Histórias de pessoas de carne e osso - e também de personagens de papel - que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.
(Episódio 14)
por Fernanda Pompeu ilustração Fernando Carvall
Não havia nenhuma chance de um mal-entendido quanto ao local e horário. No 31 de outubro de 1975, toda São Paulo estava sabendo que na Catedral da Sé, o católico Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor James Wrigth celebrariam uma missa em memória do jornalista Vladimir Herzog. Na verdade, o ato era bem mais. Estar na Praça da Sé naquele cair de tarde significava afrontar a ditadura militar.
A garota, com exatos 20 anos, sabia de tudo isso. E também esperava que ele, o professor, também soubesse. Na verdade eles estavam tendo um namorico. Se nos dias de Facebook fosse, diríamos que eles ficavam. Mas na década de 1970 ninguém falava assim. Ele era professor de História, dos melhores. Ela andava mais interessada na História do que nele, mas isso ela concluiu tempos depois, ao cavoucar as cinzas da memória.
Dentro da Catedral, ouvia-se um desagravo em nome de Herzog. Menos de uma semana antes, o jornalista da TV Cultura foi morto sob tortura no Doi-Codi da rua Tutoia - uma seção do inferno no bairro do Paraíso. Seus algozes tentaram vender a versão de que o preso havia se suicidado dentro da cela. Só que ninguém acreditou.
Onze anos depois dos militares terem roubado o poder em nome de um Brasil mais seguro, ordeiro, ovelha, muita gente já estava de saco cheio. Pelas promessas não cumpridas e pela violência contra os opositores. Violência tão desproporcional quando é - hoje, 2014 - a do exército de Israel contra os civis da Faixa de Gaza.
Antes de Vladimir Herzog, vários haviam sido torturados. Entre eles se somavam os mortos e desparecidos. Em razão disso, perto de oito mil pessoas se concentravam na Catedral e na Praça da Sé. No meio deles, ela. Com um olho na História e outro no relógio.
A aluna marcara o encontro com o professor em torno do Marco Zero - bem no centro da praça. Ele garantiu que compareceria, pois o país não podia seguir do jeito que estava. Mesmo quando a missa terminou, quando as pessoas começaram a ir embora, ela ainda esperou. Mas ele não apareceu.
No dia seguinte se encontraram na sala de aula. Lá estava o professor falando da Revolução Russa, entusiasmado com os bolcheviques e suas ações. Ele sorriu várias vezes para ela. Ela retribuiu com um olhar triste. Estava decepcionada. De alguma forma, a garota pressentia que o namorico dos dois tinha terminado.
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Fernanda Pompeu é escritora e redatora. Fernando Carvall é o homem da arte.
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