Seu nome é José Mujica, também conhecido como Pepe, o presidente do Uruguai. Mujica surpreendeu a todos manifestando voto favorável ao nome de Néstor Kirchner para ocupar a secretaria-geral da Unasul.
Já há alguns anos o nome do ex-presidente argentino vinha sendo cotado para assumir o cargo. Trabalhavam por ele, além da chancelaria portenha, os bons ofícios de Hugo Chávez, Luiz Inácio Lula da Silva e Rafael Correa, atual presidente pro-tempore do organismo.
Kirchner foi eleito para comandar a Argentina em 2003, na esteira das manifestações populares que derrubaram dois presidentes – Eduardo Duhalde e Fernando de la Rúa – devido às dificuldades econômicas atravessadas pelo país no final dos anos 90. Os protestos ficaram conhecidos como panelazos, e pode-se dizer que Kirchner, decretando moratória ao FMI, reequilibrando os investimentos sociais e colocando um freio às reformas da cartilha neoliberal, conseguiu amansar seus concidadãos e reestabilizar politicamente a Argentina.
Enquanto estava à frente da Casa Rosada, El Pingüino era um dos integrantes da chamada “esquerda sulamericana”, rótulo utilizado para simplificar o fenômeno que no começo do século 21 levou candidatos de origem popular ou inspiração socialista aos governos de praticamente toda a região, com a exceção de Colômbia e Peru.
Kirchner, porém, se envolveu numa peleja com seu colega – e também membro da “esquerda sulamericana” – Tabaré Vázquez, do Uruguai. Tudo devido à construção de uma fábrica de papel e celulose às margens do rio Uruguai, que divide os dois países. Em 2004, precisando criar postos de trabalho, o governo uruguaio do então presidente Jorge Battle recebeu de braços abertos a companhia finlandesa Botnia quando a transnacional decidiu se instalar na localidade de Fray Bentos, a poucos quilômetros da Argentina.
Quem não gostou foram os habitantes de Gualeguaychú, que fica do lado de lá do rio. Sob a alegação de que a fábrica iria poluir as águas binacionais, degradar o meio ambiente e prejudicar o consumo humano, os argentinos protestaram, exigindo que a usina fosse realocada para longe dali. Não adiantou. A Botnia fechou os olhos para a queixa das ongs, sindicatos e movimentos sociais argentinos, que em resposta – e na melhor tradição piquetera – fecharam a ponte General San Martín, que liga os dois países, em 2006.
O caso foi se agravando e agravando até envolver os governos de Buenos Aires e Montevidéu. Sem conseguir chegar a um acordo com os vizinhos ou segurar a fúria de seus cidadãos, a Casa Rosada levou a briga para o Tribunal Internacional de Haia. Isso aconteceu em 2007. Desde então a ponte está fechada, e nem mesmo a decisão da corte holandesa, anunciada em abril, demoveu os argentinos de sua luta.
Toma lá da cá
Após três anos de deliberações, os magistrados de Haia chegaram a duas conclusões aparentemente contraditórias. De um lado, reconheceram que o Uruguai, ao admitir a instalação da fábrica, violou o acordo assinado com a Argentina sobre a administração e utilização das águas binacionais. Ponto para os manifestantes. Por outro lado, porém, o tribunal entendeu que a atividade da Botnia não está prejudicando o meio ambiente nem poluindo o rio. Ponto para o Uruguai.
Jogo empatado, portanto. E, como não cabe recurso da decisão, a companhia continua produzindo celulose e a ponte segue fechada.
Tabaré e Kirchner jamais voltaram a se olhar nos olhos desde que Buenos Aires decidiu levar a demanda para a corte internacional. Uma pequena crise diplomática se havia instalado, e não deixaria de existir nem mesmo depois que Néstor deixou a Casa Rosada, dando lugar a sua esposa, Cristina Fernández. Tabaré deixou em banho-maria as relações bilaterais com a Argentina até o último dia de seu mandato. Então vieram novas eleições e José Mujica, ex-guerrilheiro e vegetariano, assumiu o posto.
Mesmo sendo do mesmo partido de seu sucessor, o Frente Amplio, já na campanha Mujica revelou uma postura mais maleável perante a crise com os vizinhos. Tanto que, após vencer as eleições, fez uma visita de cortesia a Cristina quando a presidenta esteve em Montevidéu para uma cúpula regional. Tabaré jamais haveria praticado tamanha gentileza. Por sua vez, Cristina desocupara temporariamente a ponte que liga os dois países no dia das eleições que elegeram o ex-tupamaro, permitindo aos uruguaios que vivem do lado de lá da fronteira cruzarem o rio mais facilmente para votar.
Então já estava claro que Mujica poderia dar passos significativos para resolver a crise com a papelera. E a prova disso veio nesta terça-feira, 4 de maio, durante a reunião dos chefes de estado da Unasul em Campana, uma pequena cidade localizada na… Argentina.
Há tempos o grupo queria instituir uma secretaria-geral que se dedicasse exclusivamente aos infinitos problemas da integração sulamericana. E o nome que surgira naturalmente entre os presidentes da região foi o de Néstor Kirchner. Entretanto, como a Unasul antes de mais nada é um fórum de concertação política, todas as decisões devem ser tomadas por consenso. Não é necessário dizer que Tabaré Vázquez, enquanto dirigia o Uruguai, era radicalmente contra a designação de Kirchner para o cargo. Mujica não.
“He tomado la decisión de acompañar el consenso de todos los presidentes y de dar prioridad a la integración de América Latina”, disse o chefe de estado uruguaio, ressaltando que a decisão havia sido tomada de livre e espontânea vontade. “No ponemos condiciones ni nadie nos las ha pedido”.
O fato de ter votado em Kirchner não quer dizer, obviamente, que Mujica se rendeu às pressões argentinas ou que irá retirar a Botnia das margens do rio Uruguai. Como ele próprio afirma – ainda que não com essas palavras –, sua decisão é um sopro de vida à integração. É uma aposta na ideia de que os vizinhos sulamericanos podem superar as pequenas rusgas diplomáticas que sustentam entre si para estreitar cada vez mais os laços políticos, econômicos, militares e sociais. “Hay contradicciones muy fuertes [na crise entre os dois países] y, políticamente, a este presidente le cuesta el paso que va a dar, pero aun así he decidido apostar por la buena fe en nombre de nuestra pequeña nación”.
Claro que as questões que desde a época de Simón Bolívar limitam a integração latinoamericana são muito mais complexas do que podem sugerir este pequeno post. Mas oxalá a atitude de Mujica sirva de exemplo para os presidentes de Equador, Colômbia, Venezuela, Peru e Chile – todos envolvidos já há algum tempo em crises bilaterais que até agora não encontram solução à vista.
Tadeu Breda é jornalista, colunista do Nota de Rodapé e também vive em Latitude Sul
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.