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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Pergunte ao gás (lacrimogêneo)


por Milena Buarque*

Os olhos começam a lacrimejar, a pele se irrita com a sensação de um ardor de queimadura e torna-se muito difícil respirar. Na forma de spray, o jato pode ser direcionado ao rosto; como verdadeiras granadas, são lançadas para dispersar a turba. Na desocupação do Parque Gezi, na Turquia, ou nas jornadas de junho em todo o Brasil, o gás lacrimogêneo foi – e ainda é – usado indiscriminadamente na dispersão e repressão aos manifestantes.

Com efeitos que duram de 5 a 10 minutos, o eufemismo do gás “não letal” esconde a realidade da “arma química”. Para se fazer guerra, há regras. “O objetivo é você eliminar meios e métodos que causem sofrimentos desnecessários ao objetivo da guerra”, afirma Tarciso Dal Maso Jardim, assessor e consultor legislativo do Senado Federal para defesa nacional e relações exteriores.

A arte da guerra é tão complexa e contraditória quanto o fato de existir uma convenção que limite o guerrear. Tanto o Comitê Internacional da Cruz Vermelha quanto as Convenções de Genebra, para citar dois exemplos, se mantêm por meio do ininterrupto surgimento de disputas. “O desenvolvimento na área humanitária é uma construção histórica”, explica Dal Maso.

A Convenção de Armas Químicas (em inglês Chemical Weapons Convention – CWC), criada em 1925 em consequência do Protocolo de Genebra, proíbe o uso militar de gases tóxicos, asfixiantes, e métodos biológicos. Adotada apenas a partir de 1997, a CWC levou à criação da Organização para a Proibição de Armas Químicas (em inglês Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons – OPCW), que se tornou encarregada de supervisionar a destruição de arsenais químicos, também assegurando a sua não proliferação. A OPCW ganhou neste início de mês o prêmio Nobel da Paz. “Se dedica a combater, não só o uso, mas a fabricação, a estocagem, também a colaboração técnica para a produção desse tipo de arma. Ela tem um sistema de visitas surpresas no país, tem um grande poder de inspeção”, ressalta Dal Maso.

Em entrevista ao Repórter do Futuro/Nota de Rodapé, o consultor legislativo foi categórico com relação ao Brasil e o não cumprimento de alguns tratados e convenções já ratificadas, como as Convenções de Genebra na década de 1950. A não implementação, além do paradoxo do posicionamento humanitário internacional e as crises internas, significa algo muito mais perigoso do que parece. “Boa parte dos crimes de guerra que estão definidos nas Convenções não são considerados crimes aqui no Brasil.”

Os discursos são dúbios. No mês de setembro, a ONU confirmou a adesão da Síria ao tratado global contra armas químicas. O país era um dos sete que não aderiram à Convenção nos anos 1990. Os EUA, por outro lado, iniciaram o fornecimento de armas a rebeldes com o argumento de terem sido atacados por armas químicas. O mercado do gás lacrimogêneo, considerado arma química pela mesma ONU, é dominado justamente por empresas norte-americanas.

"Dá falta de ar e aí
começa a arder tudo"


“Eu já tomei bala de borracha, spray de pimenta e esse [lacrimogêneo]. Só não tive a experiência com estilhaço de bomba. Mas, de todos, o pior é o gás.” Letícia Carvalho, estudante de jornalismo, aos 23 anos já teve de lidar diversas vezes com a “queimação” causada pelo gás de efeito moral. Das lembranças das manifestações do Movimento Passe Livre (MPL) de junho, em São Paulo, Letícia considera seus piores dias os dos segundo (7) e quinto (17) atos. “No segundo, eu tava na linha de frente”, conta a estudante, que chegou a enfrentar uma situação em que quatro bombas estouraram tão próximas a ponto de secar a máscara que usava para se proteger.

As bombas de gás são estruturas que, após a explosão, liberam uma substância conhecida como CS (clorobenzilideno malononitrilo). Ao se misturar a solventes, pode causar lacrimejamento intenso nos olhos, irritação na garganta, sensação de sufocamento, náuseas, entre outros efeitos físicos. “É horrível, dá um desespero porque parece que aquilo não é respirável. Dá falta de ar e aí começa a arder tudo”, diz Letícia.

A exposição prolongada, no entanto, pode levar a danos mais graves. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, em ambientes fechados a inalação do tear gas pode encadear uma parada respiratória. Neste ponto, o grupo “Facing Tear Gas” organizou uma campanha contra o papel dos EUA nos negócios de gás lacrimogêneo no mundo e em solidariedade às pessoas que sofrem com a repressão em diversos países atualmente. Entre as justificativas: “porque é uma ferramenta de repressão”, “porque as nossas cidades estão desmoronando” e “porque mata”, há uma petição online que pode ser assinada no site do movimento, que também critica a empresa brasileira Condor Non-Lethal Technologies pelo fornecimento de gás para a dispersão de manifestantes na Turquia, em junho.

A naturalização do uso do gás lacrimogêneo, após os anos 1960, esconde em seu discurso de defesa a preocupação excessiva com a propriedade e a resposta repressiva do Estado ao direito de expressão. “Tem coisas que [se] proíbe na guerra e não [se] proíbe na sociedade, na manutenção da ordem pública”, diz Dal Maso.


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*Milena Buarque,
estudante do último ano de jornalismo no Mackenzie, integrante do 12º Curso de Informação sobre Jornalismo em Situações de Conflito Armado e Outras Situações de Violência, do Projeto Repórter do Futuro, onde foi confeccionado este texto publicado pelo NR

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