As imagens que chegam da Faixa de Gaza, bombardeada por Israel, com muitas vítimas entre crianças, mulheres e idosos, circulam como um grito impotente pelas redes sociais. Impossível manter-se impassível diante do uso desproporcional da força por parte do governo israelense. Tenho feito circular artigos e reportagens que falam dos abusos que ali são cometidos. Evito publicar imagens, mas compartilhei uma delas, recentemente, com várias crianças palestinas mortas, amontoadas, porque são o retrato cruel de como o terrorismo de estado pouco se diferencia do terrorismo de grupos que usam a população civil como alvo. Sob o pretexto de buscar alvos militares, contam-se às centenas os “efeitos colaterais” que vitimam pessoas inocentes.
Tão logo publiquei a foto, surgiu um debate sobre o que é ou não “sensacionalismo”. A cena é forte, sim, mas há situações que não podemos deixar de ver. Mais que isso: temos a obrigação de olhar, com muita dor e indignação. Afinal, quantos civis ainda precisam ser mortos – e já são mais de mil, além de milhares de feridos – para configurar um massacre? Os álibis do governo israelense e de seus apoiadores são insustentáveis, embora a mídia de vários países ocidentais – o Brasil não é exceção – não cansa de tentar legitimar.
O jornalismo deve poupar o cidadão – regra geral – de cenas violentas e desnecessárias. Mas há exceções, porque a instantaneidade de uma imagem é fundamental para traduzir algumas tragédias humanas. O bombardeio dos Estados Unidos na Guerra do Iraque, a primeira que assistimos ao vivo, com cenas aéreas das cortinas de fogo que se levantavam ao céu, sobretudo à noite, mais parecia um videogame high tech. A brutalidade, a essa distância, sem a visão de mutilações e mortes, tem menos chance de emocionar a opinião pública. Houve um enorme esforço das forças norte-americanas para impedir ao máximo o acesso dos jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas ao campo de batalha. Até a linguagem tornou-se asséptica. Falava-se em “ataques cirúrgicos”.
O massacre que vem sendo perpetrado pela máquina de guerra de Israel contra a população civil palestina tem gerado muitas imagens brutais. Num mundo povoado por câmeras e quase anestesiado diante de tantos horrores de guerras, essas imagens ainda impactam as consciências de quem se nega a ser apenas testemunha de mais uma atrocidade.
Os Estados Unidos começaram a perder a Guerra do Vietnã quando pacatos cidadãos estadunidenses tomaram conhecimento do que seus concidadãos faziam em terras distantes. A chacina só começou a ter fim depois que, durante os telejornais, o sangue espirrou nas mesas de refeições de milhões de cidadãos em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos.
Não sou voyeur da crueldade humana, nem tampouco cego para a dor dos que imploram por socorro ou dos que morrem à míngua por injustiças em algum lugar do planeta. Foram as fotos de Don McCulinn, o primeiro fotógrafo a registrar a fome em Biafra, em 1969, que acordaram o mundo para uma catástrofe que precisava do apoio de outras nações. Não há como esquecer a imagem da menina Kim Phuc, correndo nua, gritando de dor com o corpo queimado pelas bombas de napalm, numa estrada perto de Trang Bang, no sul do Vietnã. Ou a execução, a sangue frio, com um tiro na cabeça, em plena rua de Saigon, de um vietcong – registro feito pelo fotógrafo Eddie Adams, em 1968.
Não há por que confundir. Sensacionalismo é a “exploração de notícias com o objetivo de causar sensação ou escândalo”. Ao exibir algumas cenas dantescas (como as valas com corpos de judeus mortos em campos de concentração nazista), o objetivo não é causar sensação. Primeiramente, é certo que causa indignação. Mas é também registro que permanece para que se possa tentar compreender, de alguma forma, o que e por que aconteceu. É também o testemunho para pôr no banco dos réus os responsáveis. São imagens que precisam fazer parte do “currículo” da espécie humana. Servem para lembrar-nos do quanto podemos ser ferozes e – paradoxalmente – inumanos em certas circunstâncias.
O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado testemunhou, com sua câmera, muito sofrimento, ódio e violência. E aos críticos, que não veem sentido em registrar a desgraça humana, respondeu: “Este é o nosso mundo, precisamos assumi-lo. Não são os fotógrafos que criam as catástrofes, elas são os sintomas da disfunção do mundo do qual todos participamos. Os fotógrafos existem para servir de espelho, como os jornalistas. E não venham me falar de voyeurismo! Voyeurs foram os políticos que deixaram as coisas acontecerem e os militares que facilitaram a repressão.” O comentário era sobre Ruanda, palco de um genocídio em 1994, mas vale para qualquer situação. O relato está no livro Sebastião Salgado – da minha terra à Terra, (entrevista à amiga Isabelle Francq, editora Paralela), no qual ele também afirma: “Ninguém tem o direito de se proteger das tragédias de seu tempo, porque somos todos responsáveis, de certo modo, pelo que acontece na sociedade em que escolhemos viver.” No caso presente dos ataques de Israel, é evidente a brutalidade e a insensatez de uma ideologia política e religiosa sustentada, principalmente, pelos Estados Unidos, uma das nações que mais se envolve em ações violentas por todo o planeta.
Infelizmente, pela lógica do capital e da guerra (as duas coisas costumam andar juntas), seres humanos de determinadas etnias ou nações são atacados e exterminados em nome de vários interesses. O Estado de Israel tem incorporado e ocupado territórios palestinos pela força e mantido a população sob permanente estado de terror. A qualquer momento sente-se legitimado a usar a força de maneira desproporcional. E controla quase tudo que pode ou não se pode fazer.
Não estivesse sob a proteção dos Estados Unidos e das principais nações do Ocidente, seus líderes já estariam sentados em um tribunal para responder por crimes de guerra. A certeza da impunidade, no entanto, só amplia os abusos contra os Direitos Humanos.
O Estado de Israel tem o direito de se defender, mas não o de perpetrar massacres. Tem o direito de lutar contra inimigos que tentam golpeá-lo, mas não pode atacar alvos civis e matar mulheres, crianças e idosos. Palestinos têm o direito a ter de volta suas terras ocupadas por Israel. Palestinos têm direito a ter um Estado, conforme a Resolução 181 da ONU, que data de 1947 e jamais foi cumprida – em boa parte, pela intransigência israelita.
O século 20 presenciou, além de duas guerras mundiais, vários crimes de guerra em acertos de contas regionais que escandalizaram o mundo. Prova de que somos animais de uma ferocidade jamais vista anteriormente sobre a face da Terra e, por isso mesmo, a única espécie capaz de destruir milhares de outras espécies e de ameaçar a sua própria existência.
Diante da brutalidade que se verifica em Gaza, golpeada por milhares de mísseis a estraçalhar corpos humanos inocentes, não é justo que o horror se esconda por trás de uma linguagem diplomática, utilizada diariamente pela mídia para encobrir crimes de guerra. Não é justo pedir que tenhamos bons modos diante do terror. A violência cega. Por isso, mais do que nunca, é preciso ter olhos para ver. E dizer não à barbárie.
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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.
2 comentários:
Concordo Celso. Sem esquecer que a tolerância internacional contribuiu definitivamente para termos chegado a essa situação.
Bravo! Excelente artigo. Tens razão: é preciso ver.
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