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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Esquerda extrativista

Eleitos com a promessa de promover um novo capítulo na história da América Latina, os governos de esquerda não tocam no que, para muitos, é o ponto nevrálgico na construção de uma nova realidade: o modelo de desenvolvimento primário-exportador
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, em Copenhague, constatou que apenas 5% dos brasileiros veem o aquecimento global como o grande problema do mundo. Uma fatia ainda menor da população, em torno de 1%, acredita que a preservação da biodiversidade deve ser priorizada pelas políticas públicas. Urgente mesmo, diz o levantamento, é combater a pobreza, a violência e a fome.
Os resultados da pesquisa refletem o raciocínio que move os governos da chamada esquerda sul-americana na hora de pesar as necessidades aparentemente conflitantes de preservação ambiental e crescimento econômico.
Desde a vitória de Hugo Chávez, em 1998, à de Fernando Lugo, em 2008, a onda eleitoral que conduziu ao poder candidatos de origem popular e ideias socializantes tinha como objetivo colocar um freio às políticas neoliberais. O Estado almejou, assim, reduzir a dependência externa e retomar as rédeas da economia. “Havia esperanças de que a nova esquerda promovesse mudanças substanciais no modelo de desenvolvimento, até então baseado na exportação de produtos primários”, lembra Eduardo Gudynas, pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), em Montevidéu.
Isso não aconteceu. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) aponta que os produtos primários ainda são responsáveis por mais da metade do volume das vendas externas das nações agora dirigidas por governos ditos progressistas. O destaque fica com os recursos minerais e grandes monocultivos. O país menos dependente das commodities é o Brasil, que, mesmo assim, apoia 51% de sua economia sobre o extrativismo. Já a Venezuela sustenta 89% de sua balança comercial com as rendas do petróleo.
Gudynas acrescenta que os novos governos sul-americanos não apenas reforçaram as atividades primárias como também abriram novos campos de operação extrativista e agroindustrial. “É o caso da mineração no Equador, o apoio a um novo ciclo de exploração do ferro na Bolívia e o forte protagonismo estatal em promover o crescimento mineiro no Brasil e Argentina, enquanto a esquerda uruguaia se aventura na prospecção petroleira”, explica.

O xis da questão
À primeira vista pode ser difícil perceber os efeitos colaterais do negócio primário-exportador. Afinal, se as vendas externas crescem ano a ano, isso se traduz em cada vez mais dólares para a economia. E os países latino-americanos estão sempre necessitando de dinheiro: ninguém duvida que ainda há muito a ser feito em termos de educação, saúde, moradia, geração de empregos etc.
No entanto, de acordo com o economista equatoriano Alberto Acosta, desde a época da colonização as finanças regionais estiveram apoiadas sobre a exploração de produtos primários. E, ao longo dos séculos, esse tipo de atividade não foi capaz de trazer desenvolvimento humano à maioria dos latino-americanos, embora tenha produzido crescimento econômico. O último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) coloca os países do continente em posições bastante intermediárias no ranking mundial do bem-estar. O Brasil, por exemplo, apesar de estar entre as dez maiores economias do mundo, só aparece na 75a posição.
“Seguimos acreditando, equivocadamente, que desenvolvimento é sinônimo de crescimento, e que a maneira mais fácil de alcançá-lo é através da exportação de recursos naturais”, lamenta Acosta. “Os governantes não devem apenas conseguir equidade social, aprofundar a democracia e superar o Consenso de Washington. Tudo isso é indispensável e fundamental, mas a verdadeira mudança radica em transformar a maneira como olhamos para os recursos naturais.”
O Equador deu passos importantes nesse sentido ao aprovar em 2008 uma Constituição que reconhece direitos à natureza e condiciona o progresso econômico e social a uma relação não-destrutiva com os ecossistemas. A regra é utilizar os recursos provenientes do meio ambiente numa intensidade tal que lhe permita recuperar-se dos danos ocasionados e seguir seus próprios ciclos vitais. O pequeno país andino é o primeiro a enxergar a natureza como um sujeito de direitos e não apenas um objeto de propriedade.
Imbuídos da nobre motivação de combater a pobreza, os governos da nova esquerda latino-americana se encontram às voltas com um dilema. Em tempos de crise ambiental e mudança climática, são moralmente forçados a adotar políticas de preservação da natureza, redução do efeito estufa, contenção do desmatamento e adoção de tecnologias limpas. Ao mesmo tempo, o compromisso histórico assumido durante as campanhas eleitorais obriga a mitigar a pobreza e reduzir o abismo social que separa ricos e pobres no continente mais desigual do planeta.

Antes, a pobreza
A primeira opção parece ter sido o combate à miséria. E, para levá-lo a cabo, o poder público necessita de recursos financeiros, já que o modelo escolhido para aliviar a fome, aplacar o trabalho infantil e reanimar as economias locais descansa sobre programas de transferência de renda. Lula criou o Bolsa Família. Na Bolívia se instaurou o Bônus Juancito Pinto. Os uruguaios contam com o Plano de Assistência Nacional à Emergência Social. No Equador apareceu o Bônus de Desenvolvimento Humano, e a Argentina deu início ao Programa de Famílias. Há também o Chile Solidário.
Como o Estado voltou a assumir um papel mais protagônico na economia, há mais dinheiro em caixa. A Bolívia é um caso exemplar. Quando nacionalizou o gás e o petróleo, em 2006, Evo Morales subiu para 50% a tributação sobre os hidrocarbonetos. A renegociação dos contratos e a reativação da estatal YPFB ajudaram a mudar o quadro econômico. O PIB boliviano foi duplicado e atinge os US$ 19 bilhões, as reservas internacionais se incrementaram, a inflação está controlada e o câmbio, estabilizado. “Deixamos de ser o país mais pobre da América do Sul”, comemora o ministro da Economia, Luis Arce.
Os novos recursos permitem aos governos repassar à parcela mais pobre da população uma parte dos excedentes obtidos com o extrativismo e, assim, remediar os efeitos da pobreza. “O estado busca captar excedentes provenientes do extrativismo e, ao utilizá-los em programas sociais, consegue legitimidade para defender as atividades extrativistas”, analisa Eduardo Gudynas. “As ações sociais necessitam um crescente financiamento e, portanto, os governos se tornam dependentes da exportação primária para captar recursos financeiros.”

O mesmo diferente
As empresas estatais, porém, não agem de maneira muito distinta das companhias estrangeiras quando o assunto é compromisso ambiental. Se as grandes transnacionais da mineração, do petróleo e do agronegócio justificam seus empreendimentos com a promessa de progresso, emprego e bem-estar, os governos latino-americanos seguem o mesmo caminho. A grande diferença é o destino dos lucros, que, agora mais que antes, permanecem no próprio país. Contudo, apesar de ser justificada por novas realidades e argumentos, a devastação continua.
O debate nascido dentro do governo brasileiro entre Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil, e Marina Silva, ex-titular do Meio Ambiente, é prova desse embate. Enquanto a coordenadora do PAC advogava pela celeridade das obras de infra-estrutura, a herdeira política de Chico Mendes insistia na importância dos estudos de impacto ambiental. Apoiada por Lula, Dilma venceu a batalha, enquanto Marina preferiu deixar o governo após ficar conhecida como “ministra dos bagres” e ser considerada por muitos uma “trava” ao desenvolvimento.
O resultado dessa batalha viabilizou, entre outros projetos, a construção das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, e Belo Monte, no rio Xingu, que seguem a todo vapor. Juntas, as represas terão capacidade para gerar 18,4 mil megawatts, que irão alimentar a expansão industrial no sudeste e a da mineração na Amazônia.
Atualmente, segundo o geógrafo Arnaldo Carneiro, do Instituto Sócio Ambiental, “metade da capacidade energética instalada na região norte é consumida pela mineração e metalurgia, e 20% de toda eletricidade produzida no país é agregada a produtos destinados ao mercado externo”.
O PAC promete repassar R$ 35 bilhões para investimentos em geração e transmissão de energia na região amazônica. Outros R$ 10,6 bilhões devem permitir a construção e pavimentação de rodovias na floresta. Entre os projetos na área dos transportes, chama a atenção o asfaltamento da BR-163 (Cuiabá-Santarém) e da BR-319 (Manaus-Porto Velho), esta ainda em fase de avaliação ambiental, mas que pode acarretar o desmatamento de 39 milhões de hectares e afetar a mais de 50 povos indígenas, alguns em isolamento voluntário.

Contradições amazônicas
“Como outros projetos de infra-estrutura, as estradas são importantes para estimular a economia, integrar locais distantes e prover acessos a serviços públicos, como escolas e hospitais”, reconhece Arnaldo Carneiro. O geógrafo lembra, entretanto, que as estradas também vêm possibilitando o roubo de madeira, o surgimento de garimpos e a apropriação ilegal de terras indígenas. Basta dizer que, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), cerca de 75% do desmatamento ocorre numa faixa de até 100 quilômetros ao redor das rodovias.
“O Estado brasileiro está presente na Amazônia, mas de forma esquizofrênica”, avalia Carneiro, assinalando que, enquanto o governo se desdobra para reduzir o desmatamento, financia projetos que ajudam a derrubar a floresta. “Precisamos mesmo expandir sobre a Amazônia? Ou, nesse jogo global de economias ambientais, a Amazônia tem uma outra virtude, uma outra utilidade que não seja servir à pecuária e à agricultura?”
Os questionamentos do geógrafo não fazem eco aos projetos da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), que, com forte apoio do BNDES, também está presente na Amazônia. Pelo menos dois corredores interoceânicos estão em planejamento para ligar a porção brasileira da floresta à cordilheira dos Andes e ao Pacífico, incrementando, assim, o escoamento dos grãos produzidos pelo avanço da fronteira agrícola ao norte do Mato Grosso.
“Devemos procurar um modelo de desenvolvimento que gere emprego e fortalecer um tipo de produção que não destrua a floresta. A Zona Franca de Manaus é um exemplo de indústria que não desmata. Podemos criticá-la de várias maneiras, mas o estado do Amazonas é o que menos desmata e ainda por cima tem um pólo industrial”, opina o físico Luiz Pinguelli Rosa, da UFRJ. “Devemos buscar um tipo de desenvolvimento que não produza tantas emissões e, ao mesmo tempo, dê uma vida digna à população. Não tem cabimento os europeus viverem numa situação confortável e aqui existir gente que sequer tem energia elétrica em casa.”

Tadeu Breda é jornalista e também vive em Latitude Sul

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