vesícula, intestino. Câncer de não sei o quê. Infecção no baço, nas tripas, no estômago. Fraqueza nos ossos, nas juntas, nas articulações, e sei lá mais qual doença foi mencionada em poucos minutos de fila, só sei que me deu nojo olhar aquelas carnes frias sendo fatiadas, presuntos rosados, mortadelas alaranjadas, peitos de peru esbranquiçados, salames vermelhos, presuntadas e rosbifes, tudo da mesma cor das tripas recém-relatadas com tanto realismo e tanto detalhamento pelos meus colegas de supermercado que acabei ficando com náuseas, e por isso na minha vez só pedi queijo. 200 de Minas. 200 de prato. 200 de mussarela. Vazei.
Fui tomar um ar nas geladeiras. Manteiga. Nunca faz falta. Iogurte, para acompanhar toda aquela granola. Requeijão. Chandeles e Danetes da vida. Leites longa vida e tudo mais que foi aparecendo. E o carrinho foi aos poucos se enchendo, e nada de me lembrar do motivo daquelas compras. Volumosas compras.
Que mais? Café. Sim, café nunca é demais. Sempre tem aos montes em casa, mas não pode faltar. É o óleo das engrenagens. Impossível trabalhar sem ele. Mas como café deixa a gente muito ligado, não poderia esquecer de pegar alguns maracujás antes de ir embora, pra ficar “calminho calminho...”, como diz o comercial do Maracugina. E pra entorpecer ainda mais os nervos, um fardinho de cerveja, uma garrafa de vinho, que sugere macarrão, tomates, alho, cebola. Dizem que fica bom acrescentar cenoura no molho vermelho. Portanto, cenoura, está decidido.
Quando dobrei mais uma esquina, vi uma menina bem bonitinha em frente à gôndola dos enlatados. Estava indecisa: ervilhas, milhos, aspargos? Antes que ela se virasse e me visse, ajeitei a gola da camisa, endireitei as costas para parecer mais alto e, durante essa checagem que todos fazemos para aparentarmos ser mais interessantes do que de fato somos, me lembrei do que me levou até o Mambo naquela tarde de segunda: Listerine. Isso! A menina foi a minha senha do programa Supermarket! Nunca usei Listerine nem Cepacol em toda minha vida. Mas andava meio noiado com essa história de mau hálito. Sei lá. Noias temos sempre, cada hora uma diferente, e naquela semana, eu me lembro, a noia da vez era o bafo. Ninguém tinha reclamado de nada, nenhum amigo tinha me dado “um toque” – “Amigo que é amigo avisa quando tem pele de feijão no meio dos dentes, e o mais importante: avisa quando você está com bafo!”. Pois é, não tinha acontecido isso comigo, mas encanei que precisava comprar enxaguante bucal. Precisava. Precisava! E aí, ao ver a menina parada no corredor dos enlatados, me lembrei do Listerine. Poderia ter ido a uma farmácia. Teria economizado uma boa grana... Mas como já estava lá, catei uma lata de pepino em conserva, dei uma secada tremenda na gata, e fui atrás do meu Listerine, que me salvaria dos germes por 12 horas além de eliminar o mau hálito e a minha paranoia.
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Carlos Conte, sociólogo, é também resenhista e cronista. Mantém a coluna mensal Casa de Loucos, uma homenagem aos mestres João Antônio e Lima Barreto. Ilustração de Rafael Gentile, especial para o texto
Um comentário:
olá Carlos,
muito boa sua crônica!
No super mercado, enquanto nada acontece, o pensamento voando e abrindo espaço para nóias e afins...
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