Havia algo na fantástica história que faltava ser contado: os motivos pelos quais Velasco caiu no mar. A embarcação vinha dos Estados Unidos sobrecarregada de muamba e, ao encontrar uma tempestade, acabou por entornar. Parte da carga e alguns marinheiros caíram no mar. García Márquez, depois que a história esfriara, conseguiu descobrir o real motivo do naufrágio. O Relato de um Náufrago saiu em fascículos semanais no diário e depois virou livro. Além da qualidade da narrativa, Gabo teve o mérito de expor mazelas escondidas ao recontar a história.
Nesta semana, o mundo (não é exagero dizer) se comoveu com o resgate de 33 mineiros que ficaram, por 70 dias, enterrados a quase 700 metros de profundidade em uma mina nos Andes. Com a facilidade de informação em tempo real, fomos bombardeados com a história de vida dos chilenos, que, assim como Velasco, viraram heróis. Eles também terão encontros com rainhas da beleza, farão comerciais, ganharão dinheiro e serão esquecidos.
33 óculos e 40 milhões de dólares
No entanto, há, ainda, muito a ser contado sobre o ocorrido no Deserto do Atacama. Fatos como a “doação” de 33 óculos de sol que a Oakley fez aos mineiros. Calcula-se que a exposição gratuita que a marca teve com as imagens dos trabalhadores usando seu produto ultrapasse os 40 milhões de dólares – o custo do resgate dos 33 chilenos foi estimado em 20 milhões de dólares. O que há por trás disso?
Segundo o jornal El Mundo, da Espanha, durante os trabalhos de escavação para a retirada dos mineiros foi encontrada uma grande quantidade de ouro e cobre na mina. O Chile é hoje o 15º produtor mundial de minério e pretende, até 2015, alcançar a sétima posição. Quem ficará com essa riqueza descoberta? A mina será reaberta?
Quantas minas como a San José existem no Chile e na América do Sul? Quantos mineiros vivem em situação de risco como os resgatados? É exagero imaginar que muitos trabalhadores de minas trocariam 70 dias de liberdade, a 700 metros embaixo da terra, para ganhar uma casa, 20 mil dólares, fazer propaganda, ganhar ingresso vitalício para assistir seu clube de coração, ser convidado pelo Real Madrid para ver um jogo no Santiago Bernabéu e, principalmente, nunca mais precisar viver como tatu?
O que aconteceu com aquele mineiro, desconhecido, que perdeu uma perna no dia em que os outros 33 ficaram soterrados? Vai ganhar um abraço do presidente do Chile? Vai ganhar óculos de sol da marca gringa? Vai precisar se enfiar embaixo da terra com uma perna só para sustentar a família?
Espero, e torço para, que um novo Gabriel García Márquez seja escalado para contar a história por trás dessa história dentro de alguns meses, quando tudo isso pareça só o roteiro de um filme. Por falar em filme, um canal de TV espanhol, em associação com um colombiano, já está filmando a história dos 33 mineiros.
Ricardo Viel é jornalista e colunista do NR
5 comentários:
Cacete! Que história! E, melhor: Que história compreendida!
eu estava mesmo me perguntando se ninguem iria falar sobre as condições de trabalho nas minas, alias, o horror nao teria acontecido SE ANTES empresa e governo tratassem disso.
ah agora eu entendi porque o mineiro que deu entrevista para o Fantastico ontem tinha o óculos de sol o tempo todo na cabeça, apesar de estar dentro de casa...
Olá Ricardo, adorei seu texto, muito inteligente e adorável em citar Gabo. Li o livro que conta a historia do náufrago, assim como li todos os livros dele. Excelente jornalista e escritor fantástico. Você está de parabéns, muito feliz em suas colocações. Alguém está ganhando muito dinheiro com tudo isso, que pena.
Meu caro amigo.
Que história.
Parabéns.
Abraço
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