por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna
Intriga-me que sejamos protestantes há pelo menos quatro gerações, de ambos os lados da família, num Brasil onde os protestantes, ou "evangélicos", como se diz hoje, eram uns gatos pingados - até bem pouco tempo. Do lado paterno, descendentes diretos de imigrantes italianos, desembarcados por aqui na década de 1890. Do materno, uma mistura bem brasileira de portugueses, espanhóis e italianos, além de seculares mineiros. Todos misteriosamente metodistas. Nunca consegui uma boa explicação para isto.
O que importa mesmo, aqui, é o que veio junto. Ainda que os seguidores do inglês John Wesley sejam dos mais liberais, os primeiros que aqui chegaram, em meados do século 19, eram norte-americanos, trazendo consigo, mais que uma doutrina religiosa, uma inconfundível e pesada herança puritana, que se traduziu nos mínimos detalhes da formação de várias gerações da família. E que foi um pouco mais longe, pois uma importante ala de ambos os lados tornou-se pentecostal, atraída pela grande novidade que aportou pelo interior de São Paulo nos idos de 1950-60, também por obra de americanos. Meu pai, então pastor metodista, desencadeou a guinada familiar e se tornou um líder pentecostal de algum prestígio. Nesse meio, conheci o que bem mais tarde vim a identificar como fundamentalismo religioso.
O recado, como eu o recebi, era muito claro: sem o evangelho não havia salvação. Com o evangelho, não se podia: falar palavrão, brigar, reclamar, ter medo do escuro, expressar raiva, contestar a autoridade, dançar, fumar, beber algo que valesse a pena, usar roupa provocante, explorar o corpo de quem quer que fosse e mais uma lista enorme. Depois de tudo, ganhava-se a vida eterna no céu.
Assim crescemos: recatados, ingênuos, contidos, reprimidos e culpados. E volto ao singular, pois não falo em nome de ninguém mais. Lá pelas tantas, quando pude pensar e agir por conta própria, o peso pesou de vez. Dei um basta e me afastei de qualquer prática religiosa.
Durante alguns anos, acreditei que havia conseguido exorcizar a religião e o grande olho de Deus que haviam posto a me vigiar a cada minuto. Até me dar conta de que é inútil, nunca vai ser possível. Independentemente de como vivo e das minhas convicções de hoje, é só cavoucar um pouco para constatar que, no terreno do básico e primordial, não deixei de ser protestante, pentecostal, puritana. Porque a religião a gente herda no sangue, no leite, ela se mistura aos mínimos detalhes da nossa definição como indivíduo, do olhar para o mundo. Mesmo descolada da intenção ou da prática, ela joga um papel tão essencial na formação de pessoas e sociedades, que até mesmo a sua ausência torna-se definidora.
Puritana coroa rebelde libertária convicta. Pode ser?
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Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto. Emails para esta coluna devem ser enviados a: deumtudocronicas@gmail.com
2 comentários:
Pode sim, Júnia. Só a você mesma cabe a tarefa de se definir desse ponto de vista. Confesso que tenho muito boas lembranças daqueles tempos que não voltam mais.
Bjs da Mummy Dircim
Pode sim! Embora pareça que todos aqueles adjetivos não caibam na mesma frase. Abraços, Carlos.
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