.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 25 de março de 2014

Da vida só me tiram morto


por Fernanda Pompeu*

A frase do título é do Millôr Fernandes (1923-2012), mestre saudoso para seus leitores, eu incluidíssima. O que aprecio na prosa de Millôr é a leveza com que ele escrevia sobre qualquer assunto, mesmo acerca da assombrosa morte. Imprimir leveza num texto é trabalho de fortes. Assim definiu outro leve, também morto em 2012, o caneta de ouro Ivan Lessa: "A gente trabalha com a enxada dura da língua."

Para chegar no texto leve, coloquial, informal, sem terno e gravata, sem salto alto e espartilho, temos - além de usar a enxada - deletar da tela asperezas, rebarbas, calcificações. A leveza também exige um exercício contínuo de desaprendizagem. Desaprender a escrita burocrática, a escrita covarde, a escrita dos chatinhos e chatinhas. Leveza tem muito a ver com momento, fugacidade, passarinho. Em contrapartida, pouco ou nada a ver com certeza, posteridade, eternidade - essas três damas da ilusão mais profunda. Leveza, no texto e na vida, é a aceitação do transitório, do minúsculo, da poesia cotidiana.

Corações atentos percebem o conceito do instante poético, aquele que já nasce morrendo. Aquele que para ser experimentado e curtido exige que o observador se concentre totalmente. Só assim podemos ver poesia numa gota d´água, numa pedra solta, numa frase de rua ou numa lágrima viúva.

Quando eu e meus quatro irmãos éramos crianças, sempre ouvíamos da nossa mãe uma advertência com cara de lição. Ela dizia: "Aproveitem o momento, pois não existe a felicidade. Não existe o todo, apenas existem as partes." Eu não gostava de ouvir essas palavras, porque acreditava amarga a ideia de não existir a felicidade.

Até hoje não consigo afirmar se a felicidade existe como um todo. Tive e tenho momentos e fases felizes. Por exemplo, me sinto feliz quando ponho o ponto final em uma crônica. Ou ao saborear o primeiro café expresso do dia. Reparem, coisinhas pequenas. Quase feitas de nada.

Sinceramente ainda estou muito longe de alcançar a leveza dos mestres Millôr e Lessa. Mais longe ainda da sabedoria da minha mãe. Mas vou tentando com toda a coragem. Escrevo e verifico se a frase ficou dura. Se ficou, pego o buril da memória literária e retrabalho. Na vida, idem. Telefono para a leveza mesmo nos momentos e fases tristes.

* * * * * * * 

fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé. *Texto publicado originalmente no Mente Aberta - Yahoo. Imagem: Régine Ferrandis

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics