por Fernando Evangelista*
Ditas de supetão, muitas vezes sem sentido e sem contexto, as frases eram lançadas no meio de uma conversa qualquer:
– Basta de experiências, beba Caxambu.
E o pai ria sozinho. Ele mesmo falava e apenas ele entendia e eu ficava com cara de ponto de interrogação.
Dentro do carro, me levando à escola pela manhã, ele dizia sério, com voz de barítono:
– Toque outra vez, Sam.
– Quem é Sam? – eu queria saber, embora intuísse que ficaria sem resposta.
– Prendam os suspeitos de sempre.
– Pai, para com isso!
– Sempre teremos Paris.
Ele se divertia às custas da minha ignorância.
Anos mais tarde, descobri que “basta de experiências, beba Caxambu”, era uma publicidade de água mineral. E quando vi o filme Casablanca pela primeira vez, reconheci, nos diálogos de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, as citações que meu pai repetia naquela época e que continua repetindo ainda hoje.
Incompleto, de mão única, engraçado para ele e frustrante para mim, esse diálogo marcava a lonjura de nossos mundos, tão distantes quão distintos.
Às vezes as frases eclodiam como ordens ou reprimendas:
– Alto lá, moleque, eu sou da época do elixir paregórico!
– Ah?
– Dura Lex Sed Lex, no cabelo só Gumex.
Meu pai nasceu nos anos 30, numa Florianópolis muito pequena, quase uma aldeia, e as pontes que o ligavam ao resto do mundo eram o rádio – com suas novelas inesquecíveis e intermináveis; o cinema – com faroestes americanos dominando as matinês dos finais de semana – e, finalmente, a literatura, com as histórias de Edgar Allan Poe, Emílio Salgari, Rafael Sabatini, Edgar Rice Burroughs no topo da lista.
Se o pai começou a ver filmes e a ler para acessar mundos desconhecidos, eu o fiz para penetrar no mundo dele, para entender suas frases e assim, “entendido”, manter um diálogo que fizesse sentido para mim e despertasse algum interesse nele.
Futebol seria um caminho mais simples e mais rápido, caso ele entendesse alguma coisa do riscado. Nunca entendeu e nutriu, ao longo da vida, uma recíproca relação de desconfiança com a bola - nas poucas ocasiões em que se arriscou a jogar, deixou um rastro de vidraças quebradas, canelas inchadas e gols contra.
De minha parte, nunca gostei de papos jurídicos, nem de vê-lo, madrugada adentro, trabalhando naqueles processos intermináveis, que ocupavam sua mesa e o seu tempo. Gostava, porém, de vê-lo com a toga preta, que lhe dava um ar de super-herói, uma mistura de Batman e Zorro.
Unidos pelo afeto, mas sem interesses comuns, seguimos tropeçando em diálogos incompletos. E então, no fim da minha adolescência, a literatura nos ofereceu um amor em comum. Foi paixão à primeira vista e à altura de Casablanca e viramos, ele e eu, leitores de Carlos Heitor Cony, escritor fascinado por balões de São João e pelo assassinato, jamais esclarecido, de uma milionária chamada Dana de Teffé.
Devoramos todos os livros do Cony. Além dos romances, líamos e relíamos suas crônicas publicadas na imprensa e as melhores guardávamos numa pasta amarela. Essa pasta, mais do que um depósito de textos velhos, era o indício de uma aproximação, uma esperança de ponte entre nós.
Outros autores e outros filmes foram sendo descobertos e compartilhados. Também virei fã de Casablanca, embora não seja capaz de reproduzir, como ele, os diálogos da primeira à última cena. Ele assistiu ao filme centenas de vezes e não para de rever, para desespero de minha mãe que, bem antigamente, se comoveu com aquela história, mas se cansou de tantas reprises e de tantas citações.
O pai não se cansou. Cada vez que revê Casablanca ou lê uma crônica do Cony – daquelas que mereceram abrigo na pasta amarela, – ele se emociona e volta aos “anos mais antigos do passado”, volta ao seu tempo de descobertas, quando era um guri magrelo, de bigodinho indecente, que fumava Hollywood sem filtro e fazia política estudantil, usando qualquer meio-fio ou para-choque de carro para inflamados discursos contra prefeitos e presidentes. Entre um e outro ato político, sonhava com o Rio de Janeiro e com as pernas da Marlene Dietrich.
Neste último final de semana, no apartamento dele e da mãe, durante a macarronada nostra di ogni domenica, lembrei-me daquela famosa mistura linguística, ouvida à exaustão na infância: “Dura Lex Sed Lex, no cabelo só Gumex”.
– É o slogan de um gel de cabelo – ele explicou. – A frase foi inventada numa transmissão radiofônica, durante um jogo de futebol. O locutor precisava anunciar o gel e, sem saber o que dizer, saiu-se com aquilo.
Ele me pergunta se eu sei quem era o locutor.
– Não faço ideia.
– Ary Barroso, autor de Aquarela do Brasil.
– É? E a frase do elixir paregórico?
Aí o pai empertigou-se, deitou cuidadosamente o garfo sobre o prato, ajeitou o guardanapo sobre o colo, pegou o copo de vinho, deu um gole e, sem disfarçar o orgulho, disse:
– Essa é minha!
Ultimamente, descobrimos uma nova paixão em comum: as séries. A genial Família Soprano foi a primeira e, ano passado, assistimos à Breaking Bad, enredo capaz de causar dependência nos telespectadores. Ainda no domingo, quando nos despedíamos em frente à porta do elevador, ele disse, citando uma passagem famosa da série:
- Aprendi na reabilitação a aceitar quem eu realmente sou. Eu aceito quem eu sou.”.
– E quem você é?, perguntei, dentro da brincadeira e já de dentro do elevador.
– E quem você é?, perguntei, dentro da brincadeira e já de dentro do elevador.
– Eu sou o cara mau” ele respondeu.
Rimos enquanto a porta se fechava.
Saí satisfeito, as frases faziam sentido. Havia diálogo e interesses em comum. Havia cumplicidade e ela não estava, apenas, naquela pasta amarela.
* * * * * *
Fernando Evangelista, jornalista, mantém a coluna semanal Desacato
3 comentários:
Texto lindo e sensível. (Danielle Martins, Curitiba)
Lindo texto, Fernando! Belo retrato de vcs dois!
Danielle e Tânia, muito obrigado! abraços, fernando
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