Ao longo dos treze anos de existência da lei 9.455/97, que tipifica o crime de tortura, a Pastoral Carcerária Nacional relatou à Justiça e aos órgãos de governos estaduais - incluindo corregedorias e ouvidorias do sistema penitenciário - 211 casos de tortura de presos no País. Em nenhum deles houve condenação de um agente do Estado. Constantes em um relatório inédito divulgado pela ONG ligada à CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil), da Igreja Católica, lançado no começo de agosto em São Paulo, os números apontam que o tratamento indigno dispensado a quem cumpre pena no País por envolvimento com o crime representa uma perversa e secular continuidade.
O “Relatório sobre tortura – Uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura” é uma reunião de todos os casos de alegação de tortura obtidos por agentes da Pastoral Carcerária em visitas a presídios para prestação de serviço religioso, pelo próprio detento ou pelos seus familiares. Segundo o advogado José de Jesus Filho, um dos autores do estudo, o banco de dados da ONG sobre violação dos direitos humanos da população carcerária traz ao menos outros 90 casos de tortura que foram excluídos do relatório por não terem sido obtidos “em primeira mão” pela entidade, o que impossibilitou o acompanhamento do desdobramento jurídico de cada denúncia.
De acordo com Jesus Filho, o documento “é o único relatório que mostra que a tortura é algo presente, atual e não tema do passado, e que o Brasil precisa tomar medidas para erradicá-la”. Segundo ele, o estudo aborda “a continuidade de um histórico de autoritarismo” no País. “Infelizmente, há uma espécie de ralé estrutural brasileira que é torturável. Assim como no período colonial os presos podiam apanhar, o preso hoje pode apanhar.”
Segundo o relatório, um preso começa a ser torturado no Brasil, hoje, na rua, em casa ou em estabelecimentos comerciais em que é abordado por policiais militares. Neste momento, a agressão é perpetrada com o fim de obter informação ou para castigá-lo. Na delegacia, a tortura feita por investigadores e/ou delegados é, no mais das vezes, parte da investigação: a vítima apanha ou para confessar a suspeita de um crime ou para apontar o nome de supostos criminosos envolvidos em algum delito do qual ela tenha participado ou possua informações a respeito. Já nos presídios, a tortura parte de carcereiros e/ou diretores em caso de castigos e de PMs em situações de contenção de rebelião, fuga e realização de revista.
Pelo relatório, as polícias militares são responsáveis por 46 dos 165 casos de alegação de tortura nos quais a Pastoral Carcerária conseguiu apontar a suspeita de que um agente de Estado tenha sido o responsável. Em seguida, vêm os agentes de segurança penitenciária, com 44 casos, e, por último, os policiais civis, com 12 casos. Em outras 46 denúncias, os agentes da Pastoral Carcerária não conseguiram identificar o autor da tortura e em 44 casos a violência foi praticada conjuntamente por diferentes agentes de Estado.
Um terço dos casos de alegação de tortura foi levado por agentes da Pastoral para promotorias de Justiça estaduais com o objetivo de que inquéritos policiais fossem instaurados para apurar as denúncias. Uma parcela um pouco menor das ocorrências foi encaminhada a corregedorias e a ouvidorias das polícias e das pastas de Estado que administram o sistema carcerário. Em alguns estados, como São Paulo, existe uma Secretaria de Administração Penitenciária; em outros, como Acre e Rio Grande do Norte, a administração dos presídios cabe às Secretarias de Justiça.
No ranking por estados, São Paulo encabeça a lista de casos de tortura, com 71 das 211 ocorrências, seguido por Maranhão, com 30, Goiás, com 25, e Rio Grande do Norte, com 12. Segundo os autores do relatório, entretanto, as diferenças quanto aos números de denúncias por região ocorrem porque “em alguns locais a tradição de denunciar casos de tortura está bem sedimentada”. “Em São Paulo há um advogado contratado pela Pastoral e quatro estagiários, que vão uma vez por semana aos fóruns para atualizar os casos e protocolar eventual manifestação. O Rio Grande do Norte não conta com advogados, porém dispõe de agentes tecnicamente qualificados para o processamento dos casos.”
Em uma de suas conclusões, um trecho do relatório diz que “juízes, delegados e promotores de Justiça demonstram pouca ou nenhuma motivação em apurar, denunciar ou processar os casos de tortura”. Para o jurista Hélio Bicudo, presidente da Fundação Interamericana de Direitos Humanos, os números do relatório são “até benevolentes para a realidade do sistema prisional brasileiro”. De acordo com ele, a tortura “está institucionalizada nas polícias Civil e Militar e continua ignorada pelo Ministério Público e Judiciário, que a encaram como um mal necessário [nas investigações]”. E o desfecho judicial dos casos de tortura é sinal de um poder Judiciário “mequetrefe e divorciado da realidade”, critica Bicudo. Já o presidente do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Sérgio Mazina Martins, diz que o quadro descrito pelo relatório “mostra a dificuldade que o Estado brasileiro encontra para investigar a si mesmo”.
Preso diz a verdade?
A percepção de que a Justiça é condescendente com agentes de Estado acusados de crime de tortura é algo já consagrado no meio acadêmico brasileiro. A pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus, coautora do relatório da Pastoral Carcerária, relata, em seu livro O crime de tortura e justiça criminal (IBCCRIM, 2010), o desdobramento de 51 julgamentos de tortura processados no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, entre 2000 e 2008.
A pesquisa aponta, entre outros números, que, dos 49 policiais civis acusados de tortura, 46 foram absolvidos, dois foram condenados por crime de tortura e um foi condenado por outro crime. É comum um agente de Estado ser condenado por lesão corporal ou por abuso de autoridade em casos de alegação de tortura de presos. Dos dez agentes carcerários que sofreram denúncia, cinco foram absolvidos, dois foram condenados por crime de tortura e três foram condenados por outro crime. Ao se deparar com as denúncias de tortura oferecidas pelo Ministério Público contra civis (pais, mães, padrastos e madrastas), o resultado a que Maria Gorete chegou é bem diferente: três pessoas foram absolvidas, seis foram condenadas por crime de tortura e outras três foram condenadas por outro crime.
Segundo ela, nos processos em que os agentes de Estado são os agressores, o julgamento não tem como foco o acusado de crime de tortura, como nos casos envolvendo pais, mães, padrastos ou madrastas, mas sim a vítima. O que está em avaliação é se a vítima está realmente falando a verdade. “A sua fala é frequentemente contraposta à de seu agressor, que sempre afirma ser inocente das acusações. A condição da vítima, geralmente pessoa presa, detida ou suspeita de algum crime, a coloca no centro do julgamento. Não é mais o crime de tortura que é julgado, mas a própria vítima”, escreveu a pesquisadora em um trecho de suas conclusões.
Ainda de acordo com Maria Gorete, polícia, órgãos do Judiciário e imprensa, em geral, costumam escancarar casos de tortura ocorridos em um ambiente privado (onde os algozes costumam maltratar familiares) e, por outro lado, fazer vista grossa ante alegações de maus-tratos feitas por presos.
Um exemplo recente de repercussão nacional de um caso de tortura ocorrida em um ambiente privado é o da procuradora de Justiça aposentada Vera Lúcia de Sant'anna Gomes, de 66 anos, acusada de torturar com frieza e fúria uma menina de 2 anos que estava sob sua guarda. Capa da revista Veja com chamada “A confissão da bruxa” e principal entrevistada de uma edição do Fantástico, da TV Globo, Vera Lúcia encabeçou o noticiário nacional entre o fim de abril e meados de maio deste ano. Menos de dois meses depois, a acusada acabou condenada a 8 anos e 2 meses de prisão com pena a ser cumprida inicialmente em regime fechado. Tornou-se, em seguida, a presa de número 323 010 do Complexo Penitenciário de Bangu, no Rio de Janeiro.
Os casos envolvendo a tortura perpetrada contra presos resultam em processos que correm sob segredo de Justiça (a Pastoral Carcerária, mesmo na condição de denunciante, não consegue ter acesso ao andamento de 24 dos 71 casos denunciados entre 1997 e 2009 no Estado de São Paulo) e ganham, em um caso extremo, o pé de uma página interna de jornal.
“Se a procuradora aposentada [Vera Lúcia de Sant'anna Gomes] tivesse torturado um preso na condição de servidora do Estado, certamente ninguém a conheceria e ela não seria condenada”, diz Jesus Filho.
O caso Matosão
Em julho passado, o motorista condenado por tráfico de entorpecentes Marco Aurélio Paixão da Silva, de 36 anos, conhecido entre criminosos e policiais como “Matosão”, concedeu uma entrevista a uma emissora de TV maranhense em que embora seu rosto não aparecesse, sua voz e entonação acabaram sendo reconhecidas por colegas de cela e carcereiros. Na entrevista, Matosão delatava práticas de tortura que ele dizia ter presenciado na penitenciária de Pedrinhas, na periferia de São Luís, onde cumpria pena. Dizia, também, os pormenores de casos de homicídios, de tráfico de celulares, armas e drogas e de abuso de autoridade contra detentos da sua unidade. Segundo Matosão, o chefe do esquema criminoso que controlava não só aquele presídio, mas todo o sistema carcerário estadual, era ninguém menos que Carlos James Moreira, secretário adjunto de Administração Penitenciária do governo Roseana Sarney (PMDB).
Autoridades policiais e judiciais costumam não dar crédito ao que um preso diz. Alegam que, no mais das vezes, um detento só delata algum tipo de infração supostamente cometida por carcereiros e/ou diretores de uma unidade quando quer conseguir transferência para outro presídio para escapar de ameaças de algum colega de cela ou ficar mais próximo de familiares. Para que as denúncias feitas por Matosão resultassem em uma investigação, ONGs como a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e órgãos como o Ministério Público Estadual se mobilizaram para, antes de mais nada, tirá-lo da penitenciária de Pedrinhas e, assim, poupá-lo de já anunciadas represálias.
No dia 13 de julho, sete dias depois da entrevista, a Justiça acatou um pedido de livramento condicional em favor do motorista e a Ouvidoria de Segurança Pública solicita por duas vezes em uma semana proteção policial para ele. Os pedidos não são respondidos.
No dia 21 de julho, Matosão ingressaria no programa de proteção a testemunhas. Por volta das seis e meia da manhã desse mesmo dia, dois homens arrombaram a porta e invadiram a quitinete onde ele dormia com a mulher e os três filhos, na vila Ivar Saldanha, periferia de São Luís. Um deles efetuou dez disparos. Dois acertaram a cabeça e outros quatro atingiram o tórax de Matosão, que tentou, em vão, se esconder atrás da porta do quarto. Ele morreu na hora. Dois dias depois, Roseana Sarney, sob protesto de muitos carcereiros, demitiu Carlos James Moreira.
Menos de duas semanas depois, um novo fato ocorrido dentro de um presídio maranhense foi notícia nos jornais de São Luís: dizia o título da matéria publicada no site do jornal O Imparcial, do conglomerado Diários Associados: “Detento é executado com 25 chuçadas em Pedrinhas”. Segundo o jornal, o detento Alex dos Santos Boás foi morto após sofrer 25 perfurações, cinco delas no pescoço. Um detento, que não quis se identificar, contou ao jornal que a vítima já estava jurada de morte por outro detento e que, se alguém falasse quem tinham sido os autores do crime, seria assassinado.
11 recomendações
O relatório sobre tortura da Pastoral Carcerária traz 11 recomendações ao Estado brasileiro. A primeira e mais importante fala da “implementação do mecanismo nacional e estadual de prevenção à tortura nos locais de privação de liberdade, previsto no Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura”. Segundo a ONG, hoje apenas os estados de Alagoas e Rio de Janeiro possuem um mecanismo de prevenção à tortura. Segundo o advogado José de Jesus Filho (na foto), o Brasil, por ser signatário do protocolo da ONU, já deveria ter adotado seu mecanismo por meio de projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional em 2007. “Há um estudo concluído há cerca de um ano, guardado em uma gaveta da Casa Civil da Presidência da República, que nunca foi enviado para ser discutido e, depois, aprovado pelo Congresso.”
No rol de recomendações práticas, que podem ser adotadas pelos estados, está a “criação de uma delegacia própria para apuração dos casos de tortura [como há delegacias especializadas nas investigações de homicídios, por exemplo], com independência funcional” ante às secretarias de Segurança Pública.
Um comentário:
Triste. Muito... Quem se importa?
Bordão Pós-Ditadura: avô? lutou na guerra; os pais? contra a ditadura - o jovem luta pra num virar mendigo! (Angeli, eu acho)
Silêncio do Antes
Injustiça cotidiano.
Pesquisa? contribui, documenta, prova. Justiça? interpreta, guarda e esquece. Esquecemos: sem-terra, favelados, cidades caóticas, tortura deslavada. Dramas dos outros.
Justiça na TV:
outro dia, um "anônimo" da baixada fluminense foi na TV falar:
- Morreram pais, irmãos, pessoas próximas.
Culpa:
Confiou na polícia. Denunciou perseguição, chantagem e ameaça por uma milícia (+/- policiais).
Solução:
Entrou no PPT - mortes de entes. Deixou o programa de proteção a testemunhas (inseguro) pra morar numa favela cheia de traficantes perigosos (segurança). Escondido, isolado, sem trabalho. Só a TV.
- - Resultado - -
1ª e 2ª semanas: TV, jornais, e sem maiores comentários - restou uma nota de óbito 2 semanas após.
Silêncio Cotidiano.
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