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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Tragédia desfocada

Terremoto, tsunami e acidente nuclear no Japão tiveram cobertura míope na imprensa brasileira

A crise nuclear dos reatores em Fukushima registrou cinco mortes, nenhuma delas relacionadas à radiação, mas em quedas e afogamento pelo tsunami na área das usinas. Mas essa contagem ofuscou a pavorosa tragédia de dezenas de milhares de mortos, cidades milenares varridas do mapa e o drama de uma população idosa. A face humana do desastre logo cedeu lugar na imprensa a uma burocrática contagem de corpos, enquanto numa perversa assimetria noticiosa rotineira do reator em Fukushima ganhava a cada dia detalhes mais confusos.
Complexo de Fukushima, onde estão os reatores nucleares
atingidos pela tsunami que veio logo após o terremoto
A grande imprensa brasileira alicerçou sua cobertura na chamada hardnews, a notícia bruta sem maiores análises, despachada automaticamente pelas agências de notícias e artigos factuais traduzidos. E, claro, afogada no imediatismo da cobertura das televisões, com primado da imagem de consumo sensacionalista. Que uma repórter de TV pergunte a uma estropiada idosa japonesa carregando sacolas o que ele estava achando do evento seria trágico se não fosse prática comum na imprensa brasileira.
Algumas distorções com impacto no Brasil foram flagrantes. Começando pelo lugar comum repetido à exaustão em toda imprensa nacional, sobre um suposto traço estóico de uma suposta cultura milenar japonesa, algo que até estaria no DNA desses orientais. A imprensa brasileira deu enorme destaque à ausência de saques e desordens que costumam suceder as tragédias em todo mundo. Em vários jornais e especialmente na TV, os repórteres se espantavam com entrevistados japoneses que não entendiam a pergunta sobre porque não havia saques e pânico nas regiões atingidas. Claro, existe a possibilidade não remota da precariedade do inglês dos entrevistados e entrevistadores ser a razão dos japoneses não entenderem a questão. E, claro, a falta de experiência dos correspondentes convertidos às pressas em especialistas míopes.
Isso não aconteceu, por exemplo, com o veterano correspondente da revista americana NewYorker, Evan Osnos, para quem o estoicismo e ordem comunal não é bem um traço de caráter milenar na cultura japonesa. Nenhum jornal, revista ou TV brasileira tem repórteres experientes fixos em países além dos EUA, França e Inglaterra. O resto é coberto por jornalistas itinerantes sem familiaridades com os países em emergências.
O veterano repórter da NewYorker também notou a quase completa falta de saques (que eventualmente aconteceram, em escala isolada), de pânico ou exploração política das oposições. Com exceção do prefeito de Tóquio, Shintaro Ishihara, um nacionalista direitista, que atribuiu o desastre a um tembatsu, a punição divina. No dia seguinte ele pediu desculpas públicas pela impulsiva gafe.
Quanto ao suposto traço cultural milenar, o repórter, com vasta experiência e conhecimento da história local, esclareceu: “Até o atual desastre, o mais devastador terremoto tinha sido em setembro de 1923, que atingiu os 7,9 graus na escala Richter, demorou quase cinco minutos, devastando a capital Tóquio e a cidade portuária de Yohohama, matando 140 mil pessoas”.
O mais feio estava por vir, escreve Osnos. “Rumores e boatos de imigrantes coreanos estavam provocando incêndios e envenenando as fontes públicas de água incendiaram hordas, incluindo policiais, que lincharam milhares de inocentes, um massacre que é fonte de vergonha nacional japonesa até hoje”.
Em vez dos brasileiros se humilharem, como induzia a cobertura dos repórteres espantados, a lição certa é de que o processo civilizatório é lento, e muitas vezes penoso.
Mas desde 1923, além dos programas de prevenção e normas rígidas de construções, a cultura japonesa progrediu em civilidade. Descontando, é claro, a exacerbação do militarismo que levou à segunda guerra mundial. O trauma desse desastre levou o Japão a assumir uma postura militarista rígida, com crescimento desenfreado das forças armadas. Além de atacarem os EUA em Pearl Harbor, as forças colonialistas do Japão cometeram toda sorte de barbaridades na China e na Coréia, que até hoje envergonham o império do Sol Nascente. Depois da derrota militar na Segunda Guerra, sim, a cultura nacional humilhada pela derrota assumiu formas mais civilizadas que vemos agora.
Depois do desastre no mês passado nos mais de 300 abalos menores que se seguiram nenhuma casa adicional veio ao chão. Nesse sentido, a cobertura precária da imprensa brasileira foi deseducativa. Em vez da mensagem subliminar de “a gente somos inútel”, deveria ser de mirarmos nos padrões civilizados dos japoneses, acreditando que o processo civilizatório é dinâmico e que um dia podemos também chegar lá.

Flávio de Carvalho Serpa é jornalista, especial para o NR

2 comentários:

Anônimo disse...

Ou seja, esse imediatismo num mundo de competições nos faz de palhaços, nhe.....
bjuuuu...Vanessa Ramos

Álvaro disse...

Flávio, taquei seu artigo sobre Fukushima no blog do Nassif. Um detalhe: no dia seguinte ao do tsunami, apostei com a Sô que pelo menos um reator vai derreter. Há um erro de projeto que torna isso inexorável. O sistema de arrefecimento foi imaginado de tal modo que um back-up entrasse em funcionamento em caso de falha. O problema é que eles não imaginaram danos da monta dos causados pelo tsunami, de modo que não há onde nem em que ligar um back-up! Jogar água por fora do reator não é suficiente para transferir calor numa taxa maior do que a produzida pelos materiais do núcleo, mesmo na condição desligado. Sem circulação de água por dentro do reator, a temperatura segue aumentando. Então, já era. Eles têm de começar já a blindar essa coisa com chumbo e concreto, como em Chernobil, e mandar a população procurar outro lugar para morar.

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