Anotei meus contatos e combinamos de sair naquela noite pra experimentar a iguaria local. Apesar de me sentir segura em relação à Sadam, por precaução, deixei passaporte e dinheiro no hotel. Levei somente o cartão de identificação do seguro e a chave do quarto. Quando ele chegou, me apresentou um amigo e rapidamente decidimos aonde ir. Avisei a recepcionista que ia sair e deixei com ela o número do meu quarto. Pegamos um táxi na porta do hotel, avisei que estava sem dinheiro e eles se ofereceram para pagar. Descemos numa praça, alguns templos e muitas pessoas. A lua cheia brilhava e algumas vacas passeavam pelo calçadão.
Subimos o templo e, sentados na escada, fumamos dois cigarros do mais puro haxixe do Nepal. Ele me perguntou se eu queria mais, eu disse que não e ele avisou que estava na bolsa, pra quando eu quisesse. O outro rapaz desceu para comprar umas cervejas, voltou com três latinhas e algumas salsichas.
Estávamos ali há poucos minutos e eu sentia o efeito do haxixe bater enquanto conseguia a proeza de contar uma piada em inglês, quando avistei um sujeito fardado vindo em nossa direção. Percebi que os meninos ficaram tensos, o guarda chegou falando com eles em nepali, pegou uma das latinhas, confirmou que era cerveja, olhou pra mim, de pé, estática, com cerveja e cigarro na mão, e ficou puto. Eles começaram a discutir, Sadam do meu lado tentava me tranquilizar.
Qual era a bronca?
Eu estava nervosa, não entendia qual era a bronca. Tentei argumentar com o policial e comecei a conversa perguntando se ele falava inglês. A resposta veio num inglês perfeito: “I don’t speak english”. Na hora, só consegui pensar que ele me entenderia se eu falasse e comecei a argumentar.
Disse que era turista, brasileira, estava com um grupo num hotel cinco estrelas de Kathmandu. Expliquei que aquela era minha última noite na cidade, estaria encerrando minha viagem e nós só queríamos comemorar. No ar do haxixe, devo ter dito que a lua estava linda, e o oficial me cortou num inglês que ele disse que não falava, dizendo que eu não tinha culpa porque eu era turista e não sabia, mas tomar cerveja no templo não era permitido. Os meninos sabiam disso e por isso estavam encrencados.
No fundo, eu sentia que o policial queria dinheiro. Ele me tratava, além de eu ser turista, achava que eu tinha alguma coisa. Em algum momento perguntou se eu tinha dinheiro para um táxi. Disse que não. Fomos escoltados templo abaixo até o meio da praça, onde uma concentração de policiais já tinha se formado. Sadam ao meu lado ia traduzindo parte da conversa. Quando me virei para falar com Sadam, ouvi um estalo. Olhei para o nosso amigo e ele estava no meio de cinco policiais com a mão na cabeça. O oficial que havia conversado comigo, crescia com uma mão para cima enquanto a outra segurava o cacetete atrás das costas.
Me mandaram subir na van
Sem pensar duas vezes, pedi que parasse, aquilo não resolveria nada. Sugeri que fôssemos ao meu hotel pegar meu passaporte, tomar as providências necessárias, mas não adiantou. Ele falou suavemente que eu voltaria para o meu hotel sem problemas, mas que os meninos o acompanhariam até seu escritório. Quando a viatura chegou, tomei um susto. Era uma van preta, com o inscrito da Polícia do Nepal na frente, em branco. As janelas, insufilmadas e gradeadas. Certamente, blindada, o mesmo tipo de veículo utilizado para fazer transporte de presos. Achei que me colocariam num táxi e dali eu voltaria para o hotel. Me mandaram subir na van. Confusa, confirmei. Mandaram de novo. Lá dentro, uma única policial feminina já me aguardava com um lugar reservado ao seu lado. Sentei, ainda a latinha na mão. Subimos por uma rua, viramos outra, paramos no farol. Me virei para a policial e perguntei: “O que acontece agora?”. Ela se virou, sorriu e respondeu em inglês: “Vamos cumprir a lei.”. Eu gelei.
Respirei fundo e me mantive respirando para enfrentar o que quer que viesse a acontecer. Entramos numa pequena rua à esquerda e dobramos a direita. Paramos, nos mandaram descer. Quinze policiais em volta, olhei e me vi num beco. Os meninos estavam sentados na pequena escada do último prédio da ruazinha sem saída quase sem luz.
Por um momento entrei em pânico. Fiquei ali por uns segundos tentando racionalizar o que fazer e decidi tentar abrir a boca. O que saiu, foi um simpático inglês engasgado para o guarda do meu lado: “Posso voltar pro meu hotel?”. Ele olhou calmamente pra mim, quase deu um sorriso e disse: “I don’t understand what you said.”. Senti o sadismo e mantive o olhar nele.
Ele continuou me olhando e finalmente perguntou de onde eu era. Respondi que era brasileira e ele me disse que não podia me autorizar a ir embora. Tive que falar com o comandante, que naquele momento dava bronca nos meninos. Quando me aproximei, pedi licença e fiz a mesma pergunta que havia feito para o guarda. Depois de me perguntar de onde eu conhecia os meninos, me olhou em silêncio por alguns segundos e me respondeu: “A Sra. está no Nepal e este é um país livre. A senhora pode ir embora quando quiser.” Perguntei se eu podia pegar minha bolsa que estava com Sadam e ele consentiu.
Acordei com o som do telefone
O outro rapaz me deu praticamente todo o dinheiro que ele tinha para que eu pegasse um táxi de volta para o hotel. Saí dali, desci a rua e virei à esquerda. Dei de frente com a van preta que havia nos deixado ali. Do lado de fora, a policial que me escoltou na viagem me deu boa noite. Não respondi, desci direto e entrei no primeiro táxi que encontrei. Já de volta ao meu quarto no hotel, tomada pela badtrip de não saber o que ia acontecer com eles, abri a bolsa de Sadam. Me lembrava que ele tinha dito que o resto do haxixe estava lá dentro, não podia deixar a bolsa com ele. Achei também uns recibos de pagamento de uma associação de artesãos. Foi dele que comprei uma flauta em madeira de Sândalo, naquela mesma tarde. Decidi esperar um pouco. Conforme as horas passavam, eu ficava mais nervosa e, apesar de ter sono, não conseguia dormir. Escrevi um bilhete para Sadam, com meus contatos no Brasil, desejando-lhe boa sorte e anexando 10 dólares, quantia equivalente ao que eles haviam me emprestado. Na pior das hipóteses, deixaria na recepção do hotel na manhã seguinte quando fosse embora. Lá pelas tantas da madrugada, fumei o último haxixe e dormi.
Acordei às 6h20 com o som do telefone, que imediatamente atendi. A recepcionista me avisava que um dos meus amigos estava lá embaixo. Avisei que desceria em 5 minutos, me vesti e peguei a bolsa. No hall, encontrei o amigo de Sadam, o abracei e fomos para fora fumar um cigarro. Ele me contou que apanharam um pouco e que Sadam ficaria preso até notificarem a família dele. Avisei-lhe dos 10 dólares, pedi que entregasse o bilhete e subi para me arrumar para o vôo que teria em breve. Chateada e ainda pensando que a noite terminara bem mal, quase meia hora depois, ouço novamente o telefone. A voz de Sadam do outro lado da linha me pedia para descer, estava no hall.
Desci, fumamos, conversamos, ele me deu um pingente de boa sorte e nos despedimos. Ganhei um amigo que, por mais que eu nunca mais veja, vai ficar na minha memória. Durante o vôo de volta pra Delhi, depois de ver o Himalaia da minha janela, a ressaca do haxixe me ajudou a dormir. E o único registro que ficou dessa história foi a foto que tirei com Sadam quando o conheci.
Cylene Dworzak, jornalista, esteve no Nepal em novembro de 2009, especialmente para o Nota de Rodapé
5 comentários:
Adorei a narrativa, apesar do clima de terror; quase que minha cerveja esquentava.
Parabéns!
Abraços a todos do NRodapé.
Na boa, senti o cheiro do haxixe, boa narrativa dinda, deu um tesão de ilustrar isso, posso??? hehehe!!!
Manda bala Léo! Vou adorar ver essa história em quadrinhos! hehe
Besos
Baita história. Esse blog é duca. Abraço
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.