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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Um Brasil dividido?

por Celso Vicenzi*

Quem deu a vitória para Dilma Rousseff foram os estados do Sudeste e Sul, principalmente, com 49% do total de votos que a elegeram. Se acrescentarmos os votos do Centro-Oeste, sobe para 54,9%. Dilma obteve no Nordeste 37% (quase o mesmo no Sudeste, 36,5%). O Norte deu à candidata mais 8,1% dos votos. Fácil concluir que cada voto, não importa a região, contribuiu para o resultado. Então, por que os principais veículos de comunicação (em TV, rádio, jornal, revista e internet) insistem na tese de um país dividido? A divisão por estados distorce a realidade. Mais do que isso, contribui fortemente para instigar ódio de classes e ódio regional, sobretudo contra os nordestinos.

Atribui-se ao primeiro-ministro britânico, falecido em 1881, Benjamin Disraeli, a célebre frase: “Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras descabeladas, e estatísticas.” A mídia brasileira usou a terceira forma de mentira para pintar o mapa do país de azul e vermelho e obter uma conclusão irreal. Nele, assinalava os estados em que a candidatura de Aécio foi vencedora e onde Dilma havia vencido. Não haveria problema em mostrar essa informação, se fosse seguida de outras, como, por exemplo, os municípios em que uma candidatura ou outra foi vencedora. Neste caso, o mapa já estaria mais diluído em sua justaposição de cores. Mas deveria ser acrescido, necessariamente, de um terceiro mapa: o que mostrasse a mistura dos votos e, portanto, das cores. Quem fez isso foi o mestrando em História Econômica pela Unicamp (SP), Thomas Conti. Seu mapa, reproduzido em vários portais, muda completamente a forma de olhar para o resultado da eleição. (www.jornalggn.com.br/noticia/o-mapa-das-eleicoes-por-thomas-conti).

O papel do jornalismo não é apenas mostrar dados. É, sobretudo, contextualizá-los. Saber interpretar fatos ou números é o que diferencia jornalistas competentes de mal preparados ou mal intencionados. Infelizmente, temos lido, ouvido e visto cada vez mais jornalistas, comentaristas e colunistas na grande mídia que são apenas produtores de sofismas, ou seja, “raciocínios ou argumentos aparentemente lógicos, mas que são falsos e enganosos”.

É por isso que boa parte do discurso de ódio presente nas redes sociais tem na mídia o seu principal combustível. Porque a desinformação gera distorção, que gera preconceito, que gera discurso de ódio. Se Aécio tivesse vencido por um voto, todos os que destilam nas redes sociais grosserias e sentimentos anticivilizatórios e desumanizadores estariam comemorando a “vitória da democracia”. Evidente que a maior parte dos eleitores e eleitoras do candidato derrotado do PSDB não se enquadra nesse perfil. Mas, certamente, poderiam refletir sobre o que os leva a fazer companhia, na hora do voto, a pessoas tão desqualificadas para viver em sociedade.

Mas, se não há a divisão maniqueísta entre “o Brasil que produz” e o “Brasil atrasado”, entre o Brasil de azul e o Brasil de vermelho, há, sim, sinais expressivos de cisões no país. Diferenças que também não podem ser pintadas apenas de azul e vermelho, "nós ou eles", porque igualmente não representam a diversidade de opiniões e as motivações que levam o eleitor e a eleitora a optarem por uma candidatura.

Há cada vez mais brasileiros que se aliam a duas formas diferentes de pensar o país e que se expressam mais vigorosamente nas redes sociais. A dos brasileiros que querem um país menos desigual e a dos que se negam a abrir mão de privilégios. A dos brasileiros que preferem um Estado forte para fazer políticas públicas e outros que preferem que o mercado se encarregue de fazer justiça social. A dos brasileiros que desejam fazer avançar os Direitos Humanos e a dos que propõem tratar questões sociais à bala, com mais repressão. Aqueles que concordam em oferecer mais oportunidades para os negros e brasileiros que se acostumaram a vê-los como mão de obra barata. Os cidadãos e cidadãs que lutam por uma sociedade menos patriarcal e machista e os brasileiros e brasileiras que se mantêm omisso(a)s, sem falar na parcela expressiva que continua a tratar as mulheres sem igualdade, com discriminação e preconceito.

Há um esboço de divisão que não é geográfica, mas de projetos políticos. Há muitos brasileiros que são solidários à manutenção de uma diplomacia externa que una a América Latina, que dialogue com a África, com culturas não ocidentais, ou seja, com todos os povos, e há outros que gostariam de ver o Brasil alinhado às posições do governo norte-americano e das principais potências europeias, que, não raro, têm optado por uma diplomacia muito mais beligerante em relação a alguns países.

Tudo indica que há um aprofundamento das discórdias e a construção desse fosso tem na mídia boa parcela de responsabilidade, pela falta de um debate mais plural, que acolha opiniões destoantes do senso comum e da linha editorial imposta pelos donos dos veículos de comunicação. Por isso, há brasileiros que lutam por mais informação e conhecimento, que defendem a regulamentação da mídia, e há outros que não se sensibilizam para isso e ainda confundem a democratização dos meios de comunicação com censura. Há brasileiros que apoiam políticas públicas que propiciem educação de qualidade, em todos os níveis, para que haja uma ascensão social das classes menos favorecidas, inclusive com ações afirmativas, a exemplo das cotas, enquanto outra parcela de brasileiros acredita que as oportunidades já são iguais e vê como injustiça a criação desses mecanismos compensatórios. Há sinais de uma divisão quando parte da população manifesta orgulho pelas mudanças sociais que têm sido implementadas e igualmente outra parcela de brasileiros tratam esses avanços com desprezo, como esmolas para vagabundos.

Há brasileiros que anseiam por um país que se reconheça em todas as suas diferenças culturais e regionais e se orgulhe delas, e outros que exibem, potencializados pelas redes sociais, muros de preconceito, ódio e discriminação. Enfim, há divisões que, mais do que geográficas, são políticas e ideológicas. Na mais disputada eleição presidencial dos últimos tempos, apareceram fissuras que ameaçam a consolidação de um país democrático, que respeite o resultado das urnas e a vontade soberana expressa pelos brasileiros em cada voto. Terá que haver um enorme esforço para promover o diálogo – e nisso, novamente, a mídia tem um papel fundamental –, para estancar os discursos de uma aberta pregação golpista e as manifestações de rancor e raiva. A democracia é o sistema que legitima a igualdade política e social. Isso precisa ser melhor debatido e praticado entre os brasileiros e brasileiras.

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Celso Vicenzi, jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e assessoria de imprensa. Prêmio Esso de Ciência e Tecnologia. Autor de “Gol é Orgasmo”, com ilustrações de Paulo Caruso, editora Unisul. Escreve humor no tuíter @celso_vicenzi. “Tantos anos como autodidata me transformaram nisso que hoje sou: um autoignorante!”. Mantém no NR a coluna Letras e Caracteres.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bom, Junia! Como sempre !

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