– Se existisse a possibilidade de viajar no tempo...
– Já existe – ele interrompeu.
– Existindo a possibilidade de viajar no tempo, para onde o senhor
iria?
Já passava das dez da noite e ninguém arredava o pé do auditório
da faculdade. Todos os lugares, os oficiais e os de improviso, estavam
ocupados.
Doutor honoris causa em diversas universidades, com quase 80 anos,
lúcido e bem-humorado, o nobre cientista respondeu:
– Se pudesse viajar no tempo, eu iria para o Rio de Janeiro em
1987.
Como ninguém entendeu, ele explicou. E fez a alegria da plateia.
Em setembro de 1987, tripulantes do Solana Star, barco pesqueiro
de bandeira panamenha que navegava próximo à costa brasileira, despejaram 22
toneladas de maconha no mar. A erva estava em latas de alumínio, parecidas com
latas de leite em pó, cada uma de um quilo e meio.
Os tripulantes livraram-se do entorpecente porque descobriram que
a Polícia Federal brasileira, alertada pelo DEA – órgão de combate às drogas da
Polícia Federal americana –, já sabia do carregamento. Para evitar o flagrante,
jogaram tudo no mar.
A peripécia do Solana Star, e de seus sete tripulantes, quase
todos americanos, começa na Austrália, passa por Cingapura, onde permanece
alguns dias e onde teria sido abastecido com as latas, e segue em direção ao
Brasil. O plano era repassar a maconha para duas outras embarcações menores no
Rio e levá-la para Miami, o destino final. Não deu certo.
Os traficantes, porém, não se desesperaram. Com o barco “limpo”,
fundearam calmamente no porto do Rio e, sem serem incomodados, saíram do país
para nunca mais voltar. Ficou só o cozinheiro, o único tripulante preso nessa
história. Condenado em primeira instância a 20 anos de prisão, foi absolvido
por falta de provas pelo Tribunal Federal de Recursos.
E assim, como por encanto, 15 mil latas chegaram às praias
brasileiras, concentrando-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tanto para os
policiais, quanto para a turma do fumacê, foi um Deus nos acuda – não só pela
quantidade, mas também pela qualidade da erva.
Qualidade jamais vista na história deste país, extremamente pura e
potente. No livro Verão da Lata, do
jornalista Wilson Aquino, o delegado Antônio Royal resume o inusitado da
situação: “Imagine o sujeito que é usuário de droga, está na praia, vê uma lata
boiando, abre e está cheia de maconha. Quer dizer, isso é como a lâmpada do
Aladim! Onde já se viu maconha boiando de graça?”.
Nunca ninguém tinha visto, nem boiando, nem de graça. Nem mesmo o
experiente pescador Messias, entrevistado por Aquino: “Por causa da força da
situação, eu experimentei. Fiz um charutão numa folha de banana, dei uma, duas
e não consegui dar a terceira tragada. Comecei a rir sem parar. Chamei a minha
mulher, ela experimentou e caiu na risada. A gente ficou muito louco”.
Loucos ficaram também os traficantes locais, que viram os clientes
minguarem. Ninguém precisava comprar porque todo mundo tinha, da melhor e de
graça. A turma ficou feliz da vida, os policiais furiosos e o fato entrou para
a história da cultura underground brasileira.
Muitas pessoas, lembrou o velho cientista, resgataram quantidades significativas de latas e as entregaram às autoridades. Multiplicaram-se surfistas e pescadores e o desafio policial era diferenciar quem eram os “do bem” ou “do mal”. Um delegado adotou uma solução curiosa: quem fosse pego com um abridor de latas, flanando serelepe pela praia com cara de felicidade, seria sumariamente levado para a delegacia.
Muitas pessoas, lembrou o velho cientista, resgataram quantidades significativas de latas e as entregaram às autoridades. Multiplicaram-se surfistas e pescadores e o desafio policial era diferenciar quem eram os “do bem” ou “do mal”. Um delegado adotou uma solução curiosa: quem fosse pego com um abridor de latas, flanando serelepe pela praia com cara de felicidade, seria sumariamente levado para a delegacia.
Segundo testemunhas oculares, o verão carioca de 1987-1988 foi o
mais festivo, pacífico e divertido da década. Nunca se foi tanto à praia, nunca
se matou tanta aula chata e tanto trabalho inútil. Paz e amor em versão
completa, sob a proteção do Cristo Redentor.
Das dezenas de reportagens veiculadas na tevê sobre o caso, uma é
especialmente reveladora. Um delegado caçador de latas, Marlboro nas mãos,
afirma: “As drogas são o mal do mundo”. A cena seguinte é de um promotor, entrevistado
em casa, dizendo que quem for pego com as latas será severamente punido. Atrás
do digníssimo promotor, uma estante de bebidas alcoólicas de todos os tipos.
Há algum tempo, psiquiatras, psicólogos e outros especialistas
debateram a questão dos entorpecentes no Senado. A droga, segundo eles, que
mais causa dano à sociedade é o álcool. Estudo publicado na revista inglesa The
Lancet, medindo os danos à sociedade e ao usuário, também coloca o álcool no
topo da lista. Em segundo e terceiro lugares, estão a heroína e o crack. De
acordo com esse estudo, o tabaco é mais prejudicial do que a maconha.
Depois de contar a história, provocando risadas na plateia, o cientista
lamentou: “Naquele momento, o Brasil perdeu uma grande chance de discutir aberta
e profundamente a questão das drogas”. E concluiu: “Só o conhecimento pode nos
salvar”.
O conhecimento e, claro, um pouco de bom humor, que não faz mal a
ninguém, não tem contraindicações, nem causa dependência.
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Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato. Ilustrações de Vicente Mendonça, feitas especialmente para o texto. Crônica da série: republicando.
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