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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

de parceiros

um domingo desses, cinzento, vi uma cena que me fez lembrar outro domingo cinzento, há uns anos atrás. a cena que eu vi foram dois cachorros vira-latas, muito parecidos (irmãos?), caminhando lado a lado, decididos e juntos. não sei onde iam; mas iam parceiros.
a cena que eu lembrei, de um outro domingo cinza paulistano, foi na frente do teatro municipal. estava fazendo um programa em que filmávamos muito no centro da cidade: anhangabaú, patriarca, viaduto do chá etc. dessa vez era na escadaria do teatro, e lá cheguei por volta das seis da manhã. um dia cinza, feio, e o centro da cidade no domingo é bem triste. com as ruas vazias, a sujeira fica mais visível, e as portas baixadas do comércio atraem a atenção para a decadência dos prédios. e o dia deixava tudo mais cinza.
mas voltemos: cheguei por volta das seis da manhã com a primeira parte da equipe, basicamente a produção e os seguranças. os seguranças logo começaram sua primeira tarefa do dia: expulsar das escadas os mendigos e meninos de rua que ali dormiam, para que pudéssemos começar a montar o set. (antes que o leitor arregale os olhos de indignação: não, eles não foram truculentos, não bateram em ninguém, nem mesmo foram grossos ou mal-educados. até porque essa população, em geral, está acostumada a ser expulsa: não reclama, se resigna e sai. e a vida continua em outra esquina).
nesse dia, no entanto, duas pessoas não se resignaram. uma delas proporcionou um espetáculo cômico: era um senhor aparentando ter, sei lá, uns 50 anos. ele encasquetou com um dos seguranças; não lhe dava paz. o segurança pediu pra ele sair, ele resistiu, acabou saindo. começamos a montar o set e toda hora lá vinha de novo o homem perturbar o segurança. entrava correndo no meio do set, corria em círculos em volta do cara, gritava, ria, sumia, voltava. quando já estávamos com quase tudo montado, umas trinta ou quarenta pessoas trabalhando, o homem apareceu de novo e invadiu o set, sempre chamando a atenção do mesmo segurança, que perdeu a paciência e o pegou pelo braço para tirá-lo dali. e aí sim ele deu o show: arrancou toda a roupa, apesar das tentativas do nosso segurança de impedi-lo, e passou a correr, pelado, em volta do set, com o segurança correndo atrás e o resto da equipe gargalhando.
bom: me perdi porque não pude deixar de lembrar dessa história, mas o que eu ia contar mesmo não era isso. era a história da outra pessoa que não se resignou a sair sem reclamar: um garotinho de rua, acompanhado de uma matilha de cães filhotes. não filhotinhos, pequenininhos, mas – como direi? cãezinhos jovens. uns seis ou sete vira-latinhas que dormiam com ele. ele parecia, na verdade, parte da matilha. eram oito cachorrinhos, só que um andava em duas patas. e esse era o mais bravo de todos.
os seguranças custaram a conseguir que a “matilha” saísse. o garoto reclamava, xingava, só faltava rosnar, e os cachorros, embora menos corajosos, não o largavam um só momento. acabaram por ir embora, todos juntos, e sumiram.
lá pelo meio da manhã, ao escutar cachorros latindo, automaticamente me virei pra procurar de onde vinha o barulho que poderia atrapalhar nosso áudio. então vi a cena que nunca me saiu da cabeça, e acho que nunca vai sair: numa kombi do SOS Criança, ou coisa que o valha, ia o garotinho, colado à janela, as duas mãos espalmadas no vidro, querendo sair. e atrás, na rua, a matilha de vira-latas corria e latia desesperada, seguindo a kombi. tinham levado seu parceiro.

Sofia Amaral é roteirista, mãe da Manu e mantém a coluna Curtas Banais

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