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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 2 de junho de 2015

A maconha da lata


por Fernando Evangelista*

 Se existisse a possibilidade de viajar no tempo...
 Já existe – ele interrompeu.
 Existindo a possibilidade de viajar no tempo, para onde o senhor iria?
Já passava das dez da noite e ninguém arredava o pé do auditório da faculdade. Todos os lugares, os oficiais e os de improviso, estavam ocupados. 
Doutor honoris causa em diversas universidades, com quase 80 anos, lúcido e bem-humorado, o nobre cientista respondeu:
 Se pudesse viajar no tempo, eu iria para o Rio de Janeiro em 1987. 
Como ninguém entendeu, ele explicou. E fez a alegria da plateia.
Em setembro de 1987, tripulantes do Solana Star, barco pesqueiro de bandeira panamenha que navegava próximo à costa brasileira, despejaram 22 toneladas de maconha no mar. A erva estava em latas de alumínio, parecidas com latas de leite em pó, cada uma de um quilo e meio.
Os tripulantes livraram-se do entorpecente porque descobriram que a Polícia Federal brasileira, alertada pelo DEA – órgão de combate às drogas da Polícia Federal americana –, já sabia do carregamento. Para evitar o flagrante, jogaram tudo no mar.
A peripécia do Solana Star, e de seus sete tripulantes, quase todos americanos, começa na Austrália, passa por Cingapura, onde permanece alguns dias e onde teria sido abastecido com as latas, e segue em direção ao Brasil. O plano era repassar a maconha para duas outras embarcações menores no Rio e levá-la para Miami, o destino final. Não deu certo.
Os traficantes, porém, não se desesperaram. Com o barco “limpo”, fundearam calmamente no porto do Rio e, sem serem incomodados, saíram do país para nunca mais voltar. Ficou só o cozinheiro, o único tripulante preso nessa história. Condenado em primeira instância a 20 anos de prisão, foi absolvido por falta de provas pelo Tribunal Federal de Recursos.
E assim, como por encanto, 15 mil latas chegaram às praias brasileiras, concentrando-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tanto para os policiais, quanto para a turma do fumacê, foi um Deus nos acuda – não só pela quantidade, mas também pela qualidade da erva.
Qualidade jamais vista na história deste país, extremamente pura e potente. No livro Verão da Lata, do jornalista Wilson Aquino, o delegado Antônio Royal resume o inusitado da situação: “Imagine o sujeito que é usuário de droga, está na praia, vê uma lata boiando, abre e está cheia de maconha. Quer dizer, isso é como a lâmpada do Aladim! Onde já se viu maconha boiando de graça?”.
Nunca ninguém tinha visto, nem boiando, nem de graça. Nem mesmo o experiente pescador Messias, entrevistado por Aquino: “Por causa da força da situação, eu experimentei. Fiz um charutão numa folha de banana, dei uma, duas e não consegui dar a terceira tragada. Comecei a rir sem parar. Chamei a minha mulher, ela experimentou e caiu na risada. A gente ficou muito louco”.
Loucos ficaram também os traficantes locais, que viram os clientes minguarem. Ninguém precisava comprar porque todo mundo tinha, da melhor e de graça. A turma ficou feliz da vida, os policiais furiosos e o fato entrou para a história da cultura underground brasileira.



Muitas pessoas, lembrou o velho cientista, resgataram quantidades significativas de latas e as entregaram às autoridades. Multiplicaram-se surfistas e pescadores e o desafio policial era diferenciar quem eram os “do bem” ou “do mal”. Um delegado adotou uma solução curiosa: quem fosse pego com um abridor de latas, flanando serelepe pela praia com cara de felicidade, seria sumariamente levado para a delegacia.
Segundo testemunhas oculares, o verão carioca de 1987-1988 foi o mais festivo, pacífico e divertido da década. Nunca se foi tanto à praia, nunca se matou tanta aula chata e tanto trabalho inútil. Paz e amor em versão completa, sob a proteção do Cristo Redentor.
Das dezenas de reportagens veiculadas na tevê sobre o caso, uma é especialmente reveladora. Um delegado caçador de latas, Marlboro nas mãos, afirma: “As drogas são o mal do mundo”. A cena seguinte é de um promotor, entrevistado em casa, dizendo que quem for pego com as latas será severamente punido. Atrás do digníssimo promotor, uma estante de bebidas alcoólicas de todos os tipos.
Há algum tempo, psiquiatras, psicólogos e outros especialistas debateram a questão dos entorpecentes no Senado. A droga, segundo eles, que mais causa dano à sociedade é o álcool. Estudo publicado na revista inglesa The Lancet, medindo os danos à sociedade e ao usuário, também coloca o álcool no topo da lista. Em segundo e terceiro lugares, estão a heroína e o crack. De acordo com esse estudo, o tabaco é mais prejudicial do que a maconha.
Depois de contar a história, provocando risadas na plateia, o cientista lamentou: “Naquele momento, o Brasil perdeu uma grande chance de discutir aberta e profundamente a questão das drogas”. E concluiu: “Só o conhecimento pode nos salvar”.
O conhecimento e, claro, um pouco de bom humor, que não faz mal a ninguém, não tem contraindicações, nem causa dependência.
                                                        
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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato. Ilustrações de Vicente Mendonça, feitas especialmente para o texto. Crônica da série: republicando. 




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