por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Tenho pensado muito nas pessoas “trans”, há um bom tempo. Sei muito pouco sobre elas, mas não tenho dúvidas de que, na grande maioria dos casos, vivem num limbo dos mais cruéis, uma não-existência feita de medo, vergonha e revolta, com pouca ou nenhuma possibilidade de compreensão e acolhimento. E suscitam muito ódio, não raro manifestado em extrema violência física e psíquica, que frequentemente resulta em suicídio ou assassinato. Poucas condições humanas incomodam os “outros” de forma tão profunda.
As identidades sexuais, bem como a possibilidade manifestá-las de forma livre e consciente, vêm se tornando um assunto público. Não que sejam nada de novo. Sempre existiram, são diversas e complexas, muito complexas. Ainda bem que estamos começando a tirá-las do território das esquisitices condenadas – só começando. Na minha memória, a pioneira foi Rogéria, nascida Astolfo, que já nos anos setenta fazia muito sucesso no teatro e na televisão, sem ocultar o fato de ser travesti. Uma das poucas que furaram a barreira da discriminação que confinava – e ainda confina – as trans, especialmente as mais pobres, ao mercado sexual. Isto também começa a mudar, finalmente.
Aqui, mais perto de mim, conheci a Ana, nascida Anacleto. Paraibana, era faxineira em Brasília, no começo dos anos noventa. Magrinha, altiva, circulava pelos corredores do escritório com desenvoltura, unhas pintadas de vermelho vivo e adereços femininos no farto cabelo crespo. Sua eficiência na limpeza era muito apreciada. Depois da ralação do dia, em seu uniforme de pessoa invisível, ela descia para a garagem, punha um vestido bem colorido, sandálias de salto quinze, se maquiava toda e saía caminhando em direção ao ponto de ônibus, assim meio dona do mundo.
Nunca soubemos nada sobre sua história, porque ela não tocava no assunto, mas ninguém vai errar ao supor muito sofrimento, humilhações e misérias de toda sorte, além de privações e ignorância. Nada disto a impediu de ser uma das pessoas mais alegres, doces e solidárias que conheci.
Ana pegou a gripe, que era como os gays chamavam a aids naquela década sombria. O diagnóstico a encontrou já um tanto debilitada. Internaram-na na área de isolamento de um hospital público, onde nossas tentativas de visita foram em vão. Tudo o que conseguíamos era vê-la pela janela, sozinha, provavelmente inconsciente. Morreu em poucas semanas e foi sepultada como Anacleto, a pessoa que ela não era. Não sei se algum dia se deu conta de quanto remexeu nosso mundinho careta burocrático, nem do rastro luminoso que deixou aqui. Tomara que esteja aprontando todas no céu, aquele encantado, pra onde vão as pessoas que viveram com coragem e alegria.
* Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto
4 comentários:
SITUAÇÃO DOLOROSA, PENOSA,QUE ME DEVOLVE AO PRINCÍPIO CRISTÃO : "E O CRIADOR OS CRIOU-
MACHO E FÊMEA OS CRIOU". QUEM SOU EU PARA DISCUTIR COM O TODO-PODEROSO ? SÓ ME RESTA LAMENTAR,COM PROFUNDEZA DE ALMA, O SOFRIMENTO DE MILHARES DE
ANAS/ANACLETOS QUE VIVEM O DRAMA. DEUS OS ABENÇOE.
BEIJOS DA MUMMY DIRCIM
Se para as pessoas enquadradas nos arquétipos "comuns" às vezes é difícil se entender e se definir, para aquelas que estão "fora do padrão" é muito mais complexo e sofrido. Eu conheci a Ana(cleto) há 12 anos quando passei 1 semana organizando arquivos que ficavam na garagem daquele mesmo escritório. Ela me ajudou demais. Era doce, muito vaidosa e agia com uma naturalidade invejável para aqueles tempos...estaria mais confortável hoje? Myriam
Essa nossa cronista,quando "vê" a alma humana, me lembra a história da coruja: não fala,mas presta uma atenção...
É isso, Ju,a sensibilidade, a observação isenta de julgamentos e...muito talento resultam num texto tocante assim.Terê
deveriamos extender a eliminacao de preconceito a toda atividade que adultos decidem exercer se nao ferem os direitos de outros. Aprender a respeitar
os estilos de vida alheios desde a infancia.
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