A vida é feita de instantes. A frase não é original, mas faz sentido. Domingo à noite, terminado o encontro no Salão de Idéias da Bienal, ao lado de Antônio De Franceschi e Eric Nepomuceno, que resultou em uma conversa agradável, acho que boa para o público, eu estava saindo, quando a jovem me abordou: - O senhor trabalhou com meu avô! Na Última Hora! Olhei para ela. Morena bonita, olhos brilhantes, jeito encabulado. Tanta gente trabalhou naquele jornal extinto, hoje lembrado em manuais da história da imprensa. Primeira fase de minha vida dentro desta cidade. - E quem era seu avô? - Celso Jardim. Então, li o seu crachá: Beatriz Jardim. Fiquei olhando para ela e me lembrei que o Celso se dirigia aos repórteres como: meu jovem. Ele devia ser dez anos mais velho do que eu. Chefe de reportagem, sempre bem vestido, impecável, terno e gravata, os cabelos (começavam a rarear) lisos bem penteados. No primeiro dia, implicou com minha camisa lilás, esporte, um de meus orgulhos em Araraquara. Devia ser horrenda, mas era o que eu tinha para ser diferente, num tempo em que camisas coloridas eram vetadas aos homens. Devíamos nos contentar com preto, branco, azul-marinho, verde escuro, cinza. Anos 50, anos dourados? Antes mesmo de me dar uma "mensagem a Garcia", Celso recomendou: "Não me venha com essa camisa. Nunca mais venha sem paletó e gravata." Ante meu olhar amedrontado (o mundo me fazia medo), ele explicou: "Outro dia, um repórter foi entrevistar o cardeal Motta que se recusou a receber jornalista sem gravata." Olhei em torno, todos engravatados. Naquele dia, comprei outra camisa Volta ao Mundo, de náilon, lavava uma, usava a segunda, no dia seguinte, invertia. O problema daquelas camisas é que não podíamos suar, ficava um desconforto enorme. Celso Jardim me deu o primeiro emprego, me deu força, eu que cheguei a São Paulo sem saber o que fazer e caí naquele jornal por acaso, fiquei por desfastio. Fui escolhido, não escolhi. Celso era educado, mas duro. A primeira matéria que entreguei, foi lida, ele me chamou, trocou parágrafos de lugar. "Comece acenando com o que aconteceu. Coloque uma informação forte, desenvolva e deixe um gancho para o final, assim você prende." No dia seguinte, outra matéria. "Corte palavras desnecessárias. Concentre no assunto. O que não tiver a ver com a matéria, dispense. Economize. Espaço em jornal é caro. Escreva muito em poucas frases. Tem um escritor americano que aconselha: se falar de uma faca em um conto, a faca vai ter de fazer parte da ação. Se não fizer, dispense, estará desviando a atenção, prometendo uma coisa que não vai se cumprir." Depois, soube, o escritor era o Hemingway. Às vezes, entregava um recorte. "Leia, dê seqüência a este assunto." Tinha de saber como transformar aquela notícia curta em reportagem. "Se conseguir uma manchete, vou te considerar jornalista." Manchetes. Todos queriam dar, eram nossas medalhas. "E onde vou encontrar esse homem?", indagava, se havia um nome citado. Então, vinha a frase: "Mensagem a Garcia, meu jovem." Um repórter veterano, Hélio Siqueira (onde andará?), estrela de UH, imbatível em matérias sensacionalistas, me deu a mão: "Garcia era um general. Um soldado recebeu uma ordem de entregar uma mensagem a ele. Ninguém sabia onde Garcia estava, mas o soldado entregou a mensagem. O Celso quer te dizer que o repórter tem de ser curioso, investigativo, detetivesco, intrometido, sem medo.Mensagem a Garcia significa: execute a missão impossível." A enciclopédia me ensinou que houve cinco Garcias. No Equador, na Venezuela, na República Dominicana, no Chile e na Argentina. Qual era a do Celso? Um chefe irônico, gozador (o termo hoje é zoar), não perdoava ninguém. Mas incentivava, principalmente o bando de garotos que entrou no jornal naquele março de 1957. Eramos dez, admitidos ao mesmo tempo, todos deram certo. Ele obrigava a encarar desafios. Depois de um tempo, já o jornalista aclimatado, Celso lia a matéria, porque lia tudo, antes de passar ao secretário do jornal que a colocaria nas páginas. Chamava o redator. Quando a gente chegava, ele rasgava o texto e recomendava: "Faça de novo. Bem-feito. Você é melhor do que isso." Rasgava duas, três vezes, se preciso. E nos sentávamos, dispostos a fazê-lo engolir o papel rasgado. De cada vez, o prazo diminuía, o jornal tinha horários rígidos. Assim, aprendemos a escrever rapidamente, sinteticamente, usando o essencial. Um dia, fui atrás de produtores de café que deveriam opinar sobre um assunto qualquer. Ninguém quis falar. Voltei. "Não tem matéria." E ele: "Por quê?" Cansado de andar, suando a camisa Volta ao Mundo incomodando, justifiquei: "Ninguém quis falar." Celso, zombeteiro. Detestávamos aquele riso zombeteiro, sem perceber que ele estava desafiando. "Não te passou pela cabeça que a matéria é essa? Por que não falaram? O que escondem? Qual a jogada? A tramóia? A intenção? Uma reportagem mostra o porquê, decifra o mistério, esclarece." Quando partíamos para uma missão difícil, ele advertia, no que era secundado pelo Samuel Wainer, o dono da UH. "Se não conseguir a matéria, mande sua credencial de volta pelo fotógrafo, nem precisa aparecer mais aqui." Assim era o Celso, que formou ao menos uma geração na Última Hora, a UH. Tinha a paciência de ensinar, perdia a paciência, mas comandava sua equipe "jovem". Ainda existem tais editores? Que gostam de ensinar? Aquele homem, que morreu há anos, me formou, aparou arestas. Ele chegou a ver o início de minha carreira literária, ficou contente com meus primeiros livros. Então, se compreende a minha emoção, 45 anos depois, no Salão de Idéias, ao deparar com Beatriz, a neta dele, ligando os elos, eliminando o tempo, me fazendo ver a dívida que tive com um jornalista que me moldou. O nó ficou na garganta, pouco falei com Beatriz. Ao ler este meu texto, ela compreenderá como o homem de 65 anos que tinha acabado de falar sobre livros, ao chegar a porta e encontrá-la, se tornou, por segundos, o jovem de 20 anos que, auxiliado pelo jornalismo, chegou à literatura.
Um comentário:
necessario verificar:)
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