O texto desta terça-feira é de autoria do jornalista Fernando Martins, meu aluno no curso de redação marginal. Esta é a segunda publicação dele no Nota de Rodapé – a primeira foi com o texto Bastidores de um crime. Na próxima semana eu volto com as crônicas. Boa leitura.
Fernando Evangelista
As letras e o mundo
por Fernando Martins*
Se você precisar de remédio para dor de dente, dor de cabeça, dor nas pernas, na coluna, no estômago, na garganta, remédio para azia ou má digestão, procure a Beatriz. Ela não é médica, nem farmacêutica, tampouco foi à escola. Mas conhece as doenças humanas como se fosse especialista – e é mesmo. Os remédios são todos naturais.
“Para cada dor”, ela conta, “há uma erva”. “Os venenos feitos em laboratório, se melhoram uma coisa, pioram outra. A cura está na natureza e é de graça”, diz, sorrindo. Até os mais céticos têm se rendido à sabedoria desta senhora de 60 anos, moradora do Ribeirão, sul da Ilha de Santa Catarina.
Casada, mãe de quatro filhos, Beatriz já foi faxineira, cozinheira, lavadeira e cuidadora. Ainda criança, começou a trabalhar nos serviços domésticos. E trabalhou dia e noite, na casa dos pais e de outras pessoas. Até os 20 anos, obediente e prestativa, fez tudo exatamente como lhe haviam exigido. Depois, com uma trouxa de roupa na mão, fugiu com o namorado Manoel.
Fugiu sentada no quadro da bicicleta. Em menos de um ano veio o primeiro filho, perdeu dois na gestação seguinte, teve mais um filho e ganhou um casal de gêmeos.
As dificuldades financeiras surgiram e com elas os problemas familiares. Manoel se entregou a dependência do álcool, ia trabalhar bêbado, caia seguidamente, batia a cabeça, lesionou o cérebro e terminou com crises de epilepsia, aposentado por invalidez. Mesmo assim, Beatriz permaneceu ao lado dele.
A situação a obrigou a trabalhar dobrado. Fazia faxina o dia inteiro. Mas se o trabalho era muito, o dinheiro era pouco e não dava para sustentar toda a família. Com dois filhos pequenos, ela teve uma ideia: comprou um carrinho de pipoca.
Comprou fiado, inclusive o óleo, o milho, os saquinhos e o gás. Pagaria assim que conseguisse algum trocado com as vendas. No dia seguinte, com a ajuda da mãe, levou o carrinho para uma grande festa, próximo de onde morava. Ganhou tanto dinheiro que pagou as dívidas e ainda teve lucro.
A pipoca foi a salvação de Beatriz e de sua família. Conseguiu permissão para vender o produto no aeroporto. Quando os aviões pousavam, ela ligava a pipoqueira e o cheirinho se espalhava rapidamente pelo ambiente. Foi um sucesso. Assim que os passageiros e tripulantes desciam do avião mergulhavam no espaço aéreo da pipoca. Ninguém resistia.
Por muitos anos, Beatriz trabalhou nesse ofício. Fez muitos clientes e amigos. E só aposentou o carrinho de pipoca porque achou outro jeito de ganhar a vida – mas essa é outra história. O marido Manoel está há 15 anos sem beber. Sobreviveu e se reergueu por causa dela.
Beatriz, mulher sábia, conhecedora das agruras e das belezas da vida, de doenças e de remédios, é minha querida mãe. Poucas vezes ela me deu sermões ou lições de moral, mas sempre deu o exemplo de seu caráter e de sua coragem. Ela nunca soube ler as letras, mas sempre soube, com sabedoria e profundidade, ler o mundo.
*Fernando Martins, jornalista e locutor, especial para o NR
4 comentários:
Texto simples, curto e muito sensível. Parabéns ao autor e, principalmente, a dona Beatriz - exemplo para todos nós.
(Henrique Soares - Curitiba)
Bravo! O bom é a sutileza desse importante laço parental com a personagem do texto. Uma mulher, de sabedoria popular tem alguma memória de bruxa né?? faz de alguma forma, as coisas acontecerem bem, belas. Gracias e suerte D. Beatriz!
Relato muito tocante.Vou compartilhar.Viva a dona Beatriz!
Edvaldo Pereira - Zona Norte!
Lindo lindo! Tive o prazer de conhece-la!
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.